terça-feira, 27 de setembro de 2022

Futebol, religião e política

Publicado no Jornal da Manhã em 30/09/2022.

Quem ainda não ouviu de alguém próximo que futebol, religião e política não se discutem? Pois, dizem, a discussão pode começar amistosa, mas sempre desanda em briga. Quem ainda não ouviu, principalmente às vésperas de eleições: “Aqui não é lugar de discutir política.”? Uma frase equivalente a: “Aqui é proibido pensar.” Embora seja necessário reconhecer que há muita confusão entre a verdadeira política e a politicagem, que se faz com mentiras, demagogias e apelos ao lado mais sombrio da natureza humana. Sob o pretexto de evitar a vil politicagem, condena-se o debate essencial.

A escolha do time de futebol favorito é muito pessoal. São várias as razões que podem influenciar, talvez a maioria delas inconsciente: a cor do uniforme, uma palavra no hino, uma vitória marcante talvez já apagada da memória, o time de um craque inesquecível, o mesmo time do pai ou do avô, o time campeão quando atinamos com a decisão de nos tornarmos torcedores, o time que se identifica com uma cidade, um bairro, uma classe social, ou até mesmo um viés ideológico... Escolher o time de futebol para o qual torcer é como escolher a cor preferida, a culinária preferida, a flor preferida, o gênero musical ou literário preferido. Enfim, é uma escolha subjetiva. Ninguém deveria dar palpite nessa escolha. Talvez seja isso mesmo que acontece. Ninguém dá palpite sobre a escolha do outro. Ah, mas na hora de comparar os times, aí começa a lambança: o meu é melhor que o seu; mas o seu está pior no campeonato; mas o meu ganhou ano passado; o juiz roubou; o seu só tem jogador cai-cai; e o seu, patrocinado por bandidos; o seu tem torcida brucutu; a torcida do seu é de favelados... A arenga não tem fim. Melhor mudar de assunto.

Que a mudança de assunto não seja para a religião. Escolha igualmente pessoal, aqui com a fé a influenciar decisivamente, junto com a tradição familiar. Ainda há quem julgue que sua concepção de religião e de Deus é a única certa. Talvez não exista presunção mais descabida. Acho que a noção de Deus deve ser diferente para cada ser humano que reflita sobre a divindade. Creio que mesmo para os teólogos, que estudam a fundo o assunto. Então a escolha da religião, sendo também pessoal e subjetiva, deveria ser respeitada. As conversas a respeito deveriam ser em torno da troca de entendimentos, percepções e revelações. As trocas sempre enriquecem quem está disposto também a escutar, e não só a falar. Mas experimente começar uma discussão sobre religião. Outra vez, arenga certa, sem fim. Melhor mudar de assunto.

Opa, para a política? Aí é que a coisa degringola. E justo naquilo que diz respeito ao coletivo, que se refere a regras e procedimentos que influenciam a vida de todos. Se a escolha sobre as afinidades políticas continua com ingredientes subjetivos, como o futebol e a religião, agora a escolha pode influenciar a vida de toda a coletividade. Na nossa sociedade, essa escolha traduz-se em votos, que elegem governantes e legisladores. Não sou obrigado a compartilhar o time de futebol ou a religião da maioria, mas sou obrigado a acatar as leis e o governo escolhidos pelo voto da maioria. Na política, diferente do futebol e da religião, a racionalidade deveria ter muito mais peso que a subjetividade. O que não quer dizer que a amorosidade também não seja essencial: muitas vezes compreendemos melhor com o sentimento que com a razão. Mas o que acontece na verdade é que em política decidimos mais com o fígado que com a mente ou o coração. É na política, mais que no futebol e na religião, que as paixões exaltam-se e embotam de vez o bom senso.

Quando conseguirmos lidar nos assuntos políticos com mais razão e menos paixão, talvez consigamos fazer escolhas coletivas que avancem na solução dos grandes problemas que afligem a humanidade: as injustiças e segregações sociais, o consumismo insano que sacrifica o planeta e condena a vida, a cupidez e o culto ao deus dinheiro, o individualismo e o egoísmo, a xenofobia, o imperialismo, o belicismo... São muitos equívocos que temos cometido, que põem em risco o porvir da civilização atual.

