domingo, 20 de novembro de 2022

Livro “O método Jacarta” – anticomunismo versus anti-imperialismo

Publicado no Jornal da Manhã em 02/12/2022.

O método Jacarta – a cruzada anticomunista e o programa de assassinatos em massa que moldou o nosso mundo” (Autonomia Literária, 2022) é um revelador e assustador livro do jornalista estadunidense Vincent Bevins, que de 2011 a 2016 foi correspondente no Brasil do jornal Los Angeles Times. Baseando-se em farta fonte de dados ─ documentos oficiais, matérias jornalísticas, livros, correspondências, entrevistas ─ a obra relata os golpes e assassinatos patrocinados pelos EUA no mundo no período de 1945 a 2000, supostamente em nome da contenção da expansão do comunismo durante e após a “guerra fria”.

O relato torna-se assustador quando mostra que a cruzada anticomunista é na verdade um projeto de extermínio de todos anti-imperialistas opositores ao projeto de hegemonia mundial do Tio Sam, após a vitória na Segunda Guerra, culminada com o terrorismo global das bombas atômicas. Sejam estes anti-imperialistas comunistas ou não. A ideologia anticomunista é resumida pela frase: “Você pode ser comunista, ainda que pessoalmente você não acredite que é comunista”, proferida pelo major salvadorenho Roberto D’Albuisson. Anticomunista fanático, o major fora treinado na Escola das Américas, uma das várias instituições estadunidenses, esta localizada no Panamá, para a doutrinação anticomunista de militares estrangeiros. D’Albuisson foi o líder do esquadrão da morte que assassinou o arcebispo católico Óscar Romero em San Salvador, em 1980.

O título do livro remete ao talvez mais trágico e sangrento dos episódios de expansão do domínio estadunidense no mundo: o golpe, em 1965, que derrubou o governo Sukarno, que tentava tornar a Indonésia um país próspero e soberano, e era apoiado pelo partido comunista do país. Ademais, Sukarno liderava um movimento internacional de união e emancipação dos países do chamado “terceiro mundo”. O golpe entronizou em seu lugar o governo Suharto, lacaio dos interesses dos EUA, que estavam de olho nas riquezas naturais do país arquipélago do sudeste asiático ─ principalmente petróleo e minérios ─ e, sobretudo, queriam estancar a expansão dos partidos comunistas na região e das ideias libertárias na Ásia e África. Jacarta é a capital da Indonésia. O golpe foi precedido por uma mentirosa campanha de demonização dos “comunistas”, acusados de assassinar oficiais do exército em rituais macabros. Uma farsa sistematicamente propalada. E eram tidos como “comunistas” todos que tivessem ideias anti-imperialistas e anticolonialistas, fossem ou não de fato comunistas.

A “descomunização” da Indonésia custou um milhão de mortos e mais um milhão de confinados em campos de concentração. A grande maioria das vítimas era de assassinatos realizados por milicianos e esquadrões da morte clandestinos. Monstruosas carnificinas. Foi um tempo de barbárie, não eram necessárias provas nem argumentos verdadeiros para justificar arrastões noturnos, quando a população era empurrada para praias desertas, onde os massacres impunes eram perpetrados. Os apoiadores de Sukarno, indiscriminadamente considerados “comunistas”, eram chacinados, pois eram organizações desarmadas, que tinham optado pela via política institucional, democrática.

A Indonésia foi o mais horrendo, mas só um dos muitos golpes mundo afora realizados em nome do suposto anticomunismo. O livro traz um mapa-múndi com os países que sofreram golpes no período 1945-2000. Só na América Latina foram quatorze países, entre eles o Brasil, em 1964. Somadas as vítimas no nosso continente, foram mais de quatrocentos mil mortos. A maior tragédia foi na Guatemala, com duzentos mil mortos entre 1954 e 1996. Em todo o planeta foram mais de um milhão e novecentas mil vítimas, em vinte e quatro países.

O caso da Indonésia é exemplar: Sukarno não era comunista, mas era um líder carismático anti-imperialista, que conseguiu unir em seu país desde o partido comunista até os militares. E tornou-se um líder influente em todo o mundo quando, unindo-se a Jawarhalal Nehru da Índia, Gamal Abdel Nasser do Egito e outros, realizou a Conferência de Bandung em 1955, que fortaleceu a união dos países do “terceiro mundo” ─ aqueles não alinhados a EUA e URSS ─ e declarou aversão ao racismo, ao colonialismo, e com a preservação da estabilidade e da paz.

