quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Feliz 2017, Brasil

Publicado no Diário dos Campos em 28/12/2016

Que em 2017 tenhamos um ano melhor que 2016!

Que o futebol volte a ser a autêntica expressão do povo brasileiro. Um esporte em que nem sempre o time melhor e mais caro vence, mas em que a garra e a ginga podem superar os fabulosos investimentos. Que continuemos ganhando títulos felizes, como o ouro na Olimpíada. Que as tramas que fabricam resultados e enriquecem investidores fraudulentos afastem-se do nosso futebol. Que os craques voltem a jogar pela camisa, pelo país, e não pelos dólares. Que futebol continue sendo sinônimo de alegria, de descontração, de jogo de equipe e de identidade de um povo que emergiu do complexo de vira-lata graças às conquistas da seleção canarinha nos idos de 1958 e 1962. Que times que são exemplo de êxito, de administração competente, parcimônia nos gastos e empatia com sua torcida e cidade não sejam dizimados por colossais negligências aeronáuticas que causam comoção mundial. Que os estádios encham-se de famílias e torcedores pacíficos em busca de um sadio lazer. Que o futebol seja o esporte do povo, livre da manipulação de gigantes midiáticos e de interesses escusos. Que o horário dos jogos não tenha de competir com o horário dos doutrinadores jornal e novela. Que as torcidas violentas extingam-se.

Que o povo volte a ser alegre, amistoso e hospitaleiro, características que já foram marca mundial do brasileiro. Que discordâncias sobre o futebol, a política e a religião não sejam motivos para intrigas e muito menos para iras inexplicáveis. Nossos avós já diziam que não se acirram discussões de tais assuntos com os amigos se não queremos perdê-los. Que voltemos a confrontar nossas opiniões firme mas pacificamente, aceitando e respeitando a diferença, que ela é justamente a maior riqueza do povo brasileiro. Basta dos ódios que estão sendo cultivados no seio de nossa gente amistosa, seja por coisas mais complexas como ideologias e religiões, seja por coisas mais banais como o time de futebol. Ideologias mais inclusivas prosperarão se aceitarmos debatê-las com serenidade.

Que nunca nos esqueçamos do privilégio que é vivermos no Brasil. Um país continental de riquezas e belezas naturais vastíssimas, que faz inveja a todo o mundo. Que saibamos cuidar de nosso país para que essa inveja não se transforme em pilhagem. E tenhamos orgulho do privilégio de fazer parte do povo brasileiro. Dizem alguns que o Brasil é um esforço dos céus para o congraçamento de raças, credos, culturas... Desta mistura que é o nosso povo deverá emergir o cidadão do futuro, tolerante, solidário, ciente das bênçãos que vêm com a compreensão da alteridade.

Que qualidades de caráter tais como a honestidade, a tolerância, a solidariedade, a responsabilidade, a ética, a perseverança, a serenidade, a sabedoria fortaleçam-se na alma e na identidade do povo brasileiro. E que estas qualidades façam com que nossos sonhos e esperanças de um país grandioso deixem de ser adiadas para um futuro incerto, e realizem-se no presente.

Que os dirigentes, os tomadores de decisão de nosso país, sofram todos de uma misteriosa epidemia que os metamorfoseiem e os façam valorizar mais interesses públicos, coletivos, que seus interesses pessoais. Que eles passem a ser inspirados pelas personalidades iluminadas que já passaram pela nossa história global, Cristo, Buda, Maomé, Mahatma Gandhi, Indira Gandhi, Mandela, Chico Mendes, John Lennon, Cora Coralina e tantos outros, e encham-se de urbanidade e patriotismo. Que coloquem acima de tudo a honestidade, o espírito público, a inclusão social, a distribuição da renda e a justiça social, a defesa da soberania nacional, o respeito ao patrimônio público construído ao longo de décadas.

E que nós, cidadãos comuns, nos preparemos, ao longo de 2017, para as escolhas de novos dirigentes que vamos fazer em 2018. Que até 2018 já estejamos sabendo reconhecer quem são os ainda obstinados oportunistas, e saibamos distinguir os estadistas que saberão defender o país da sanha dos falcões que estão vigiando para rapinar a identidade, as riquezas e as empresas brasileiras.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Oportunistas ou estadistas?

Publicado no Diário dos Campos em 3 de setembro de 2016

        Estaremos, no Brasil, perdendo a capacidade de distinguir entre os oportunistas e os estadistas?

Oportunistas são aqueles cujo princípio é o da vantagem pessoal ou de grupos fisiológicos, que não têm ética nem outro ideal, e por isso são camaleões que mudam de postura ao sabor de conveniências casuísticas. Estadistas são aqueles que aprenderam a priorizar o interesse coletivo, do Estado, alcançaram o espírito público, por isso desenvolveram princípios éticos, que pressupõem o respeito ao direito do outro, a solidariedade, a inclusão social, a emancipação pessoal e a liberdade e soberania perante todas as forças retrógradas que tentam perpetuar a opressão da alma humana.

Vivemos no Brasil um momento de crise com mistura de ingredientes singular: um poder midiático sem precedentes; um desequilíbrio entre executivo, legislativo e judiciário que revela a fragilidade, a falência, do sistema político vigente; um embate visceral entre concepções econômico-sociais neoliberais ou estatizantes; a pressão de um clima mundial de retrocesso, não só econômico, mas também de valores civilizatórios, da tolerância, da solidariedade, da paz. O mundo anda intolerante, excludente, beligerante.

Lembremo-nos que crise tem seu lado positivo: ela é a revelação da decrepitude do velho, quando o novo ainda não surgiu para substituí-lo. O individualismo, o egoísmo, a exploração, a opressão, a tirania são o velho que precisa ir-se. A solidariedade, a tolerância, a paz, a responsabilidade, a honestidade, a esperança, o sonho são o novo que quer, mas está sendo impedido de nascer. Mas cuidemos para que a crise não se torne colapso, isto é, quando o velho já está morto, e o novo já não tem mais como nascer.

