segunda-feira, 31 de maio de 2021

Polarização ideológica – a fortaleza sitiada

 

Principalmente nos momentos de crise, como a situação política e pandêmica que estamos vivendo neste outono de 2021, nossas convicções tendem a radicalizar-se e entrincheirar-se atrás da muralha de nosso ego. Tudo que contraria nossas crenças é o inimigo, a ameaça que tem que ser mantida afastada. Mas uma fortaleza sitiada, sabemos pela História, não sobrevive indefinidamente sem o contato com o exterior. Ela precisa dos indispensáveis suprimentos. Um ser humano é como a fortaleza: ele precisa interagir para sobreviver, para evoluir.

Há maneiras diferentes de solapar uma fortaleza fortificada, ou uma arraigada ideologia. A História nos conta o episódio do cavalo de Troia: o inimigo foi introduzido dentro da fortificação disfarçado de uma honraria. Em festa adentraram-no pelos portões. Um embuste. Outra maneira, mais penosa e menos eficiente, seria lançar todas as forças contra as muralhas, no afã de sobrepujá-las. À custa de severas perdas e grande risco de fracasso. Ainda outra maneira seria a perseverança e a paciência. Uma fortaleza sitiada há de em algum momento ter de negociar o abastecimento de seu povo, ou um armistício. Se não o fizer, terá de expor-se à tarefa de romper o sítio, talvez não tenha força suficiente para tanto.

O pensamento humano parece ser a fortaleza sitiada, avesso às ideologias que o cercam e ameaçam a segurança de suas crenças. Apesar dos humanos se considerarem racionais, não alcançaram ainda razão suficiente para compreender que a reflexão e o embate civilizado de pontos de vista é o que tem nos conduzido à evolução da espécie. Não fosse assim, ainda estaríamos vivendo em cavernas e consumindo carne crua, talvez a dos nossos companheiros tombados.

Na crise atual que vivemos temos visto os acirrados embates ideológicos; há dois nítidos oponentes, não se sabe bem quem está sitiando e quem está sitiado. É um confronto às vezes surdo, um lado não escuta o outro, e as perdas são muitas. Não só vítimas da surdez, que aparta até pais, filhos e irmãos. No caso atual, inúmeras perdas fatais, pela irracional ideologização do enfrentamento da Covid-19, sobretudo nos EUA e Brasil.

O que fazer neste momento de impasse, em que cada lado julga ser o dono da verdade? Talvez o cavalo de Troia nos sugerisse um caminho; mas ele significa um ato de logro, de guerra e destruição. Haveria outras maneiras de ultrapassar os portões da fortaleza sem ser o embuste do cavalo de Troia? Por exemplo, entrar pacificamente, como o faria um viajante, e semear, com sobriedade e firmeza, a ideia da reflexão, do respeitoso confronto de convicções, em prol da evolução?

Cristo insinuou-se pacificamente, mas com firmeza e propósito, na hermética estrutura de poder de seu tempo. Veio justamente procurar convencer-nos que o caminho da reflexão e da solidariedade é preferível ao embate. O amor e não a guerra. Por isso foi crucificado. E após dois mil anos ainda não assimilamos seus ensinamentos. Talvez sejam ainda necessários mais dois mil anos? Seria ele, de novo, crucificado?

Um confronto com, afinal, um vencedor, não seria preferível? Muitos enfrentamentos já aconteceram ao longo dos séculos; os vencedores num dado momento são os derrotados noutro. E no século XXI, com as armas de destruição que criamos, não podemos mais nos arriscar a um confronto decisivo. Ele seria definitivo para a Humanidade.

Se o ser humano tem de fato algo de racional que o distingue, pensar sem a paixão que nos cega nas polarizações que vivemos há de nos apontar os caminhos para domarmos o ego, superarmos desavenças. E, enfim, prosperarmos. Como sociedade e como indivíduos.

sábado, 22 de maio de 2021

O cinema e o “espectro da total dominação"

 

A desordem mundial  ̶  o espectro da total dominação (Civilização Brasileira, 2016) é título de imperdível livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira, renomado cientista político brasileiro, lastimavelmente falecido em 2017. O livro nos esclarece as razões dos muitos conflitos e golpes que têm ocorrido no mundo nas últimas décadas: a aparente desordem mundial na verdade tem um objetivo muito bem definido ─ a total dominação. E o cinema? O que ele tem a ver com essa orquestrada desordem?