O livro revela como os EUA, através de seus serviços secretos, forças militares e escolas de formação de fanáticos anticomunistas, trabalharam para confundir aspirações anti-imperialistas com o “comunismo”, e como trataram de demonizar tudo que pudesse então ser considerado “comunista”. Tal demonização começou antes mesmo da Segunda Guerra. Um exemplo citado no livro é a chamada “Intentona Comunista” no Brasil, em 1935, quando da revolta armada fracassada de alguns militares em Natal, Recife e Rio de Janeiro, liderada por Luís Carlos Prestes. Depois inventou-se e propalou-se a lenda que os revoltosos comunistas da intentona invadiam sorrateiros os dormitórios dos oficiais, para esfaqueá-los até a morte enquanto dormiam. Desde então “comunistas” passaram a ser confundidos, entre outros estigmas, com assassinos frios e traiçoeiros.

A síntese do método da cruzada anticomunista estadunidense é resumida pelo exemplo de Jacarta: assassinato em massa dos ditos “comunistas”, e aterrorização da população via demonização do “comunismo”. Ou o cidadão comum temia ser assassinado por ser tido como “comunista”, ou passava a temer e odiar os reputados sanguinários e traiçoeiros “comunistas”, ou seja, todos aqueles anti-imperialistas e nacionalistas que ousavam opor-se ao domínio colonialista estadunidense.

O autor Vincent Bevins relembra no livro a famosa frase do então deputado Jair Bolsonaro em 1999: “Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar para fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”.

Naquele tempo, o deputado que viria a ser o presidente do Brasil já mostrava como estava bem doutrinado pela fanática cruzada anticomunista e o programa de assassinatos em massa propalado pelos EUA.

 

domingo, 13 de novembro de 2022

Separando o joio do trigo

Publicado no Jornal da Manhã em 15/11/2022.

De acordo com o Evangelho de Mateus, Jesus teria contado a parábola do homem que semeou o trigo em seu campo, mas durante a noite, enquanto todos dormiam, veio seu inimigo e semeou o joio em meio ao trigo. Joio e trigo cresceriam e formariam espigas ao mesmo tempo. Os servos perguntaram ao homem o que fazer, ao que ele respondeu: “Deixem que cresçam. Na hora da colheita, juntem primeiro o joio, amarrem-no em feixes, para ser queimado. Depois juntem o trigo e guardem-no no celeiro.” Mateus ainda escreveu que o homem esperou que as espigas se formassem para poder bem distinguir o joio do trigo. Se a separação fosse feita antes, haveria a possibilidade de confundi-los.

Estas polarizadas eleições de 2022, que acirraram os espíritos e têm provocado transtornos nunca dantes vistos, tiveram, por outro lado, o mérito de revelar as diferenças: quem é o joio a ser queimado, quem é o trigo a ser levado ao celeiro? Pudera fôssemos capazes, dois milênios depois, de compreender qual o exemplo de vida de Jesus, e qual o sentido das palavras proferidas em suas parábolas. Vamos relembrar, Jesus é considerado o filho de Deus, enviado para salvar a humanidade de seus erros. Sua mensagem foi de humildade, solidariedade, amor, esperança, verdade, justiça... Jesus seria um espírito de luz reencarnado entre os homens, para inspirá-los para o bem.

Atualmente as religiões de inspiração cristã ainda são as dominantes no mundo. Seus fiéis superam, em número, mesmo os adeptos de outras crenças, nas regiões asiáticas com as maiores populações do planeta. Mas os cristãos aprenderam e praticam os ensinamentos de Jesus? Se tivessem aprendido, não teríamos atualmente tantas guerras e conflitos, alguns ditos por diferenças religiosas. Não teríamos tanta injustiça na distribuição das riquezas que a generosa Mãe Terra nos concede. Não teríamos tanta miséria e tantos refugiados que procuram escapar da fome, da violência e da humilhação. Não teríamos a degradação dos mares, das águas doces, dos solos cultiváveis, das matas, da biodiversidade, da atmosfera que mantém o clima propício à vida no planeta. Não teríamos a indústria da guerra consumindo colossais recursos, que seriam suficientes para resolver todos os problemas da humanidade. Não teríamos a tecnologia que poderia nos irmanar e emancipar sendo utilizada para espalhar mentiras e nos manipular.