É bom também, neste nosso país de predomínio da inspiração cristã, que nos lembremos da tragédia de Cristo. Um homem que pregava a solidariedade, o amor, o despojamento, a paz, a liberdade. Ele tinha doze seguidores, mas, por suas pregações, amealhou incontáveis adversários, principalmente entre as autoridades, locais e do império que então dominava hegemonicamente o mundo. As convicções de Cristo o levaram à crucificação, não sem antes a ironia de seu destino ter sido delegado às massas. O poder imperial lavou as mãos, mas o povo escolheu salvar Barrabás. Sem dúvida identificaram-se mais com o notório salteador que com o homem que pregava ética.

É possível que possamos comparar Cristo com o estadista, Barrabás com o oportunista. Suponhamos que hoje nos deparássemos com situação análoga àquela que teria acontecido há dois mil anos. Qual seria o desfecho?

sábado, 2 de julho de 2016

Táticas de manipulação para o consumo e a intolerância

Publicado no Diário dos Campos em 7 de julho de 2016.

          Vimos neste blog (ver texto "O novo surto de intolerância" postado em 30 de junho) que o planeta dá mostras de que nos encontramos num momento de crescente intolerância. Haveria alguma motivação para isso, visto que, em tese, deveríamos estar evoluindo para uma civilização mais solidária na alteridade?

No início do Século XX o cientista russo Ivan Pavlov realizou um experimento simples, mas de incomensurável importância: ao longo de vários dias, tocava-se repetidamente uma sineta ao mesmo tempo em que se alimentava um cão; passado um tempo, a sineta passou a ser tocada mas agora sem o alimento, e então o cão, já condicionado, apresentava todas as evidências de que estava pronto para receber o alimento, como ensalivar e outras reações orgânicas e comportamentais. O cão sujeito da experiência passa a considerar que a sineta quer dizer alimento, embora tal associação já tenha passado a ser falsa.

A isto denominou-se “reflexo condicionado”, isto é, a repetição de uma associação (alimento+sineta) induz uma resposta comportamental aprendida (salivação), que passa a ocorrer mesmo na ausência do fator real desencadeador da reação (sineta sem o alimento). Logo atinou-se com as enormes possibilidades de aplicação da descoberta, não só em tratamentos psicológicos, mas também na propaganda, de produtos, ideologias e comportamentos.

Examinemos algumas aplicações da experiência de Pavlov. Até há pouco tempo éramos bombardeados com mensagens cigarro=aventura, cigarro=masculinidade, cigarro=força, cigarro=glamour, cigarro=prazer... E a verdade é que o cigarro é um veneno que mata aos poucos. Todos os dias, por todos os meios, chega-nos insinuantemente que carro novo=sucesso, carro novo=conforto, carro novo=beleza, carro novo=desempenho, carro novo=status, carro novo=segurança, carro novo=conquistas, carro novo=felicidade... E mesmo que não precisemos e nem tenhamos condições de comprar o carro novo, ele passa a nos parecer imprescindível, irresistível.

Talvez o consumo de produtos e bens seja um imenso campo de aplicação do reflexo condicionado de Pavlov, pois nós, seres humanos, costumamos ter o mesmo nível de reação inconsciente dos cães utilizados na experiência. Mas certamente existem os outros campos de aplicação do reflexo, muito mais vastos e nefastos. O que impediria que o condicionamento fosse utilizado para estigmatizar pessoas, raças, credos, instituições, ideologias e até nações? Não tem sido assim ao longo do tempo?

O reflexo condicionado tem sido empregado para cristalizar associações como latino=indolente, muçulmano=terrorista, MST=baderneiros, comunista=comedor de crianças, Irã=mal, etc. Tomemos como exemplo um sujeito hipotético denominado Darci. O que aconteceria conosco se fôssemos bombardeados incessantemente com estímulos do tipo Darci=corrupção, Darci=recessão, Darci=ingovernabilidade, Darci=crise, Darci=antipatia, Darci=erros, Darci=mentira...? Supondo que estas associações pudessem não ser verdadeiras, mas fruto da intenção dos inimigos de Darci, depois do bombardeio, o que pensaríamos de Darci?

Seria muito desejável que, ao invés da reação irracional do cão que associa, mesmo que falsamente, sineta=alimento, utilizássemos a razão e o discernimento que nos diferencia do cão para refletir se estas associações são verdadeiras, ou se são falsas e visam condicionar nosso julgamento. E se assim for, quem está nos manipulando? Com qual propósito? Trata-se de uma experiência como a de Pavlov ou os interesses são outros? Quais?

No mundo atual, em nossas vidas, além do consumo de produtos, muitas vezes supérfluos, quais outros tipos de condicionamentos temos sofrido? Quem sabe até para manipular nosso julgamento sobre quem é corrupto e ladrão, e quem é honesto? Ou sobre quem fala a verdade, quem fala mentira? Ou quem é nacionalista, quem é entreguista? Ou quem é estadista, quem é oportunista?

Pavlov nos demonstrou que somos manipuláveis, como os cães. Mas não somos cães, somos seres humanos, a quem foi dada a capacidade de refletir, de discernir, e também os sentidos de justiça e solidariedade, que nos fazem assumir compromissos com o respeito aos direitos e deveres não só de nós mesmos, mas também de nossos semelhantes, e de toda a vida no planeta. Mas parece que temos tendência de abrir mão destas nossas capacidades. Comportamo-nos condicionada e irrefletidamente, como os cães. A força, a astúcia e a mesquinhez dos interesses que controlam a manipulação são muito grandes. Se vacilarmos, sucumbimos a seu poder.