O filme A espiã vermelha (Inglaterra, 2018, direção de Trevor Nunn) é um que nos faz revelações surpreendentes: baseado em fatos reais, aborda os motivos de uma dedicada e confiável pesquisadora inglesa, envolvida no desenvolvimento da bomba atômica, para repassar informações essenciais ao bloco soviético. A trama nos faz refletir sobre a bomba atômica. Ela foi sem dúvida a arma do maior ato terrorista da história. As explosões de Hiroshima e Nagasaki não visaram aterrorizar somente o já combalido Japão. Visaram aterrorizar o mundo todo. Se não tivesse acontecido a polarização nuclear entre o bloco soviético contra os EUA e aliados, graças à “traição” da espiã inglesa, talvez hoje o mundo fosse dominado por uma tirania hegemônica pior que o nazismo.

Isto remete a outro filme, Hitler – uma carreira (Alemanha, 1977, direção de Joachim Fest). Neste documentário, a principal conclusão é que Hitler construiu sua meteórica ascensão política, a partir de um início medíocre, graças a inflamados e estudados discursos que visavam empolgar e arrebatar a multidão, ressentida pelas derrotas e humilhações desde a Primeira Guerra Mundial. O desvario alemão ao abraçar o nazismo alicerçou-se na habilidosa manipulação de um povo oprimido e ofendido.

E o desvario estadunidense de cometer o catastrófico ato terrorista de pulverizar duas cidades inteiras, com suas escolas, hospitais, lares, templos religiosos, toda a população que vivia à margem da guerra? A propaganda tem repetido que o bárbaro ato estadunidense justificou-se pelo traiçoeiro ataque a Pearl Harbor, sem uma prévia declaração de guerra. Uma suposta covardia que teria enchido de razão o ressentimento e a vingança do povo estadunidense. Uma insensatez comparável à dos alemães. A diferença é que estes últimos perderam a guerra.

É preciso rever a História pelo menos desde o século XIX para compreender como a milenar cultura japonesa e seu território foram sendo asfixiados pela expansão do pensamento e do comércio ocidental. E não nos esqueçamos, Pearl Harbor foi um alvo militar, uma ameaça à soberania japonesa, historicamente sabotada. E o ataque visou, sem sucesso, afundar os porta-aviões estadunidenses, armas de ataque que visavam o controle hegemônico do Pacífico, e que não foram atingidos pois não estavam na base naval atacada. Já Hiroshima e Nagasaki eram alvos civis, duas cidades. É como se, ao invés de Pearl Harbor, os japoneses tivessem aniquilado Seattle e Dallas.

Qual é esse pensamento estadunidense, o qual talvez devamos temer mais que a evitada dominação do nazismo mundo afora? Esse pensamento, essa obstinação imperialista, é chamada de “doutrina do destino manifesto”, que moveu os pioneiros a estenderem o território estadunidense de oceano a oceano à custa do massacre dos nativos e de guerras de conquista contra franceses, espanhóis e mexicanos.

O destino manifesto apregoa que os colonizadores estadunidenses são um povo eleito, destinado a dominar. O mundo deve sujeitar-se e obedecer esse povo fadado ao mando. Desde antes mesmo do século XIX, a doutrina do destino manifesto tem conduzido e justificado os atos de terror dos EUA e seus principais aliados, que, alegando defender-se, não hesitam em invadir, bloquear ou sabotar os países pelo mundo afora que ousem questionar-lhes a obstinação imperialista.

Além do poderio militar e econômico, a outra força letal dos convictos do destino manifesto para dominar o mundo é a propaganda. E o cinema está entre uma de suas armas mais eficazes. O cinema nos vende uma falsa imagem de um EUA de glamour, liberdade e prosperidade, enquanto deprecia os insurgentes pelo mundo. Ao mesmo tempo, esconde as agudas crises econômicas e sociais vivenciadas por grande parte dos estadunidenses, mitigadas graças à atroz exploração dos países avassalados.

