sábado, 30 de dezembro de 2023

Feliz 2024, Brasil!

 Publicado no Jornal da Manhã em 03/01/2024.

Não há dúvidas: o maior desafio, a maior tarefa que teremos em 2024 no Brasil, é o resgate da alegria, amizade, criatividade, do sonho de um futuro feliz e de bem-estar social. E isso trilhando um caminho de luta e transformações cheio de benevolência. Engajado, sim, mas oxalá sem chegar ao extremo da incompreensão, barbárie, e do horror da guerra.

O mundo está em guerra! Mas nós não precisamos, não devemos, contagiar-nos com a beligerância movida por estrangeiros interesses de dominação e hegemonia global, que empurram irmãos para discórdias fratricidas. Estes não são nossos interesses. Que saibamos reconhecer que nossa vocação é a harmonia, a prosperidade e a soberania, do Brasil e do povo brasileiro; assim como de todas as nações, de todos os povos. E que, para tanto, as qualidades que precisamos são a verdade, justiça, liberdade, solidariedade, firmeza; com elas virá a paz.

Todas palavras femininas! Que saibamos, enfim, congraçar a criatividade e afeição ditas femininas com o arrojo e denodo ditos masculinos. É a harmoniosa cooperação destas qualidades complementares que nos conduzirá à capacidade de resolver, com perseverança, as muitas dificuldades que ainda afligem o Brasil e seu povo. Elas são fruto de uma trajetória histórica muito complicada, que reuniu em nosso país diferentes povos, culturas, raças, crenças, convicções... E nos fez uma colônia avassalada, marcada por crueldades, injustiças e contradições. Entretanto, a dificuldade no congraçamento de tantas diferenças é justamente o desafio que a providência nos concedeu para aprendermos a ser tolerantes, e enxergarmos que o diferente nos acrescenta cultura, enriquece-nos.

Para compensar o desafio que a perversa colonização nos impôs, a providência brindou-nos com a natureza mais pródiga do planeta: um vasto território, solos férteis, água abundante, rica biodiversidade, mares piscosos, clima amigável, minérios essenciais, petróleo, farta energia solar, belezas naturais que iluminam e elevam o espírito... Só nos falta mesmo aprender a reconhecer e respeitar o outro e a bênção de todas estas virtudes naturais. E termos a sabedoria de nos unirmos para aprendermos a desfrutar, com zelo e alegria, de todos os privilégios do Brasil. Só nos falta siso, discernimento, diálogo, solidariedade, união.

Se ainda são muitas as dificuldades que temos a superar, muitos são os estrangeiros que, ao conhecerem nosso país e nosso povo, declaram-se encantados. Não conheciam antes terra e gente tão dadivosas. Apesar dos desafios, somos um país abençoado, quando comparado com um mundo que sofre com o desatino humano e com tragédias naturais.

Então, que 2024 seja o ano de conquista definitiva dos talentos que ainda nos faltam. Que este seja o ano da emancipação de nosso país, e da confirmação da identidade e dignidade de seu povo. Que sejamos inspirados e guiados pela liberdade, verdade, solidariedade, união, justiça, perseverança e probidade.

Feliz 2024, Brasil!

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Escolas cívico-militares – a traição do ensino

 

Todo verdadeiro professor, que na sua formação em licenciatura aprendeu pedagogia, psicologia da educação, didática, viu que o ensino transformador, emancipador e libertador é inclusivo e universal. Ele não exclui, não segrega aqueles que, por pontos de vista míopes, identifica “desajustados”. Os “desajustados” podem, na verdade, ser os inconformados, capazes de, adultos, tornarem-se os cidadãos aptos a ajudar a corrigir a caótica civilização que estamos vivendo atualmente, marcada por guerras, crises ambientais, midiáticas, sanitárias, econômicas, sociais. A História está cheia de jovens “desajustados”, que depois revelaram-se talentos das artes e das ciências.

Embora o Brasil tenha tido alguns dos maiores mestres do ensino emancipador reconhecidos mundialmente ─ Anália Franco, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Êda Luiz, entre outros ─, nosso ensino vive, principalmente nos dias atuais, profunda crise. Darcy Ribeiro, outro eminente antropólogo e educador brasileiro, cunhou a frase “A crise da educação no Brasil não é uma crise: é projeto”. Ele, como todos os verdadeiros educadores, enxergava que a educação é o caminho para a emancipação do povo e do país ─ uma educação de qualidade para todos, priorizando o intelecto e o julgamento, e não a memorização e o adestramento. Verdadeiros educadores dedicam-se a formar cidadãos plenos, capazes de pensar, e não simples cumpridores de tarefas, metas e ordens.