É urgente que deixemos de reagir como condicionados cães, e passemos a agir como seres humanos, com discernimento, autonomia e sensibilidade. Disto depende nosso futuro, o futuro do país, do planeta.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

O novo surto da intolerância

          Já vivemos na Terra momentos de desbragada intolerância, esta muitas vezes a serviço de cruéis autoritarismos. Lembremo-nos da inquisição que queimava seus opositores na idade média, as limpezas étnicas na Europa nazista e em países como a África do Sul, Nigéria, Ruanda e ex-Iugoslávia, o macarthismo anticomunista nos EUA, as guerras entre torcidas de futebol na Inglaterra e em outros cantos do mundo, até no Brasil, e, nos dias atuais, os fundamentalismos que segregam gênero, crença, nação, que só fazem alastrar-se.

          E muitos outros tristes exemplos em que ignorância e instintos de violência fazem sucumbir a razão e a compreensão. Sem dúvida, situações cuja explicação está no campo da psicologia e da sociologia. Embora nos denominemos seres racionais e sociais, ainda resta muito em nós, humanos, de inconscientes instintos animais que nos fazem agressivos defensores de um território que pode ser desde o espaço físico da moradia, do trabalho, do bairro, cidade ou país até o território imaterial no campo das ideias, convicções ou o time de futebol preferido.

          A decisão do Reino Unido de retirar-se da União Europeia parece ser a mais recente demonstração deste novo surto de intolerância que assola a humanidade. A União Europeia surgiu do esforço de integração após a lição das duas grandes guerras que destroçaram a Europa no Século XX. E não é de espantar que seja justamente o Reino Unido, a outrora maior potência colonizadora e opressora do planeta, o país a iniciar a desagregação desse imenso esforço de reconstrução e concórdia. Mas é preciso reparar que o plebiscito que decidiu a saída do Reino Unido foi decidido por maioria muito apertada. Os mais idosos votaram maciçamente pela saída, levados sobretudo pela xenofobia. Contrariando a vontade dos mais jovens, que votaram pela permanência do país na comunidade. Jovens que se revoltam com o resultado, que parece lhes tolher a possibilidade de ter mais liberdade de escolher onde trabalhar, onde viver, onde encontrar amigos e cônjuges...

          No Brasil, o surto de intolerância também é bem visível, e não só nas tradicionais guerras de torcidas. Não é por acaso que se produz no país um orquestrado esforço de convencimento do cidadão comum do que é certo (o bem) e o que é errado (o mal) e de cultivar a raiva, o ódio, àquilo que é rotulado como “o mal”. Nunca antes presenciei tantas pessoas, sejam desconhecidos na rua, sejam colegas de trabalho, sejam alunos, sejam amigos, sejam protagonistas de notícias, a manifestar irracionais reações agressivas perante diferenças que divergem do consenso implacavelmente construído pelo massacre midiático que vivemos no país.

          Este é um ponto crítico, que deve nos fazer refletir. Ao longo da História, os agudos surtos de intolerância sempre resultaram de manipulações de autoritários e inescrupulosos poderes hegemônicos, que assim se faziam impor aos povos e nações conquistados. É a aplicação da velha máxima “dividir para governar”, cujos mestres maiores foram os britânicos, que a empregaram por séculos em suas colônias pelo mundo.

          Aqui no Brasil também estamos sendo vítimas de uma perversa e modernizada estratégia de divisão interna. Parece que ainda não acordamos para o fato que existe um astuto e obstinado protagonista externo, que manipula mercenários aliados internos, e que está bem feliz com sua eficácia em promover nossa ruína interna. E conta com esse nosso embotamento de ideias e o crescimento de nossa intolerância para prosperar e disseminar sua hegemonia sobre o planeta.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Viagens psicotrópicas

Publicado no Diário dos Campos em 11/06/2016

          As substâncias ditas psicotrópicas, entre elas a maconha, são aquelas que agem sobre o sistema nervoso central e alteram nosso psiquismo, ou seja, a forma como pensamos, fazemos, percebemos, reagimos e, sobretudo, sentimos. Entre os tipos de drogas psicotrópicas, a maconha é incluída no grupo daquelas que são perturbadoras da atividade do sistema nervoso central. Trata-se de uma mudança qualitativa, o cérebro passa a funcionar fornecendo uma leitura perturbada da realidade.

          Por isso o uso das drogas psicotrópicas proporciona as faladas “viagens”. A mesma realidade vista e sentida de uma forma alterada pela droga é como se fosse o descobrimento de uma nova realidade, como aquela que é buscada numa viagem a um outro lugar, um outro país. Mas seriam estas duas viagens comparáveis? Ou seria uma delas a fuga de uma realidade inconveniente, muitas vezes cruel, e a outra um alargar de horizontes que acrescenta à visão que temos do mundo real e da humanidade?

          O uso das drogas psicotrópicas para as “viagens” que elas propiciam é crescente, principalmente entre nossos jovens, nas escolas, universidades, festas e lazer. Talvez porque a realidade que estejamos oferecendo aos nossos jovens seja por demais decepcionante e frustrante, e as drogas ajudem a criar a temporária ilusão de uma realidade menos dura. Então a atração pela droga de fuga torna-se por demais tentadora.

          Mas a que custo? As drogas trazem grande risco de dependência física ou psíquica, de abertura do caminho para drogas ainda mais nefastas e, o pior, de encarceramento dos jovens na implacável rede do tráfico. De consumidor a devedor, de devedor a “avião”, de “avião” a traficante, deste a presidiário ou um nome no obituário é uma trajetória muito provável. Jovens talentosos e promissores seduzidos para a fuga da dura realidade perdem o foco, desacreditam da sociedade e de todos os caminhos ditos “normais”, passam a cometer pequenos delitos, e muito frequentemente acabam por percorrer o lamentável caminho que os levará até o ceticismo, a criminalidade e suas drásticas consequências.

          O caso das faculdades e universidades, se não o mais crítico, é alarmante. Nessa época os jovens encontram-se particularmente vulneráveis à sedução da droga. É no curso superior que os jovens deixam de ser adolescentes e tornam-se adultos. Uma transposição de muitos conflitos e inseguranças íntimas, agravadas atualmente pelos desatinos de nossa civilização. E é uma etapa em que em tese os jovens estão adquirindo a qualificação na profissão que virão a exercer. No caso das universidades públicas, toda a sociedade, desde o mais humilde até o mais ilustre e abastado cidadão, estão investindo, com seus impostos, na formação de um profissional de quem se espera uma retribuição para o bom funcionamento da comunidade em que vivemos. Que tem muitos problemas a serem resolvidos. O desvio destes objetivos, a fuga da realidade, no caso, configura a quebra da responsabilidade de fazer bom uso de todo esforço na formação de um bom profissional.