Felizmente, o cinema sobrevive como arte e cultura. A sétima arte cumpre os papéis contraditórios de propaganda e, ao mesmo tempo, denúncia da manipulação e da ânsia de total dominação. Existem filmes como Missisipi em chamas (1988), Cidade do silêncio (2006), Nebraska (2013), Fruitvale Station – a última parada (2013), Matem o mensageiro (2014), Moonlight (2016), Feito na América (2017), A espiã vermelha (2018), Nomadland (2020) e muitos outros, vários deles ganhadores de Oscars e outras premiações, que nos revelam as mazelas que corroem a confiança nos desígnios do destino manifesto.

O mundo está em crise, ambiental, econômica, política, social, ética. E agora, com a pandemia da Covid-19, também em crise sanitária, que é o corolário da soma de todas as outras crises. É urgente acordar para superar estas crises, antes que elas virem insanáveis colapsos. A razão maior da crise é a incapacidade dos seres humanos de manifestarem empatia e solidariedade. Tal egocentrismo, cupidez e soberba resultam da ideia de predestinação, o nefasto destino manifesto. Uma doutrina que se revela multidimensional: há os cidadãos, as religiões, as raças, as castas, as nações e os continentes que se consideram os predestinados.

Que a sétima arte, mais que iludir, consiga contribuir para desmascarar o espectro da total dominação, e colabore para a humanidade superar a crise atual.


sexta-feira, 14 de maio de 2021

As 'Histórias Maravilhosas Bêndix'

  

Minha geração viveu infância feliz, inspirada pelas Histórias Maravilhosas Bêndix, que vinham pela televisão uma vez por semana. Lembro-me de algumas poucas: o milho que nasceu da sepultura do índio nativo das Américas, o patinho feio enjeitado que na verdade era um filhote de cisne, o pai que presenteou a filha manhosa com um disco de prata, que era a lua que ela queria, mas nasceu outra lá no céu, como os dentes de leite.

Bêndix era o nome de uma máquina de lavar roupas, um prodígio tecnológico que naquele tempo significava uma modernidade que vinha libertar as donas de casa de um penoso encargo doméstico. Uma verdadeira alforria. Hoje, no outono de 2021, estamos em plena pandemia e em meio a um infame inquérito no Congresso Nacional, que revolve anos de ignóbil desfaçatez, em busca de compreender como pudemos chegar ao genocídio, à improbidade e à psicopatia que grassa no país. Pergunto-me qual história maravilhosa seria preciso inventar para encantar e despertar a magia e a imaginação das crianças e dos adultos que ainda trazem em si um resquício de esperança da infância.

Seria uma história que nos imunizaria contra todo aviltamento e insanidade que nos contaminam via notícias e bravatas diárias. Ela começaria descrevendo um reino com um povo alegre, educado e engajado, todo cidadão cônscio de que tudo irá bem se cada um praticar de fato a civilidade, for honesto e responsável, comedido nos seus desejos, respeitador do próximo, amante do justo, do belo e do verdadeiro. Esse povo lúcido e partícipe teria sabido eleger dirigentes com autêntico espírito público, empenhados em ver prosperar o coletivo, com liberdade, sabedoria, paz. A ninguém faltaria alimento, lar, trabalho, saúde e educação de qualidade. Povo e dirigentes bem harmonizados teriam aprendido a respeitar as benesses e os limites da natureza, o ar puro, a água límpida, o solo fértil, o oceano e as matas, fontes do milagre da vida.

O desfrute dos encantos da alma ─ a amizade, o amor, a alegria, o espanto da criatividade, da descoberta, do belo ─ passaria a ter mais importância que a posse. Descobrira-se enfim que o sentir traz muito mais satisfação, realização e plenitude para o ser humano que o possuir. Com isso, passou-se a comprar menos, as fábricas diminuíram a produção, a natureza não foi estressada, os recursos não se esgotaram, a poluição regrediu. E não houve falências, desemprego e pobreza. A jornada de trabalho diminuiu, aumentaram as horas de lazer sadio e convívio humano. Muitos dos antigos operários passaram a trabalhar em setores antes negligenciados e carentes: a educação, a saúde, o saneamento básico, a agricultura familiar, a assistência social, a justiça, o entretenimento, as artes, a cultura. Os gerentes engajaram-se na pesquisa científica e na gestão pública irrepreensível.

