domingo, 31 de março de 2024

Páscoa, luta pelo poder e luta de classe

 Publicado no Jornal da Manhã em 02/04/2024.

A luta pelo poder é uma reminiscência dos instintos básicos de sobrevivência e dominação, que regem todas as espécies vivas. Os instintos básicos do Homo sapiens não são diferentes dos répteis ancestrais. Mas os seres humanos já são mais que répteis. Evoluímos deles, desenvolvemos o cérebro límbico emocional, o neocórtex racional e, dizem, um incipiente cérebro (hipofisário?) amoroso e solidário. Mas ainda não evoluímos o suficiente para que a resposta comportamental e social do cérebro reptiliano torne-se subordinada aos cérebros que nos distinguem como humanos. Ainda somos muito os répteis!

A onipresente luta pelo poder que se observa entre os seres humanos é manifestação dos instintos básicos do cérebro reptiliano. O empenho em dominar não é nenhuma novidade, sempre existiu, desde a pré-história. A novidade são atributos dados pelo cérebro límbico e o neocórtex. Hoje nos associamos em etnias, bandos, nacionalidades, crenças, convicções... que rivalizam ferozmente entre si. E criamos armas poderosíssimas para os confrontos reptilianos que promovemos.

A luta pelo poder confunde-se com a luta pela posse. A engenhosidade humana não propiciou só as armas de destruição em massa. Propiciou também formas de exploração dos recursos do planeta e do trabalho, de maneira que produzimos muita riqueza. Em consequência do instinto de dominação, o preço das riquezas produzidas é calamitoso: para o planeta depredado, para as massas de trabalhadores, exploradas e excluídas.

A consciência, a revolta e um crescente senso de solidariedade vêm alimentando sinceras revoluções: em Paris, na Rússia, na Nicarágua, na Venezuela... Todas elas bastante frustradas nos seus anseios originais. Parece o vulcão que esporadicamente explode e então se acalma, para em seguida continuar a acumular a pressão até a próxima explosão. O instinto de dominação é inexorável; ou logra as massas revoltosas em renovados arranjos exploradores, ou desperta a ira de tiranos alhures, que logo intervêm para debelar ameaças de igualdade.

As revoluções sinceras, movidas pela consciência de que existem os exploradores e os explorados, pela identidade com os explorados e pela solidariedade e busca por uma sociedade mais justa, é a luta de classe. Sua inspiração maior é a constatação das injustiças, e de que a Mãe Terra provê riquezas que, se compartilhadas, significariam o bem viver para toda a humanidade. A verdadeira luta de classe promove a inclusão dos excluídos. Uma tarefa desafiadora: a classe dominante dispõe de todos os recursos para defender seu domínio. Inclusive os meios de comunicação, que aperfeiçoam incansavelmente métodos de alienação, manipulação e doutrinação.

A Páscoa tem algo a ver com a luta de classe? Ora, a Páscoa não celebra a ressurreição daquele que foi crucificado por representar a luta contra os opressores e a favor da solidariedade entre os oprimidos? E Cristo personificou um desafio ainda maior: a revolta dos dominados através do amor, com paz.

Dois mil anos depois, acho que se hoje Cristo estivesse de novo entre nós, seria de novo sacrificado. E antes, torturado na prisão de Guantánamo, como terrorista, ameaça ao sistema.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Práticas democráticas

 Publicado no Jornal da Manhã em 20/03/2024.

Estamos vivendo, no Brasil, uma época de grave ataque à democracia. Aliás, um fenômeno mundial. A intolerância, a truculência, a ignorância e a tirania crescem em todo o mundo. Analistas sérios interpretam que seja uma inevitável e periódica crise, uma explosão de ressentimento com o capitalismo, o consumismo, o neoliberalismo, arranjos que só fazem concentrar riquezas e disseminar miséria.

Infelizmente, esquemas de condutas antidemocráticas acabam por estender-se às pessoas e às agremiações que se supõem e tentam permanecer democráticas. Talvez seja um fenômeno natural: numa sociedade em que predominam os logros e hipocrisias midiáticas e institucionais para manter os privilégios e o status quo, parece inevitável que todos, mesmo aqueles que sonham com um mundo mais inclusivo e justo, acabem contaminados pelas práticas que se revelam manipuladoras, discriminadoras e mantenedoras da sociedade exatamente tal como está hoje. Com todas as suas imperfeições, com consequências que beiram a tragédia: crise climática e ambiental, pandemias e epidemias, guerras, crescente criminalidade e impunidade, corrupção, segregacionismos, aumento da pobreza, desinformação, tapeação religiosa...