          Como alertar, ou melhor, convencer os jovens de que, apesar dos muitos reveses que certamente sobrevirão, enfrentar a crua realidade pode ser um caminho mais promissor, seja para transformar esta nossa deteriorada sociedade, seja para a realização e emancipação pessoal? O que dizer a eles? Que as drogas enganam, criam uma ilusão, mas o seu caminho é o do fracasso e do encarceramento? Ou que mais vale um franco confronto com as muitas iniquidades cotidianas, cujas ainda que raras vitórias compensarão largamente as inumeráveis derrotas, graças à sensação de uma lenta mas consistente transformação da bizarra civilização que vivemos?

          O caminho que o sistema tem encontrado para coibir o uso das drogas psicotrópicas é a lei e a repressão. A produção, o porte, o uso, o tráfico são crimes punidos com penas severas. Apesar disso, parece crescer o número de adeptos e defensores do uso das drogas, como se elas pudessem libertar o indivíduo e modificar a realidade. Será? Preferiria conseguir convencer os jovens que, sim, empenhem-se firmemente em modificar a realidade, revolucionem-na! Mas não fujam dela, transformem-na, com revoluções verdadeiras, e não fugazes e químicas ilusões de mudança.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Anatomia da crise

          Nunca se ouviu falar tanto de crise no Brasil. Talvez só na Alemanha nazista tenha sido tão colocado em prática o princípio de que uma inverdade incansavelmente repetida passa a ser percebida como uma verdade. Falava-se na crise do governo Dilma, agora fala-se no governo interino que vai tirar o país da crise. Será?

          O governo interino já vai mostrando a que veio: mudanças na aposentadoria, arrochando os direitos dos trabalhadores; aumento de impostos; desvinculação de orçamentos, ou seja, diminuição das verbas, para saúde, educação, moradia e outros setores básicos; o ato falho, depois remediado, de extinguir o Ministério da Cultura (acabar com a educação e a cultura é o caminho para manter as massas ignorantes e manipuláveis); a indicação de um ministro expoente do governo interino que é flagrado afirmando que é preciso acabar com as investigações contra a corrupção, e que diante das câmeras nega descaradamente suas afirmações; as declarações de intenção de privatização de setores estratégicos que, pelo menos em parte, ainda resistem estatais, como educação, saneamento, energia e petróleo; as afirmações sobre mudança de leis trabalhistas em prejuízo dos trabalhadores... Até onde vai esta lista de deslealdades com o país e seu povo?

          E o pior, o governo interino age de uma forma que não lhe cabe outra expressão que não golpe, ou, como dizem alguns, um monumental retrocesso. Alguns não querem que a palavra “golpe” seja utilizada. Mas como é possível que um vice-presidente que foi eleito com um programa de governo, ao ser alçado interinamente à presidência passa a praticar o programa de governo da ala que perdeu as eleições? Onde está o caráter desse vice-presidente, e de todos que o apóiam, ao contrariar o resultado das eleições aproveitando-se de um momento de governo interino que poderá deixar de existir em algumas semanas?

          E o que está por trás do golpe? Historiadores já têm insistido que o Brasil, país que por mais tempo manteve o regime escravocrata, ainda não conseguiu emergir do abismo social entre casa grande e senzala. A maior parte de nossas elites econômicas, sociais e culturais comporta-se como senhores de engenho que consideram o país sua propriedade, e não abrem mão do “direito” de explorar e oprimir aqueles que consideram pertencentes à senzala, ou seja, o povo. São elites atrasadas, que ainda não perceberam que as sociedades mais equitativas têm menos conflitos, menos crimes, mais harmonia e qualidade de vida, e nelas todos saem beneficiados.

          E a propalada crise? A crise é resultado de uma sabotagem também colossal. A começar pela grande mídia, que repete o bordão crise a todo instante, que manipula informações em favor de uma parcialidade assustadora. Não é exagero a expressão “massacre midiático” que se tornou comum nos últimos anos. E a elite econômica faz sua parte. Fiel ao seu apego à casa grande, não deseja ver a ascensão econômica e social da senzala. Não apóia o governo que age em nome dessa ascensão. Boicota investimentos produtivos, promove o desemprego, propicia a inflação e o retrocesso também no crescimento econômico do país.

          Criou-se a crise para justificar o golpe. E o golpe, onde nos levará?

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Decifrando a charada

          A data era 1973, estávamos no terceiro ano do curso de Geologia da USP. Na disciplina de Paleontologia fizemos uma excursão de estudos para Ponta Grossa, para coleta e análise de fósseis devonianos que são abundantes, e mundialmente famosos, nas rochas do subsolo da cidade.

          Quase nada me lembro daquela viagem. Lembro que, graças à presença de um professor que fora do exército, conseguimos pernoite e café da manhã num dos quartéis da cidade, já não me lembro qual. Dormimos num alojamento muito bem arrumado, as camas tinham grossos e verdes cobertores de algodão, apropriados para o frio que fez naquela noite. No café da manhã, iogurte natural e bolos, um dos colegas alunos comentou que aquilo era café da manhã de oficiais, estávamos tendo tratamento especial.

          À saída do quartel, após o café da manhã, nosso ônibus, com quarenta estudantes a bordo, foi barrado na guarita da portaria. Após inspeção, constatou-se que faltava um dos cobertores no dormitório. O ônibus não seguiria viagem enquanto o cobertor não aparecesse. E ele logo apareceu, tinha sido “esquecido” dentro da mochila de um dos colegas mais atrevidos. E seguimos viagem.