As eleições no Brasil mostraram dois lados: um é uma frente ampla que reúne, em nome da democracia, até adversários no campo econômico, unindo desde neoliberais que priorizam o mercado até aqueles que acreditam na economia administrada pelo Estado; outro que não aceita o resultado de eleições legítimas, compactua com uma indústria de mentiras, sente-se no direito de agredir e transtornar a vida de viajantes e moradores, e advoga a violência armada para defender suas crenças. Quem é o joio, quem é o trigo?

Se formos de fato cristãos, está na hora de separar o joio do trigo. Disso depende a colheita de uma sociedade fundada nos princípios de Jesus, que é sintetizada numa frase: “Amai a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a ti mesmo.” Podemos ainda pensar que muitas são as noções de quem, ou o quê, seja Deus. Mas parece haver consenso sobre qual a sua manifestação: a natureza. Amar a Deus pode ser entendido como amar a natureza.

 

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Cavalos soltos no campus

Recorrentemente, bandos de cavalos reaparecem no campus. Aparentemente, isso acontece em certas épocas, em que conjunções telúricas ou mesmo astrológicas emanam energias esdrúxulas, que estremecem a frágil harmonia entre os viventes.

Nestes dias reapareceu um bando de cavalos por lá. Apesar dos avisos que sua presença ali é ilegal, e sujeita os responsáveis a legislação que prevê multas e até prisão. Mas o bando pasta impunemente pelos gramados do campus, perambula livremente, alheio ao que um cavalo não pode compreender: sua liberdade coloca em risco aqueles que trabalham, estudam ou visitam o campus. Um lugar especial, que tem uma missão louvável: ensinar profissões e formar cidadãos. Às vezes, os quadrúpedes atravancam as vias de acesso do campus, não conseguem atinar que sua presença ali pode causar transtornos e até acidentes fatais.

O bando está sempre junto, os cavalos comportam-se de uma maneira uniformizada, parecem pertencer a um único dono. Este é o verdadeiro responsável pelo crime da presença dos cavalos soltos, embaraçando a liberdade de ir e vir dos usuários do campus, provocando o risco de acidentes e intimidando aqueles que eventualmente não estão habituados a lidar com cavalos.

Outro dia, presenciamos um episódio significativo: uma professora, tentando acessar seu local de trabalho, deu com um bando de cavalos bloqueando o portão que obrigatoriamente teria que atravessar. Ela aproximou-se cuidadosa, tentou evitar qualquer reação dos animais, que pastavam pelo gramado bem à frente do portão. Teve paciência de esperar, até que lhe pareceu que poderia ultrapassar o portão sem provocar os quadrúpedes. Mas assim que tentou abrir o portão, eles vieram em direção a ela. Não se poderia dizer qual era a intenção dos equinos, se era curiosidade a respeito daquela professora, se era uma reação agressiva a um humano que lhes invadia o pasto. Intimidada, a professora teve que recuar, esperar que os cavalos se cansassem do interesse nela, fossem enfim pastar na grama mais viçosa que ainda restava um pouco além, ou atendessem a um chamado do líder do bando, que já se afastara, um tanto enciumado por momentaneamente ter a atenção da manada desviada de si para aquela intrusa professora.

Sabe-se que, cuidados com compreensão e amorosidade, os cavalos são dóceis e retribuem os bons tratos, interagindo inteligentemente com seus donos ou treinadores. O problema é justamente este: às vezes os treinadores são menos dóceis e amistosos que seus animais. Também é assim com os cães, que diferentemente dos cavalos, na maioria das vezes não são animais de trabalho, mas sim de companhia.

Por esse motivo, pobres cavalos! Estão sujeitos a recolhimento em enclausurantes abrigos do poder público, até que seus donos, verdadeiros responsáveis pelas contravenções, arquem com as penalidades cabíveis e libertem os animais.

Aos usuários do campus, cuidado ao encontrar o bando de cavalos. Eles podem comportar-se como uma inconformada e ressentida manada. Mas lembrem-se, eles têm um potencial de compreensão e docilidade igual ao dos humanos ordinários. Se estão agressivos, é por culpa de seus donos e treinadores. Paciência, compreensão e bons tratos deverão resgatá-los da passageira asneira.