A política está presente em tudo: na economia, no meio ambiente, nas convenções sociais, na educação, na cultura, na arte, até no futebol e na religião. Esquivar-se da boa discussão política é permanecer no atraso da passionalidade no que é essencial à vida. É reafirmar o “analfabeto político” do poeta Bertolt Brecht. É negar o esforço de esclarecimento para que nossas escolhas nos conduzam para uma sociedade civilizada, e não para a barbárie.

É preciso aprender a reconhecer quanto ainda somos pouco racionais e solidários, para assim emergirmos de nossa natureza egocêntrica e participarmos da construção de uma sociedade mais justa, em equilíbrio com a natureza e consigo mesma.

 

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Lula, PT e o engodo da corrupção

Que tristeza! Às vésperas da talvez mais importante eleição da história do Brasil, ainda termos que ver Lula defender-se, em entrevistas, debates, mesas redondas, do estigma de corrupto e ex-presidiário. O ex-presidente já deu uma boa resposta sobre ser ex-presidiário: com ele estão Tiradentes, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, José Pepe Mujica, Nelson Mandela, entre outros e outras que foram presos políticos por defenderem a igualdade, a justiça, os direitos humanos, a liberdade. E o nacionalismo verdadeiro, que sempre contraria os interesses dos onipresentes impérios totalitaristas. Mas Lula não consegue dar resposta à altura da pecha de corrupto, ou de ser o líder de um governo corrupto. Qual o motivo?

Logo na primeira eleição disputada por Lula, que chegou ao segundo turno com o “caçador de marajás” fabricado pela Globo, na última semana de campanha o sindicalista barbudo ameaçava chegar à presidência de república. Então três fatos elegeram Collor: fabricados depoimentos passionais de uma ex-companheira ressentida que acusou Lula de verdades e inverdades; a vergonhosa edição do debate final entre Lula e Collor, condenando o primeiro e catapultando o segundo; e, por fim, na véspera do segundo turno, a transmissão em cadeia nacional de TV do estouro do cativeiro de Abílio Diniz, os sequestradores com camisetas do PT, o que no inquérito subsequente provou-se que foram enfiadas na marra em bandidos comuns, e não em terroristas ou militantes políticos. Tentou-se imputar ao Lula e ao PT o estigma de bandidos e sequestradores, mas depois mudaram de estratégia: pareceu mais viável acusá-los de corruptos.

Com Lula e Dilma presidentes, inventaram-se o “mensalão”, o “petrolão” e a Lava Jato. Quem ainda não foi conferir estas três farsas? Sim, compravam-se votos no Congresso Nacional, como infelizmente sempre se comprou. E sim, houve corrupção e desvio de verba na Petrobras, como acontece em toda grande empresa do mundo. A corrupção é um nefasto traço da natureza humana, sempre vão existir oportunistas de plantão especializando-se em tirar proveito indevido de tudo que é feito pela humanidade. Sempre foi assim, infelizmente assim deverá continuar até que a ética, a moral, a empatia consigam fazer com que os cidadãos todos se comportem com honestidade a toda prova. Até tal ansiado momento de emancipação da humanidade, a corrupção precisa ser desencorajada, investigada e punida com leis severas. Quanto à Lava Jato, já está mais que provado que foi uma operação criminosa destinada a prender Lula, destruir a Petrobras e outras grandes empresas brasileiras e a criminalizar ainda mais o PT e seus quadros. Na verdade, destinou-se a perpetuar o Brasil colônia, fornecedor de matérias primas baratas.

Por qual motivo o estigma da corrupção é tão difícil de ser superado? Primeiro, porque a grande mídia trabalha incansavelmente para repeti-lo. E por qual motivo? Por que a grande mídia não reconhece a corrupção de outros governos, como o Banespa em São Paulo, o Banestado e a “privataria tucana” no Paraná, as compras de votos para a reeleição de FHC? Por que não reconhece que os governos do PT foram os que mais procuraram criar leis e mecanismos para evitar a corrupção? A resposta tem sido dada pela mídia alternativa, que infelizmente ainda não chega à grande massa de brasileiros, como chega o faccioso Jornal Nacional e o Fantástico de domingo.