          Mas a recordação forte daquela viagem não foi o episódio do cobertor, nem os fósseis devonianos. Na noite em que pernoitamos na cidade, depois da janta e antes de nos recolhermos ao quartel, num grupo de uns vinte alunos saímos perambulando pelas desertas ruas próximas até encontrarmos um boteco ainda aberto, que servia a cerveja que estávamos a procurar. Depois de algumas cervejas e do emergir da alegria e descontração que um tal encontro desperta, o Saul inventou de organizar um jogo, um desafio para decifrar uma charada. E habilmente organizou os colegas em torno de uma mesa, sobre ela esparramou alguns palitos de fósforos e disse que eles representavam um número de zero a dez. Tínhamos que descobrir qual era o número.

          Após algumas tentativas alguém acertava ao acaso, e Saul ia rearranjando os palitos, até que alguém acertava de novo. Rearranjo após rearranjo, Saul revelava-se um artista. Ora aumentava ora diminuía o número de palitos, chegava a ter dezenas ou apenas dois ou três deles arranjados sobre a mesa, redirecionava os palitos, afastava-os, aproximava-os, girava-os, unia ou separava as cabeças inflamáveis, fazia parecer estar exercendo uma complicada arte de cálculo com muitas variáveis, para chegar ao número cifrado no arranjo dos palitos. E os números eram os mais inesperados! E ninguém conseguia descobrir a lógica, os acertos eram casuais, por tentativa e erro.

          Até que um dos colegas mais matreiros, o Kalu, descobriu! Saul pediu-lhe que fizesse segredo até que os demais fossem descobrindo, o que de fato foi acontecendo. A última a não decifrar o enigma foi a Cristina Mulata, uma das três meninas na turma onde dominavam os meninos. E isso foi motivo de regozijo geral. Logo ela, uma das mais cdf’s e queridas da turma, e uma menina, foi o alvo de todas as zombarias da noite. E a Mulata estava inconformada, tentara todas as possibilidades lógicas para decifrar o arranjo dos palitos, sem sucesso. Até que desistiu.

          O que ela não percebera, na sua honestidade e ingenuidade, é que os palitos eram só um engodo para distrair os desatentos. O número a ser descoberto era na verdade mostrado pelos dedos não recolhidos que as duas mãos do Saul discretamente colocadas sobre a borda da mesa exibiam. Uma maliciosa distração, que valeu-nos uma noite inesquecível naquele boteco que não consegui reencontrar vinte e três anos depois, quando o destino quis que eu viesse fixar residência em Ponta Grossa, então já pai de família e professor.

          Mas quando me lembro daquela espirituosa charada do saudoso Saul, não consigo deixar de pensar que, a todo momento, somos ludibriados por digressões menos inocentes. Praticadas pelos nada ingênuos dirigentes desta nossa distorcida sociedade.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Monotremos e utopistas

Os monotremos são nossos ancestrais mamíferos, que surgiram há cerca de 200 milhões de anos atrás, no tempo em que dominavam o planeta os répteis, alguns enormes e vorazes predadores. Os monotremos, por sua vez, eram pequenos, alguns com menos de uma grama de peso. Acredita-se que se alimentavam de insetos, nozes e frutas. Existem ainda espécies viventes até hoje de monotremos, a mais conhecida é o ornitorrinco australiano, que parece uma bizarra mistura de réptil, pássaro e mamífero.

No tempo dos primeiros monotremos, um viajante do espaço que observasse a primitiva vida na Terra talvez imaginasse que aqueles pequeninos seres não tinham chances de sobrevivência. Além de sua pequenez, os filhotes nasciam ainda totalmente despreparados para a vida, tinham de ser amamentados e cuidados por suas zelosas mães até que pudessem enfrentar por si sós as agruras da sobrevivência, àquela época muito mais cheia de armadilhas mortais que atualmente.

Mas, quem diria, os monotremos deram origem aos mamíferos, entre os quais nós, seres humanos. E costumamos dizer que somos a espécie dominante no planeta. Será?

Não há como deixar de comparar os monotremos com os utopistas, seres humanos assim chamados por defenderem utopias, ou seja, aquelas quimeras muito evoluídas para além da cruel realidade em que vivemos hoje. Tal como os monotremos, os utopistas ainda são uma discretíssima minoria, parecem frágeis, vítimas indefesas num mundo em que os evoluídos mamíferos, nós, seres humanos comuns, mais parecemos agir como os vorazes répteis do tempo dos monotremos.

Mas talvez, bem como os monotremos, os utopistas sejam a semente de uma linhagem evolutiva que vai gerar uma nova espécie destinada a prosperar, e quem sabe até dominar, este mundo em que vivemos. Ao longo da história, os utopistas, que pregam solidariedade, amor, reverência à natureza e ao próximo, desde Cristo até Chico Mendes, têm sido incompreendidos, discriminados, perseguidos e assassinados.

Mas a lei da evolução parece ser mesmo implacável. O novo pode surgir com ares de fracasso, mas basta-lhe a prova do tempo para mostrar a que veio. A evolução é paciente, perseverante, inexorável.

No caso dos monotremos, duas centenas de milhões de anos foram necessárias para que surgisse a complexa e pensante espécie que denominamos Homo sapiens. E no caso dos utopistas? Quanto tempo será necessário até evoluírem para se tornarem a espécie mais evoluída do planeta? Com certeza terá que ser muito menos tempo. Porque se não evoluírem logo, não restará mais planeta a ser habitado.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Que Brasil queremos?

Publicado no Diário dos Campos em 13/05/2016

         Nestes dias de uma propalada crise e de grave questionamento sobre os rumos do país, podemos contrapor dois modelos: o de um país de cooperação e solidariedade, com a preocupação da justiça, inclusão social e soberania de um lado, ou, por outro lado, um país de irrestritas oportunidades, de livre competição, mas com inevitáveis efeitos na concentração de riquezas, na pobreza alastrada e na subordinação a interesses internacionais.

