segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Debates impossíveis

Publicado no Jornal da Manhã em 30/08/2022.

Qual é o objetivo principal dos candidatos que participam de um debate eleitoral? Com certeza é angariar votos para o pleito que se aproxima. E, em nome deste objetivo principal, talvez muitos outros, que deveriam em teoria serem eles os principais, são negligenciados. Estes teóricos objetivos principais seriam as verdadeiras propostas de governo, quais os dados que credenciam o candidato como comprometido com tais propostas, quais são os aliados e suas condições de concretizar, se eleitos, essas propostas. Ciente destas informações, o expectador do debate, um suposto cidadão desapaixonado em busca de bem conhecer as alternativas, deveria então ser capaz de, usando seu discernimento, fazer a escolha mais condizente com suas convicções.

Mas o debate em busca de votos vira um confronto de ataques e esquivas, um festival de falsas e irrealizáveis promessas, uma enxurrada de dados descontextualizados, parciais, maquiados e mesmo totalmente falsos, com o intuito de promover o candidato e depreciar os adversários. Muito pouco se acrescenta de verdadeiro conhecimento dos candidatos e de suas convicções e propostas para o país.

Debates em busca do voto desviam o foco para temas digressivos: corrupção, supostas façanhas econômicas, alegados fracassos administrativos, acusações contra os concorrentes. Destaca-se a corrupção. Há muito tempo, no Brasil, ela vem sendo utilizada como pretexto para golpes que derrubaram governos legítimos para entronizar tiranias. Há ainda quem se iluda que a humanidade não tenha um forte pendor para a corrupção, e que um bom governo é aquele que reconhece isso e busca coibi-la e minimizar seus efeitos? Corrupção sempre existiu, existe agora, e continuará existindo, enquanto nossa civilização não avançar ética e moralmente, sobretudo através da educação e da cultura, até um patamar em que a empatia e a solidariedade sobreponham-se à cupidez humana. E a corrupção existe em todo o mundo, mesmo nos países mais ricos, democráticos e modernos. Lá, eles combatem a corrupção investigando-a, com imparcialidade, desbaratando-a, punindo os corruptos. E não destruindo as empresas, os governos, as nações.

Infelizmente, o eleitor ainda é manipulado pela mídia que fabrica falsos consensos. Prefere estigmatizar pessoas, partidos, correntes ideológicas, do que esforçar-se em discernir entre o que realmente importa. O debate verdadeiro não é entre corrupto e não corrupto. O debate verdadeiro é entre capital e trabalho. É entre exploradores e explorados. É entre candidatos(as) humanizados, compassivos e idealistas, comprometidos com a coletividade, e candidatos(as) ávidos de poder, de riqueza, privilégios e impunidade.

Talvez este seja o fulcro da questão: quem é o eleitor, como ele influencia a natureza dos debates, a postura dos candidatos, e, enfim, o governo eleito? Dizem que a humanidade divide-se em três partes mais ou menos equivalentes: os egoístas que só almejam benefício próprio, os solidários que enxergam que a cooperação é imprescindível e os indiferentes. Há também quem diga que não existem indiferentes: o indiferente está, mesmo sem o querer ou o saber, ajudando o time dos egoístas.

Muitos pesquisadores e pensadores estão fazendo o alerta: a humanidade está vivendo um momento de profunda crise, ambiental, econômica, social, política, sanitária... Oxalá seja uma crise precursora de um novo arranjo, que nos assegure a sobrevivência da espécie, numa civilização mais harmônica. Oxalá nos debates, nas eleições, saibamos comportar-nos como cidadãos com discernimento e firmeza na escolha.

 

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

O analfabeto político

 Publicado no Portal DCmais em 23/08/2022

Atribui-se a Bertolt Brecht, renomado dramaturgo, poeta e romancista alemão (1898-1956), a autoria do aclamado poema ─ e muitas vezes também ignorado ─ “O analfabeto político”. Brecht viveu o efervescente período político e social que incluiu as duas guerras mundiais e a Revolução Russa, quando se confrontavam convicções monarquistas, republicanas, fascistas, nazistas, capitalistas, socialistas e comunistas. O poeta disse de si mesmo: “Sempre fui politizado, pois só podemos mudar a realidade quando somos instruídos por ela”.

Talvez o poema esteja tantas vezes ausente dos livros do poeta pela agudeza das palavras, que, sem dúvida, são duras recriminadoras do pecado que todos nós costumamos cometer, pelo menos em alguns momentos da vida: o pecado do alheamento e da omissão. Quem não conhece o poema deve procurar conhecê-lo, ele é facilmente encontrável na web. Um trecho, que não é o mais pungente e cruel, diz:

“Não sabe o imbecil [o analfabeto político] que da sua ignorância política

nasce a prostituta, o menor abandonado

e o pior de todos os bandidos,

que é o político vigarista, pilantra,

corrupto e lacaio das empresas

nacionais e multinacionais.”