O estigma de corrupção destina-se a afastar do Brasil um governo popular, progressista e nacionalista, que tem como principais bandeiras a emancipação da população mais desvalida e a soberania do país frente à rapinagem e ao espectro da total dominação que vigoram internacionalmente. O engodo da corrupção visa, enfim, manter no país um governo fantoche, submisso e entreguista à rapinagem internacional, comandada pelos EUA e suas empresas.

O esquema de estigmatização de Lula, do PT e de políticos nacionalistas, via a pecha da corrupção, conta com outros esquemas coadjuvantes: a elite brasileira herdeira do ressentido escravagismo, comparsa do imperialismo estadunidense e do mercado, e o sistema educacional em eterna crise, do qual Darcy Ribeiro diz que não é crise, é projeto. Para manter a população na ignorância funcional, que acredita no engodo da corrupção.

 

domingo, 11 de setembro de 2022

Lula e Alckmin - ecletismo e pragmatismo

Ecletismo e pragmatismo: duas palavras que expressam ideias muito polêmicas. Atualmente, nestes tempos bicudos com agudas polarizações na política, na religião, na economia, na forma de lidar com a natureza e com a saúde coletiva, um olhar sobre ecletismo e pragmatismo pode nos auxiliar a compreender e a escolher. Estes dois conceitos podem traduzir ou um relaxamento de princípios visando atender arraigados vícios e conveniências, ou a compreensão de que é essencial enxergar a realidade para entender o que é viável num dado momento.

Ecletismo é o contrário de dogmatismo. Os dogmáticos são fundamentalistas, obedientes a doutrinas, muitas vezes cegamente, chegam a tornar-se fanáticos. Os ecléticos são mais flexíveis. Das doutrinas existentes, compartilham os fundamentos que lhes parecem mais razoáveis, sem levar em conta a qual preceito estão ligados. Por exemplo, é possível seguir os mandamentos católicos, mas desacreditar da concepção de Maria que gerou Jesus; acreditar na existência de outros mundos habitados; crer na possibilidade de reencarnação; ou na incorporação a um espírito primordial universal após a morte nesta encarnação.

O ecletismo é flexível, cede ao bom senso e à intuição. A noção de Deus para o eclético talvez seja algo indefinível, subjetivo, pessoal, único. Ele acredita, tem a humildade de reconhecer que há uma sabedoria superior que harmoniza as forças que se manifestam através da natureza. Mas reconhece que, embora conjeture a respeito, não tem certeza do que realmente seja esta sabedoria superior.

O pragmatismo é o contrário da ortodoxia. O ortodoxo é soberbo, julga-se conhecedor da única verdade. Segue rigidamente os princípios de sua doutrina, seja ela religiosa, econômica, política... Contrariar a doutrina parece-lhe afrouxar seus princípios, render-se à argumentação das outras doutrinas, consideradas rivais. Já o pragmático tende a ponderar entre teoria e prática, entre o princípio doutrinário e a realidade que distorce e inviabiliza a concretização dos princípios.

Pragmatismo é um conceito que está muito em debate na civilização atual. A teoria nos demonstra que o aquecimento global é uma realidade, mas na prática não conseguimos nos livrar dos combustíveis fósseis. A realidade nos mostra que as injustiças sociais estão nos conduzindo ao colapso, mas não conseguimos reduzir o egoísmo e fazer distribuição mais equitativa da riqueza produzida pelo engenho humano. Tais drásticas contradições seriam fruto do pragmatismo? Ou de uma ortodoxa subserviência a um arranjo civilizatório eivado de vícios?

Na política, temos vivenciado um contundente exemplo da realização do conceito de pragmatismo: dois candidatos com convicções díspares sobre economia, um socialista, Lula, outro liberal, Alckmin, mas ambos democratas e respeitosos das instituições republicanas, unem-se contra outro candidato, cuja principal marca é o ditatorialismo, a segregação e o ódio. O pragmatismo da união do socialista com o liberal vai dar certo? Terão que fazer concessões um ao outro, procurar encontrar o que é realizável perante a ameaça de barbárie representada pela alternativa tirânica.