          Se fosse para utilizar rótulos, seria o país socialista de um lado versus o país neoliberal do outro. Embora esta dicotomia traga implícita a artificialidade das tentativas de classificação de situações por demais complexas, ela é muito esclarecedora sobre o embate de ideologias e modelos de país que estão em discussão neste momento.

          Para refletir sobre os modelos de país, vamos de início desmascarar o problema: não se trata de identificar qual partido, qual ideologia ou quais homens públicos são os responsáveis pela corrupção que corrói a moral e as finanças do país. Infelizmente, a corrupção é um mal histórico, sistemicamente enraizado na sociedade brasileira. E o necessário enfrentamento da corrupção, se tem intenção de ter sucesso, não pode iniciar com a farsa de querer atribuí-la a somente um dos lados do embate político-ideológico em curso. O verdadeiro embate dá-se noutra esfera, que parece alcançar as profundezas da natureza humana: somos mais inclinados a uma sociedade de maior cooperação e solidariedade, para tanto aceitando limites de ganho pessoal, ou somos mais adeptos de uma sociedade de oportunidades ilimitadas, mas com as inevitáveis consequências da exacerbada competitividade e seus impactos ambientais e injustiça social?

          Apesar do inquestionável massacre midiático, a opção pelo país mais solidário, inclusivo e soberano ganhou as eleições de 2014, graças aos votos dos estados mais pobres e de parcela considerável da população dos estados mais ricos, que entende que a solução dos crescentes conflitos e crises sociais e ambientais que vivemos depende de um arranjo social mais justo e inclusivo.

          Mas os adeptos do modelo de livre oportunidade e competitividade não se conformam com a derrota nas urnas, e, como é natural para sua índole competitiva, não aceitam esperar pelas próximas eleições para tentar viabilizar nas urnas seu modelo de país. O que se observa hoje no Brasil é uma extraordinária sabotagem da governabilidade, da economia e da informação, com manipulação de boa parte da opinião pública.

          Nosso planeta encontra-se em profunda crise. Guerras, atrozes atos terroristas, correntes extremistas e segregacionistas só fazem crescer. Os esforços para frear a degradação ambiental e o aprofundamento das desigualdades sociais estão perdendo a batalha para a ambição irresponsável. O país autor do maior atentado terrorista da História, os genocídios de Hiroshima e Nagasaki, ainda é considerado o guardião dos direitos humanos e da liberdade no planeta! Enquanto comete os mais tenebrosos atos em prol da manutenção da sua hegemonia mundial conquistada na Segunda Guerra Mundial (ver o livro “Confissões de um assassino econômico”, de John Perkins, Cultrix, 2005).

        Diante deste preocupante quadro global, o Brasil é um país de imensas riquezas naturais e de diversidade racial e cultural que podem ser um diferencial sem igual para que este seja o país da solidariedade e da qualidade de vida. Mas para isso é necessário que os cidadãos sejam mais cooperativos e menos competitivos. Isto significaria estar sendo fiéis aos verdadeiros ideais cristãos, islâmicos, budistas, judeus, enfim todas as religiões que anseiam pelo ser humano emancipado. Significaria vencermos nossos instintos de sobrevivência herdados de animais acuados que já fomos e assumirmos responsabilidade de discernimento, cooperação e engajamento de seres verdadeiramente civilizados em que estamos nos tornando.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Vinganças divinas II

(este texto dá continuidade ao Estória da criação, postado em 20 de novembro de 2015, e ao Vinganças divinas, postado em 4 de fevereiro de 2016)

          Passado algum tempo no Planeta Terra, que nas intemporais plagas celestiais mal teria dado para retomar o fôlego após a última conversa, o fiel ajudante Pedro voltou a procurar o Criador, visivelmente preocupado:

          ¾ Mestre, Mestre, definitivamente nosso experimento na Terra parece estar regredindo...

          ¾ Calma, Pedro, calma. O que está acontecendo?

          ¾ Ora, depois de um final de Século XX com auspiciosos sinais de prosperidade e liberdade, o início do Século XXI voltou a nos trazer sinais preocupantes. Além do incremento de guerras, intolerâncias, atentados e iniquidades pelo mundo, constata-se um contínuo crescimento das chamadas direitas totalitárias, que já levaram a atrocidades, ditaduras...

          ¾ Repetem-se os erros, Pedro? A humanidade custa a aprender, já sabíamos disso.

          ¾ Mas agora estão passando dos limites, Mestre. No Brasil, aquele nosso país experimento dento do nosso Planeta Terra experimento, está se consumando uma das maiores iniquidades da espécie humana. Lembra-se que, após décadas de ditadura, os chamados anos de chumbo, o país chegou a eleger um homem do povo? E depois uma mulher! E que eles eram governantes que tinham como metas de governo a distribuição de renda, e inclusão social e a soberania do país?

          ¾ Claro que lembro, Pedro. Acabamos de conversar sobre isso. Não estou assim tão decrépito! As coisas não andavam bem por lá, até determinamos a epidemia do zika vírus. Piorou?

          ¾ Sim, Mestre, está piorando! Além do zika, da dengue e de uma tal febre chikungunya, providenciamos o ressurgir da tal gripe H1N1, mais mortal que nunca. E as iniquidades do país continuam superando todos os absurdos de que se tem notícia.

          ¾ Explique-me, Pedro.

          ¾ Acontece que a poderosa elite privilegiada do país, a chamada casa grande, uniu-se com a grande mídia e os poderes legislativo e judiciário. E juntos estão transformando uma pretensa luta interna para vencer um mal secular, a corrupção, na luta para derrubar o governo daquela presidenta eleita pelo povo, que queria acabar com a pobreza e o colonialismo no país.

          ¾ Ora, Pedro, mas isso me parece bem habitual. Já sabemos que, ao longo da história, as elites não querem mudanças, e reagem com violência às tentativas de diminuição da distância que separa pobres de ricos. E com astúcia. Sempre conseguem iludir uma parte do povo de que estão lutando pelos interesses do país e dos pobres. Que velhacos! E que povo manipulável!