A reação à mudança, mesmo entre as pessoas supostas progressistas e democráticas, é um traço da natureza humana: o Homo sapiens é movido sobretudo pelos instintos de agressividade e dominação, que tiveram (ainda têm?) importância fundamental quando pensamos em preservação e evolução da espécie. Como resultado, sempre surgem os “donos” dos espaços em que vivemos. O planeta tem seus pretensos donos. As cidades, os bairros e as ruas têm seus donos. Às vezes, a padaria, o ônibus, o mercado têm seus donos, que julgam que os presentes têm que escutar e acatar suas bravatas. As instituições culturais, educacionais, científicas têm seus donos. Eles disputam prestígio e poder, resistem visceralmente às mudanças. E os partidos políticos têm seus donos, que também não querem mudar, ainda que se declarem progressistas.

Mas mudar, adaptando-se às contínuas transformações do ambiente e da cultura, é vital. Sob pena de extinção frente às alterações ao longo do tempo. A evolução tem nos ensinado isso ao longo da história da Terra e da civilização.

Os expedientes para pretensamente perpetuar a imutabilidade são rasos: decisões tomadas em encontros sigilosos; longos atrasos nos encontros supostos abertos; excessivo e desigual tempo de fala aos “donos”, que só fazem comunicar as decisões já tomadas; interdição do debate franco e amplo; fomento ao divisionismo entre concepções divergentes, evitando a construção de consensos mais amplos, refletidos, inclusivos...

São muitos os estratagemas, que acabam tolerados por parecerem fazer parte do jogo democrático normal do embate de ideias. Não é um jogo normal! É um jogo viciado, que dissimula os ardis para preservar os donos. E estes, tão imbuídos que estão do papel de donos, não percebem quando estão ultrapassando os limites entre a democracia e um fingido autoritarismo.

Com lideranças que não conseguem despojar-se do papel de donos, que não conseguem formar novas lideranças e nem cativar e agregar a parcela da população cansada de uma sociedade de dominação e privilégios, os ditos progressistas não precisam de inimigos externos: já lhes bastam os internos.

sábado, 16 de março de 2024

Babel silenciosa

 

Aquele imenso prédio estava lá já havia uns três anos. Ele mudara a vizinhança do nosso bairro, antes mais calmo e humilde, então bem condizente com uma pacata cidade média interiorana e provinciana. Erguia-se majestosa torre, ocupara com o cinza do cimento e o brilho falso dos reflexos dos vidros o que antes era nosso céu e nosso sol. Interditou nosso arrebol matinal verdadeiro nas manhãs de primavera e outono. Imenso tapume geométrico e escuro. Trazia o ruído dos carros da avenida para dentro do nosso antes quieto quarto de dormir. Excedendo-se nas traquinagens, trazia também os trens fantasmais da ferrovia distante. Façanhas dos sons viajando nas entranhas do vento e rebatendo na exagerada torre.

Relaxado na rede nordestina estendida na varanda do quintal de casa, nas tardes de folga lia os livros amigos que me reclamavam a distinção daquele lugar tão acolhedor. Enquanto lia, espiava a intrusa torre de quando em quando. Para divagar, descansar os olhos. Parecia que ela também me vigiava. Via nela sinais da presença humana: plantas nas sacadas, algumas janelas entreabertas. Ao anoitecer, umas poucas luzes acendiam-se. Mas nunca via nenhum humano. Onde estariam eles? Seriam efêmeros e nômades visitantes, tragados de seus lares pelo crescente turbilhão da cidade que se agiganta, convulsiona e engole os desprecavidos? Seria o prédio só um avaro dividendo dos grãos alimentícios exportados para o mundo, convertidos em investimentos destinados ao abandono, pois não há tanta gente que possa pagá-los para moradia?

Uma tarde, à rede lendo contos fantásticos que me transportavam às aldeias moçambicanas de nacionalidade e concretude incertas, pus-me a divagar, libertando as cismas, a observar aquela torre tão concreta. Ela cortava retilínea o azul sem fim do céu e as brancas nuvens, estas tão curvilíneas, baças e intangíveis quanto as quimeras humanas.

Entretanto, observando bem, a torre não era tão concreta. Ainda faltavam os humanos que lhe dessem a cara de urbe verticalizada pela cupidez humana ─ aqueles monumentos excessivos, açodados, competindo a sofreguidão de seus projetistas e financiadores.

Mas, surpresa! Desta vez vejo ao longe a figura de uma pessoa ─ parece uma senhora ─ a lidar numa das sacadas que têm plantas, lá no alto. Detenho-me a observá-la; pelas idas e vindas, deduzo tratar-se de alguém a realizar serviços. Possivelmente a diarista que trabalha enquanto os moradores estão fora. Não resisti: da varanda onde me encontrava, gritei alto para que ela pudesse me escutar: “Ó do prédio! Boa tarde!”. Tive de gritar algumas vezes, até que ela me escutasse e me localizasse, eu acenando os braços feito maluco, lá naquele quintal das casas térreas servilmente espalhadas pelo rés do chão, circundando o majestoso edifício.