Enfim, terão que ser sensíveis seres humanos e hábeis negociadores. Que Deus os abençoe!

sábado, 3 de setembro de 2022

Acorda, Brasil!

 Publicado no Diário dos Campos em 15/09/2022.

 

                                                                 “Deitado eternamente em berço esplêndido,
                                                                        ao som do mar e à luz do céu profundo”

 

Qual teria sido a intenção do compositor Francisco Manuel da Silva com estes versos do hino nacional do Brasil, escrito em 1831? Talvez o “deitado eternamente” se referisse à vastidão do país, que naquela época ainda tinha litígio de fronteiras com vários vizinhos da América do Sul? O “eternamente” seria então um vaticínio de que nunca arredaríamos pé do extenso território, conquistado ao longo de séculos de ruptura de tratados internacionais, tornados obsoletos pelo afã de conquista de gananciosos desbravadores? Talvez o compositor tivesse a intenção de que o hino abençoasse a futura longevidade do berço esplêndido e grandioso abraçado pelo mar e acariciado pelo sol?

O Brasil era então um país cujo futuro espelhava a grandeza de seu território, ainda em consolidação. Hoje, duzentos anos depois, continuamos sendo um país com promessas para o futuro, que ainda não concretizou como nação forte a vastidão e a riqueza de seu território. Tem-se repetido por aqui e pelo mundo afora: poucos países (EUA, China, Rússia, Índia e Brasil) reúnem três atributos que os credenciam para se tornarem potências mundiais ─ extensão e riqueza territorial, tamanho da população e valor do produto interno bruto. O Brasil ainda teria virtudes adicionais: uma mescla de povos que tende a tornar a população tolerante com a diferença, uma língua única em todo o vasto território, a religião de inspiração cristã predominante. Mas há também quem diga que falta ainda ao nosso país um outro atributo, essencial, sem o qual um gigante nunca acordará: a educação e seus desdobramentos, a cultura, a pesquisa científica, o avanço tecnológico e a civilidade. Por outro lado, com educação eficaz mesmo pequenos tigres asiáticos tornam-se potências mundiais.

Decerto vários fatores somaram-se para tornar-nos o gigante que hesita acordar: o colonialismo extrativista predatório, a independência proclamada pela corte imperial, a delongada escravatura, a república proclamada por militares a serviço das oligarquias escravagistas ressentidas, um histórico de golpes que depuseram governos nacionalistas legítimos para entronizar tiranos entreguistas... No arranjo mundial do final do século XX e início do XXI, quando ameaçamos acordar e nos levantar, fomos mantidos submissos pelo “espectro da total dominação”, que visa a consolidação do império estadunidense, o qual não tolera o aparecimento de novos polos de desenvolvimento regional que possam competir com sua ambicionada hegemônica supremacia. Os EUA impõem globalmente a soberania do mercado financeiro, e não a soberania dos povos e nações.

Algumas das táticas para manter o gigante deitado eternamente em berço esplêndido são antigas, conhecidas e ainda eficazes. A principal delas é o axioma “dividir para conquistar”. É estratégia usada amiúde ao longo da História pelos impérios coloniais mundo afora. Entre nós, essa tática parece ter sido robustecida nas últimas décadas, justamente quando esboçamos a intenção de acordar. Nunca antes nos dividimos tanto, agora estimulados pelas tecnologias de desinformação que destilam ódio e jogam irmãos contra irmãos. Outras táticas existem: os assassinatos econômicos de nações não submissas, os embargos criminosos, os assassinatos reais de lideranças locais refratárias à dominação estrangeira, as revoluções coloridas, as guerras cognitivas, as guerras jurídicas (lawfare), as guerras por procuração...

Para nos levantarmos é preciso primeiro atinarmos que somos o gigante deitado e adormecido, para, enfim, despertarmos; e então enxergar quem nos mantém submissos, quem nos divide, e procurar união naquilo que nossa grandeza nos promete: uma nação forte, soberana, comprometida com a prosperidade de seu povo.