          ¾ Mas Mestre, no Brasil estão exagerando. Aquela mulher que se tornou presidenta graças ao apoio de seu antecessor, o presidente operário, está sendo injustiçada e condenada pela elite casa grande, por um parlamento corrupto, uma grande mídia mentirosa e a parcela da população que não consegue discernir as coisas. E logo essa presidenta, que desde jovem foi uma idealista militante pela liberdade e soberania do país, e que por isso foi presa e torturada!

          ¾ Temos que ter paciência, Pedro. Já sabemos que a Terra é um planeta que aprende com os erros, que a humanidade precisa colher os frutos amargos de seus desacertos para encontrar o caminho da verdadeira evolução.

          ¾ Mas Mestre, vamos deixar as coisas assim como estão? Vim procurá-lo porque nosso Departamento de Compensação de Iniquidades está desorientado, já não sabe o que fazer diante de tantas afrontas. Veja que até circulou pelas redes de besteirol dos humanos que se cercassem o parlamento com um muro, seria o maior presídio do país! E se cobrissem com uma lona, seria o maior circo!

          E os dois riram como crianças, algo incomum lá pelas bandas celestiais. Depois olharam-se com jeito de troça e escárnio, os músculos das faces ainda relaxados, os olhos brilhantes de uma aguda e maliciosa vivacidade.

          ¾  Creio que desta vez não precisaremos intervir, Pedro. Os acontecimentos vão seguir seu rumo natural. O Brasil já está voltando a ser motivo de espanto e zombaria de todo o mundo, como aconteceu na derrota de 1X7 para a Alemanha. Agora a goleada foi no parlamento. A iniquidade foi quem ganhou de goleada. Mas um dia, Pedro, um dia, o povo, o país, vão envergonhar-se desse episódio de sua história, tão eivado de erros e de infâmias, e de seus desdobramentos. Então vão arrepender-se, e procurar caminhos mais civilizados.

          ¾ É, Mestre, civilidade é o que parece estar faltando...

          ¾ O valor da civilidade só é reconhecido quando a perdemos. É esta a lição a aprender no momento.

          ¾ Que assim seja, Mestre, que assim seja. Então, vamos ver...


          E Pedro retirou-se. Sozinho, o Criador tinha o semblante preocupado, as sobrancelhas franzidas. Estariam conduzindo de forma acertada aquela arriscada experiência no Planeta Terra?

quarta-feira, 13 de abril de 2016

VCG - mesquinharia ou pirataria?

          A Viação Campos Gerais (VCG), empresa que detém o monopólio do transporte coletivo em Ponta Grossa, está impondo uma novidade que é um espantoso retrocesso: os alunos não têm mais direito à consagrada meia tarifa fora do restrito horário de suas aulas. Se têm aulas pela manhã, não têm direito à meia tarifa à tarde, se têm aulas à tarde, não têm direito pela manhã, se têm aulas à noite, não têm direito durante o dia.

          Mas o que significa esse retrocesso imposto pela empresa? Talvez signifique um esforço de aumentar seu lucro? Então teríamos de considerar que se tratasse de um caso de mesquinharia? Ou talvez signifique um esforço deliberado para prejudicar o desempenho escolar de nossos jovens provenientes das camadas mais carentes da população? E neste caso teríamos que considerar que se tratasse de uma pirataria, e assim sendo o que estaria sendo pilhado seria a educação de uma parte da juventude, a mais pobre, que está sendo preparada para conduzir nosso país?

          Seriam os dirigentes da VCG que inventaram este retrocesso pessoas que nunca frequentaram uma escola? Ou nunca precisaram utilizar o transporte coletivo? Não saberiam eles que, além do horário das aulas, os alunos, principalmente os dos ciclos superiores, no ensino médio e na universidade, também frequentam as bibliotecas para pesquisas e consultas, reúnem-se com colegas para estudar e elaborar trabalhos, participam de grupos de estudo e de iniciação científica, fazem estágios obrigatórios, assistem a encontros científicos, participam de centros acadêmicos estudantis e de atividades culturais ou sociais nas suas instituições de ensino?

          E as direções das instituições de ensino, principalmente das universidades e faculdades da cidade, qual seria seu papel perante tal retrocesso? No meu entender, as diretorias e reitorias, bem como o Núcleo Regional de Educação, deveriam estar questionando esta absurda imposição da empresa de ônibus. Já lhe basta o questionável privilégio do monopólio.

          E os estudantes penalizados com a proibição da meia tarifa? Bem, a estes meu conselho é que se organizem em suas entidades estudantis, centros acadêmicos, diretórios, e exijam a devolução do direito consagrado que lhes está sendo usurpado. Reivindiquem perante as direções das instituições de ensino cobrando-lhes um posicionamento diante da VCG, reivindiquem diretamente à VCG, reivindiquem perante a prefeitura, que é quem contrata a empresa de ônibus. E se isto não der resultados, manifestem-se perante a população, vão à rua dar visibilidade à usurpação de seus direitos e à improbidade da empresa de ônibus.

          Em outros locais do Brasil e do mundo a reivindicação hoje é pelo passe livre, e não pela meia tarifa. Já se pode considerar um atraso reivindicar a meia tarifa plena. Um atraso maior, beirando a ignorância, é o retrocesso de restringir a meia tarifa. A não ser que esteja prevalecendo o entendimento de que é necessário que a população mais pobre, aquela a quem faz diferença a tarifa do ônibus, tenha mesmo que ter a educação prejudicada, e tenha que permanecer na ignorância.

          Será este o caso?

domingo, 27 de março de 2016

Crucificados

Publicado no Diário dos Campos em 29/03/2016

          Cristo foi crucificado pela multidão. Homem simples que pregava o amor com firmeza, teve muitos admiradores e seguidores, e também uma multidão de detratores e ferozes adversários. Quando Pilatos lavou as mãos e entregou a sorte de Cristo às massas, estas escolheram salvar Barrabás, um notório salteador, homem do povo, pecador como as massas.