Já foi afirmado por analistas internacionais que o Brasil, junto com EUA, China, Rússia e Índia, é um dos cinco países do mundo credenciados a serem superpotências, pelo tamanho de sua população, grandeza territorial, riquezas naturais, infraestrutura instalada e valor do PIB. Mas falta ao nosso país um requisito essencial: a educação eficaz. Esse requisito que nos falta não é casual, não é uma crise passageira: é um projeto, cuidadosa e longamente planejado e executado, para que nunca nos emancipemos e deixemos de ser uma colônia explorada para nos tornarmos um novo polo de prosperidade no planeta, a rivalizar com os polos que querem ser hegemônicos.

Diante desse quadro, as escolas cívico-militares, programa iniciado durante os governos passados que significaram o maior golpe da História contra a emancipação do Brasil, representam uma traição do ensino emancipador. É o clímax do projeto de sabotagem e desconstrução do país, que já ameaçou tornar-se uma das maiores potências mundiais. Quais as vantagens que os professores favoráveis à militarização estão enxergando? Estão se equivocando, acreditando que militarizar é o caminho para superar a crise? Ou visam vantagens e ganhos pessoais? Estariam, assim, traindo o que aprenderam na sua formação de professores?

Militares são treinados para obedecer ordens, cegamente. Já os cidadãos plenos são aqueles que avaliam, julgam, são capazes de questionar, de transgredir. E, assim, de corrigir rumos. Sim, militares talvez sejam ainda necessários, até para a segurança do país. Mas o caminho para formá-los não é interferir em escolas já instaladas, segregando para outras escolas os jovens que não têm a vocação militar.

sábado, 2 de dezembro de 2023

A desfaçatez e a placidez da Vila Placidina

 Publicado no Jornal da Manhã e no Diário dos Campos em 05/12/2023.

Moramos em Ponta Grossa há 27 anos. Viemos escapando do furdunço de São Paulo, onde morávamos numa região não distante do centro, muito movimentada. Aqui na nova cidade, escolhemos uma rua tranquila: a Nestor Guimarães. Rua bucólica, num bairro pacífico até no nome: Vila Placidina. E, ao longo dos anos, tratamos de transformar nosso novo lar num lugar cada vez mais calmo e agradável: plantamos frondosas árvores na calçada em frente, e três frutíferas no pequeno jardim para atrair os pássaros; habituei-os com frutas colocadas todo dia num comedouro pendurado na caramboleira, quirera esparramada pelo chão, bebedouros com água adocicada pendentes do beiral da casa.

Com o tempo, nosso jardim tornou-se um verdadeiro santuário. Ele atrai canários, avoantes, rolinhas, bem-te-vis, joões-de-barro, sabiás, saíras, guaxos, corruíras, cambacicas, beija-flores, às vezes até o vistoso e arisco tié-sangue. Na sibipiruna da calçada aparecem gaturamos, coleirinhos e outros pássaros. As árvores abrigam vários ninhos, na época dos filhotes temos de evitar que as cachorras da família escapem para o jardim. Seria o fim prematuro dos pequenos apressados que saltam do ninho mas ainda não sabem voar. Minha filha, com a infância povoada pelos pássaros que via pela janela da sala, escreveu o livro infantil “A menina e o passarinho”, que foi seu aplaudido trabalho de graduação no curso de Design Gráfico.

Enquanto Ponta Grossa crescia e se agitava, nossa casa permanecia aquele recanto plácido, onde nos refugiávamos aliviados depois da azáfama de cada dia. Mas mudanças começaram, no início com a construção de prédios altíssimos nas vizinhanças. Até que, nesta primavera de 2023, soubemos, pelo noticiário, que o tráfego na Nestor Guimarães, e no bairro, iria mudar. Estávamos então fora da cidade, talvez um capricho da providência. Quando retornamos, demos com o sentido do tráfego na rua invertido, e o trânsito todo de retorno do Jardim América passando defronte de casa.