─ Que bom que a vejo por aí ─ explico-me ─. É a primeira vez que vejo alguém nesse prédio. A senhora trabalha ou mora aí?

─ Trabalho. Venho uma vez por semana.

─ Bom saber que o prédio é habitado por pessoas! Andava a pensar se não seria povoado só por invisíveis fantasmas. Quem são os patrões?

─ Os patrões? Não os conheço.

─ Como não os conhece? Não está na moradia deles?

─ Ah, sim. Trabalho aqui já se vão três anos. Mas nunca os vi. Nem imagino quem sejam. Tenho a senha do portão eletrônico e as chaves. Peguei-as lá na imobiliária. Nem porteiro tem no prédio. Meu trabalho é só abrir as janelas pra arejar, tirar o pó e regar as plantas. Não tem nem louça pra lavar. Está sempre tudo impecável, como deixei na semana anterior.

─ E como fazem pra pagar?

─ Direto na conta bancária. E vem em nome de uma empresa. Não é nome de gente, não.

Ela diz que tem outros andares para cuidar no mesmo prédio. Todos no mesmo incógnito esquema. Faz-me um aceno de despedida, desaparece. Aumenta-me a suspeita que esse prédio simbolize a essência da civilização que estamos vivendo.

sábado, 9 de março de 2024

Capital eleitoral e capital civilizacional

 Publicado no Jornal da Manhã em 12/03/2024.

Outro dia escutei a expressão “capital eleitoral”, em meio às açodadas conversas que marcam o recrudescimento das atenções com as eleições que acontecem neste ano. A expressão foi utilizada com o sentido de capacidade de um candidato traduzir-se em votos na eleição, seja pela notoriedade ou força e pluralidade dos apoios.

O uso da expressão desencadeou-me uma cisma: o capital eleitoral não seria um inibidor de um outro capital, vamos chamá-lo de “capital civilizacional”? A capacidade de um nome angariar votos numa eleição merece reflexão. O político notório, já conhecido de várias outras eleições e mandatos, é o melhor? Não seria preferível dar voz e liderança a novos políticos? Não é sabido que a política, quando carreira, tende a viciar, desviando o foco de ideais sociais legítimos no início, para, com o tempo, reles disputas eleitorais? Não são muitos os pensadores que defendem que não deveria ser possível a reeleição, justamente para que haja renovação? Não é sabido que a “notoriedade” amiúde é comprada com conluiadas manipulações midiáticas e apoios financeiros criminosos?

Ademais, a precária democracia representativa que vivemos hoje, responsável por muitos dos vícios dos políticos, privilegia os já ocupantes de cargos. Verbas, recursos, benefícios favorecem os que exercem mandatos. E as leis que mantêm esses privilégios são “eleitas” em escolhas muitas vezes secretas, nos parlamentos. Como é possível, numa democracia representativa, os supostos representantes do povo votarem secreto? Então deixou de ser representativa, passou a ser corporativista, fisiológica, clientelista.

E o que seria o tal “capital civilizacional”? Em primeiro lugar, seria o fazer boa política sempre, e não só às vésperas de eleições. Esta última é a política eleitoreira, que pode perpetuar os políticos que não têm ideia do que seja o espírito público. A política civilizatória atuaria continuamente, formando consciência histórica, social, cultural, ambiental, econômica... Ou seja, uma verdadeira educação para a civilização, visando reduzir os conflitos resultantes das injustiças e da escandalosa concentração da renda das riquezas produzidas pelo trabalho. Talvez o capital civilizacional não aparecesse como resultado eleitoral nas próximas eleições; mas alimentaria uma consciência política mais duradoura e consistente, mais refratária às manipulações, ilusões e logros midiáticos destinados a eleger lobos para cuidar do rebanho de cordeiros.

Acreditar e abraçar o investimento no capital civilizacional é um desafio considerável. O ser humano não costuma ter paciência de aguardar resultados a longo prazo. Queremos plantar a árvore e colher logo seus frutos. Falta-nos paciência, humildade, e, sobretudo, solidariedade e verdadeiro espírito público. A regra geral entre os seres humanos, e os políticos atuais, é a meta eleitoral, não a meta social, a meta civilizatória. Não costumamos plantar para que toda a sociedade colha os frutos. Plantamos para que nós mesmos, e nossos apaniguados, sejamos os beneficiados.

Enquanto priorizarmos o capital eleitoral em detrimento do capital civilizacional, a sociedade que vivemos continuará vítima das distorções e conflitos que ela mesma gera: ignorância, desmandos, tiranias, criminalidade, guerras, crises ambientais, sanitárias...