          Quais teriam sido as razões para a multidão condenar um homem santo e libertar um notório bandido? Talvez pelo fato de as massas identificarem-se mais com este último, com o qual compartilhava pecados da mesma natureza?

          Ao longo da história encontram-se muitos exemplos de homens e mulheres santos, ou pelo menos com algumas notáveis boas intenções, sacrificados pelos seus adversários. Joana D’Arc foi executada por rivais aos 19 anos, em 1431, por juntar armas ao lado de causas populares e em prol da soberania da França frente aos interesses ingleses, estrangeiros sempre dominadores.

          Giordano Bruno foi condenado pela inquisição por defender ideias consideradas heréticas, como a evolução das espécies e a imensidão do universo. Foi queimado em Roma em 1600, porque era um homem capaz de ver a verdade à frente de seu tempo.

          Gandhi, apesar de também ter muitos seguidores entre as gentes simples, sem o querer fazia inimigos desconhecidos. E por suas ideias libertadoras e pacifistas foi assassinado na Índia em 1948.

          Luther King foi outro libertador. Teve a coragem de desafiar a arrogante e truculenta hegemonia branca de sua época pregando igualdade racial sem violência. Coragem que lhe valeu o apoio dos negros, e o ódio de segregacionistas brancos. Foi assassinado em Memphis em 1968.

          John Lennon falava de amor e liberdade e sua linguagem era a música. Encantou gerações de jovens que o idolatravam, mas também despertou inexplicáveis ódios. Foi assassinado em 1980 em Nova Iorque.

          Chico Mendes foi outro homem simples que se dispôs a lutar pelos direitos dos trabalhadores rurais e em defesa das matas do Acre. Utilizava a tática dos empates, manifestações pacíficas em que os seringueiros defendiam as árvores com os próprios corpos frente ao avanço das máquinas dos desmatamentos. Foi assassinado com tiros de escopeta em dezembro de 1988.

          Dorothy Stang, religiosa estadunidense naturalizada brasileira, também atuava na Amazônia junto a trabalhadores rurais, buscando defender seus direitos e a barrar grilagens e desmatamentos ilegais. Foi assassinada numa estrada de terra no interior do Pará numa manhã de fevereiro de 2005.

          O traço comum entre essas celebridades é o fato de terem sido assassinados por tentar mudanças no mundo, seja lutando por maior justiça social ou maior amor entre os seres humanos, seja defendendo a verdade e a natureza que alimentam o corpo e a alma humana. E o verdadeiro amor inescapavelmente conduz à justiça. Talvez por esse motivo tenham sido todos assassinados? Mas qual é essa razão, ou falta de razão, que faz com que homens e mulheres que dedicam sua vida ao amor, à verdade, à justiça social e à liberdade sejam odiados a ponto de serem assassinados, e que os salteadores do povo sejam poupados?

         Se temos alguma consciência, é bom que dediquemos uma boa reflexão sobre isto. Estamos a celebrar o sacrifício de Cristo, que aconteceu há cerca de 2000 anos. Mas estes nossos conturbados tempos têm também suas celebridades idealistas que amealham ódios, e seus absolvidos salteadores do povo. 

sábado, 12 de março de 2016

Terráqueos e lunáticos

Publicado no Diário dos Campos em 12/03/2016

          Algumas religiões e filosofias acreditam que a humanidade seja na verdade formada de almas reencarnadas vindas de outros mundos, uns mais evoluídos outros menos que a Terra. O Criador aparentemente teria buscado juntar diferentes talentos, entre eles determinação e civilidade, na tentativa de que, inspirando-se uns aos outros, vingasse uma humanidade com a firmeza de caráter e o humanismo almejados pelo reino dos céus.

          O que se vê nestes nossos turbulentos dias de adolescência da humanidade parece indicar que tal crença tem fundamento. Fazendo uma grosseira separação, de um lado temos lunáticos que se empenham ou se solidarizam com causas humanitárias e ambientalistas, são contra intolerâncias e discriminações, ansiam por inclusão social, distribuição de riquezas e direitos iguais, apóiam campanhas a favor de animais, das matas e por dietas vegetarianas, são pacíficos e procuram preservar princípios éticos valorizando a equidade, a honestidade, a honra... O defeito maior deste grupo talvez seja a falta de combatividade, de têmpera que seria necessária para defender seus princípios. Seria o tal grupo da “maioria silenciosa”, que vê roubarem e pisarem as flores de seu jardim, mas nada faz.

          De outro lado temos terráqueos, para quem a competitividade e o sucesso são as regras fundamentais do planeta. Não medem consequências para atingir suas metas, são sarados, confiantes e guerreiros, são agressivos, egocêntricos e individualistas, depredam o planeta e subjugam animais e outros humanos, são vorazes comedores de carne, consideram natural que pertençam a uma casta superior, que deve dominar a outra classe, esta uma espécie de vassalagem reminiscente dos tempos de escravidão, ainda vigentes. A virtude maior deste grupo seria a garra com que encetam seus empreendimentos, dispostos a tudo para vencer. O defeito maior, a prepotência, a truculência, a ignorância.

          Se nos damos conta que parece mesmo que a um destes dois grupos pertence cada ser humano de que temos notícia, convencemo-nos de que a intenção do Criador era mesmo juntar raças diferentes para tentar criar uma nova raça, reunindo seus talentos, a garra e a determinação de uns com o humanismo e a civilidade de outros. Agora perguntemo-nos, a qual grupo pertencemos, ou melhor, a qual grupo pertencem nossas diferentes atitudes? E o experimento divino, visando a evolução da humanidade, está funcionando?

          Quero crer que seja cedo para respondermos a estas perguntas. Parece-me mesmo que a humanidade esteja em sua adolescência, em rápida transformação, ainda não sabemos no que vai dar. Se um adulto mais para os terráqueos, se mais para os lunáticos, se uma triste soma das fraquezas de ambos, ou se uma feliz combinação dos talentos de ambos. Este último caso é a expectativa do Criador.


          Tomara que esta última alternativa seja a que venha a se realizar! Tomara!