Os meios de comunicação tinham passado a obedecer a um rigoroso código de ética: só transmitiam fatos comprovados, a verdade inteira, sem omissões, distorções, parcialidades e manipulações. Exaltavam os feitos e os fatos realizados em prol da solidariedade, eram sinceros em condenar os remanescentes da vilania que imperara outrora.

Nesse mundo e nesse tempo maravilhoso voltou-se a contar histórias mágicas para as crianças. Só lamento não conseguir mais me lembrar da maioria delas. Foram soterradas por esse entulho que agora nos sucumbe.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

A desativação do manancial Alagados

 Publicado no Diário dos Campos em 04/05/2021 e no Jornal da Manhã em 05/05/2021.

Semana passada os jornais de Ponta Grossa noticiaram o anúncio, feito pela gerente regional da Sanepar, da planejada desativação do uso do reservatório de Alagados para abastecimento da cidade. As notícias dão conta de que a partir de 2026 estaria sendo captada água do Rio Tibagi, a um volume de 600 litros/segundo. O investimento estimado para as mudanças seria de R$200 milhões.

Por vários motivos a notícia intrigou-me bastante. Qual a razão da mudança? Dificuldades operacionais ou simples necessidade de aumentar a oferta de água na cidade que cresce e consome cada vez mais? O volume d’água de Alagados vai continuar sendo aproveitado pela captação a jusante, no Rio Pitangui? A mudança visa atender ao aumento do consumo ou ao vício de enfiar goela abaixo da população grandes e dispendiosas obras para enriquecer ainda mais os já enriquecidos? Quem vai pagar essa conta?

Alagados abastece Ponta Grossa há mais de cinquenta anos. A estação de tratamento instalada no início praticamente fazia somente a filtragem das partículas finas em suspensão, pois a água era muito limpa. A bacia de captação era então bastante preservada. Ao longo das décadas isso mudou muito. Atualmente a água captada pela Sanepar nos Alagados apresenta problemas com poluentes e proliferação de algas tóxicas.

Já no Rio Tibagi a situação é muito mais grave. O rio recebe afluentes urbanos e do distrito industrial e sua bacia de captação é praticamente tomada por atividades agrícolas. Por certo seu uso como manancial implicará tratamento cuidadoso, e caro.

A Sanepar analisou a alternativa de poços tubulares profundos, os ditos “poços artesianos”, para suprir a crescente demanda em Ponta Grossa? Apesar de também apresentar senões, o principal deles sendo o risco de poluição quando da ausência de políticas públicas protetoras, o manancial subterrâneo tem muitas vantagens em relação ao superficial: a qualidade da água, na maioria das vezes classificada como água mineral, dispensando tratamento; a possibilidade de localização do poço próximo à comunidade consumidora, dispensando longas redes de distribuição; a produção constante, que independe das anomalias de chuvas e estiagens.

Ponta Grossa está sobre o Aquífero Furnas, que fornece água de muito boa qualidade. Um poço no Bairro San Martin produz a água mineral Royal Fit, que é envasada e distribuída regionalmente. Até agora o município tem conseguido afastar os riscos de poluição do aquífero, as áreas de recarga estão livres do impacto de indústrias, aterros e outras potenciais ameaças.

Só como termo de comparação, os poços tubulares profundos existentes permitem estimar uma média de 10 m³/hora para os poços no Aquífero Furnas. Os 600 litros/segundo mencionados pela Sanepar equivalem a 2160 m³/hora. Então, com 216 poços seriam alcançados os 600 l/s mencionados pela Sanepar. A um custo estimado de R$100 mil por poço, um valor bem exagerado, o custo total seria de R$21,6 milhões. Muito menos que os R$200 milhões mencionados pela Sanepar, ainda que se somassem custos adicionais com distribuição.

Vale então a pena estudar bem a alternativa dos “poços artesianos”. E também outras alternativas sustentáveis, tais como captação da água da chuva e reuso da água. Estas práticas são quase desconhecidas na cidade. Qualquer uma delas deve mostrar-se preferível a um vultoso investimento, num país onde os recursos andam escassos e a população anda sacrificada em demasia.