Por suas convicções e seus contundentes escritos, Brecht foi obrigado a ter uma vida de refugiado político: Alemanha, Dinamarca, Suécia, EUA, Suíça e de volta à Alemanha, após o final da Segunda Guerra Mundial e do regime nazista. Sua peregrinação pelos países que lhe concediam asilo parece traduzir o conhecido aforismo: “A mentira desgasta relacionamentos; a verdade não, a verdade devasta”.

Atualmente, no século XXI, estamos vivendo outro momento de efervescência política e social, agora com recrudescidas sequelas bélicas e ambientais globais, que muitos entendem que podem pôr em risco a própria sobrevivência da civilização atual. Neonazismo, neofacismo, extremados autoritarismos e fundamentalismos, crescente violência, terrorismo, racismo, xenofobia e intolerâncias de toda ordem, a par de crises econômicas, ambientais, políticas e sanitárias, indicam que a humanidade encontra-se num drástico momento de falência dos sistemas vigentes. Anúncio de uma necessária transição para um novo arranjo civilizatório, que seja capaz de superar a crônica incapacidade de empatia e de diálogo, que resulta nas imensas desigualdades sociais. É hora de encarar e corrigir a desumana realidade de injustiças que vivemos, e não dela se alienar, fazendo de conta que ela não existe.

Mouzar Benedito, amigo jornalista e escritor que ama o Brasil e sua diversidade cultural, definiu a si mesmo numa frase: “Nunca acreditei em jornalismo imparcial; temos lado, sempre. Quem se omite é do lado dos opressores.” Melhor assumir o lado, e debater o bom debate, que omitir-se, e assim personificar o analfabeto político.

Só o exercício do bom debate, ainda que no início nossas arraigadas paixões obnubilem nossa razão e compreensão, há de nos ensinar a enxergar os caminhos para que a humanidade enfim ultrapasse a era dos egocêntricos instintos animais e alcance a idade da solidariedade e da harmonia. O salto que já estamos preparados para dar, mas que ainda tanto titubeamos.

domingo, 14 de agosto de 2022

Inflar o ego e encher o bolso

Estas parecem ser duas necessidades básicas do ser humano. Talvez herdadas dos nossos ancestrais ainda selvagens, e com finalidades biológicas, como a preservação e evolução da espécie.

Inflar o ego viria em primeiro lugar. Uma necessidade essencial de ser reconhecido, para assim reconhecer-se? Desde crianças mostramos esta necessidade de “aparecer”, mas ela se revela principalmente na adolescência, quando, de tuteladas crianças, passamos a ser supostos independentes e responsáveis adultos. A permanência, no adulto, do ego sempre carente de ser inflado parece resultar de uma incompleta passagem para a maturidade. O indivíduo ainda não se reconheceu, precisa do reconhecimento do outro.

Encher o bolso vem depois. É possível que inflar o ego tenha, entre um de seus objetivos, encher o bolso. Os dois, inflar o ego e encher o bolso, muitas vezes são complementares, andam juntos. Encher o bolso amiúde, mas nem sempre, significa explorar o trabalho de outros. É preciso para tanto subjugar e lograr o outro. E isso é mais fácil quando o ego do explorador já foi suficientemente inflado.

Pudera escapássemos da congênita necessidade de inflar o ego e encher o bolso. Seríamos seres mais solidários, mais sóbrios, mais responsáveis com o próximo, com os seres vivos animais e vegetais, com o planeta que supre os requisitos para a vida. Ego inflado e bolso cheio significam o esgarçamento do tecido social e a depredação da natureza. Quer dizer, injustiça, miséria, crimes, guerras, mudanças climáticas, exaustão de solos antes férteis, poluição de mananciais...

Curioso, no campo ideológico, nem “direita” nem “esquerda” parecem encontrar o caminho para a harmonia da sociedade com ela mesma e com a natureza. Talvez porque a direita tenha muito bem definido o objetivo de encher o bolso, e sabe como ninguém unir-se visando esse alvo. Já a esquerda, embora sonhe com a tolerância, a justiça social e a sobriedade na lida com a natureza, perde-se num indomável impulso para inflar o ego. Impulso que transforma os presumidos correligionários em adversários que se batem e se pulverizam em facções. Querelas que não acontecem na direita; encher o bolso torna secundárias todas as eventuais discordâncias. Esquerdistas são dogmáticos, direitistas são pragmáticos.

Albert Camus teve a lucidez de distinguir o homem revoltado do homem ressentido. O primeiro revolta-se com a opressão que vem de fora; ela lhe confere o legítimo ânimo para a revolta. O segundo bate-se em conflitos internos que envolvem, mais que razões, as emoções. O ressentido é movido pelas paixões, não é capaz de eleger uma prioridade objetiva e por ela relevar discordâncias menores.

Revoltados e ressentidos têm a ver com bolso cheio e ego inflado, e também com direita e esquerda. O bolso cheio de uns traz a miséria e revolta de outros. O ego inflado de beltrano espicaça o ciúme a e a inveja de fulano.

Existem também pessoas que não almejam nem ego inflado, nem bolso cheio. Aprendem a lidar com seus instintos e melindres. Não são ressentidas, são serenas mas conseguem revoltar-se quando a situação assim exige. São simples, sóbrias, pacíficas, lúcidas e incisivas na argumentação. Há raros exemplos ao longo da História. Pudera lográssemos segui-los. Mas, a maioria foi assassinada.

 

domingo, 7 de agosto de 2022

Encruzilhada

 

A vida, a existência, parece mesmo uma sucessão de encruzilhadas. Escolhas nem sempre lúcidas ou planejadas, mas que ditam o porvir. Não só aquelas decisões que vão definindo o caminho que trilhamos ao longo de nossa presença terrestre, mas também aquelas decisões que engendraram o terceiro planeta do sistema solar da galáxia espiral, ou ocasionaram a fortuita e precisa rota do meteorito que extinguiu os grandes répteis e iniciou a era dos mamíferos.

Não canso de render homenagem ao livro/filme Contato, ficção de autoria do astrônomo Carl Sagan. Uma preciosidade! A protagonista da trama, questionada sobre o que perguntaria a um interlocutor de uma civilização extraterrestre incontáveis séculos mais evoluída que a humanidade, responde: ─ “Perguntaria como fizeram para sobreviver à adolescência de sua civilização.” Ela perguntaria quais caminhos tinham escolhido nas muitas encruzilhadas que se nos apresentam, a todos nós, sobretudo na adolescência. Adolescência de um jovem indivíduo humano, ou de uma jovem civilização. Carl Sagan expõe no livro uma atual civilização terrestre atordoada sob o peso dos dilemas diante dos quais se encontra: a cupidez, o negacionismo, o oportunismo, o consumo predatório, a incúria...

Quais escolhas temos feito diante das encruzilhadas que têm aparecido em nosso caminho, enquanto indivíduos e enquanto sociedade? Entre o amor e o ódio? Entre a verdade e a mentira? Entre a essência e a aparência? Entre a autenticidade e a hipocrisia? Entre o sonho e a desesperança? Entre a luz e as trevas? Os seres humanos parecem estar capitulando perante a obstinação e a sofreguidão dos opressores e oportunistas. Parecemos povos escravizados, que desistiram da liberdade e da dignidade. Preferimos nos submeter e, alienados e acomodados, sobreviver, a combater a boa luta. Compactuamos com os que nos dominam, e que nos prometem que algum dia talvez possamos entrar no seleto grupo de privilegiados tiranos. Ou nos rendemos aos déspotas e truculentos, ou nos aliamos a eles. Exagero? Se não é assim para todos, é pelo menos para uma boa parte da população atual do mundo.

E as nações, cuja população escolhe seus mandatários? Hoje há uma nação hegemônica, empenhada em disseminar a cizânia e a guerra pelas outras nações do mundo. O velho axioma “dividir para dominar”. E as nações dominadas deixam-se cair nas tramas engendradas pela grande ave de rapina mundial. Guerreiam internamente em lutas fratricidas, ou batem-se com nações vizinhas e antes aliadas, por discórdias fomentadas desde a capital do império, por meio de sofisticada tecnologia de desinformação e intriga. Tem sido assim em muitos lugares do planeta, destacando-se Vietnã do Sul x Vietnã do Norte, Coréia do Sul x Coréia do Norte, Irã x Iraque, Rússia x Ucrânia, China x Taiwan, China x Japão...

Nas encruzilhadas que temos encontrado, somos induzidos a escolher o caminho que nos leva à submissão, à perpetuação do papel de escravos que labutam pela riqueza e bem estar dos dissimulados senhorios. É assim quando escolhemos em quem votamos. É assim quando escolhemos em quais causas acreditar. É assim quando escolhemos calar. É assim quando escolhemos obedecer aos comandos midiáticos para consumir, para ignorar, para desrespeitar, para depredar, para amedrontar-se, para odiar, para omitir-se...

É hora de, diante da encruzilhada, enfim nos perguntarmos qual caminho queremos seguir. E por que seguir esse caminho, ainda que ele nos pareça ser o mais difícil.