Tenho o hábito de, bem cedo pela manhã, por uma hora, praticar o Tai-Chi na sala de casa, janela aberta para o jardim. Enquanto me exercito, divirto-me observando o alvoroço dos pássaros nas árvores, nas frutas, na quirera, nos bebedouros. Agora, com as mudanças, no intervalo de uma hora dez ônibus vindos do Jardim América, mais alguns barulhentos caminhões, afugentam os pássaros da antes tranquila Nestor Guimarães.

Não conversaram com os moradores a respeito das mudanças no bairro. Não explicaram a razão das alterações. Aliás, aos olhos de um leigo, a mudança parece um desatino injustificável: transferiram o tráfego pesado de uma avenida larga e movimentada para uma estreita e antes pacata rua de bairro.

Espigões de enormes prédios têm-se agigantado entre as moradias da Vila Placidina, eles também desdenhando o impacto sobre os antes acolhedores, ensolarados, silenciosos e despojados lares. Agora, o inexplicável tráfego na rua que era tranquila vem reafirmar que a desfaçatez é marca inevitável do crescimento sem planejamento nem consideração.

Mais uma vez, lamentavelmente, “Adeus à placidez da Placidina”.

sábado, 25 de novembro de 2023

Zona Verde – uma paródia do paraíso

 

Zona Verde é o título do filme de 2010 dirigido por Paul Greengrass, com Matt Damon no papel principal. Baseado no livro A Vida Imperial na Cidade Esmeralda, de Rajiv Chandrasekaran, não é um filme de guerra; é um filme sobre a guerra. Nele, não se sabe onde termina o delírio da realidade e começa a ordenação da ficção, necessária para construir a coesão de um roteiro cinematográfico. O autor Rajiv recorreu a muita pesquisa para escrever o livro, que é um premiado retrato da realidade.

O título remete à zona fortemente protegida pelas forças dos EUA no centro de Bagdá, a chamada “Cidade Esmeralda”, durante a invasão do Iraque em 2003. Ali os comandantes militares e agentes da burocracia e da diplomacia do Tio Sam vivem como num país dos sonhos, com festas, piscinas, jardins verdejantes, jogos, centros comerciais, bares e restaurantes, enquanto em volta é o caos e o terror da guerra. É como se ali fosse um pedaço do faz de conta estadunidense, encravado em meio à realidade de um mundo de horror e destruição, dali manobrado.

O filme tem dois personagens principais: de um lado, um suboficial estadunidense com dignidade, caráter e honestidade, e por isso considerado “ingênuo” por superiores; e, de outro lado, uma informação capital para a guerra − a existência de armas de destruição em massa produzidas pelo derrotado governo de Saddam Hussein, que justificariam a invasão e destruição do país.

O suboficial é justamente o líder de uma equipe de combate destinada a vasculhar os locais onde poderiam estar escondidas as armas de destruição em massa. A missão é encontrar tais armas. Quando ele percebe que todos os locais inspecionados são alvos inócuos e se dá conta que sua equipe recebe informações propositadamente mentirosas, começa a verdadeira guerra, em busca da verdade.

Nessa inesperada guerra pela informação verdadeira, o inimigo não é nítido, não veste uniforme, não é único. O filme-livro revela todas as artimanhas utilizadas para justificar as ações diabólicas do Tio Sam no encalço da desordem mundial e do espectro da total dominação. Os personagens envolvidos são então, dentro da Zona Verde, a mídia global, a diplomacia, as agências de informação e segurança; e, fora da Cidade Esmeralda, forças especiais assassinas, mentiras, corrupção, traição, chantagem, extorsão, sequestros, tortura...

O filme é uma daquelas preciosidades que ainda nos fazem ter esperança que Hollywood não seja só uma agência produtora de ilusões e doutrinação: a Sétima Arte ainda é capaz de produzir filmes que denunciam quem promove a barbárie no mundo.

De que maneira todos esses personagens interagem, só mesmo vendo o filme, ou lendo o livro. Um entretenimento revelador.

sábado, 18 de novembro de 2023

O homem é um animal que pensa, e pensa que não é um animal

 

Devo esta frase-título ao estimado amigo de infância Valenz, que já a utilizou para comentar alguns dos textos que escrevo. Que frase mais arguta! E tão oportuna para os tempos atuais que temos vivido, nesta adolescência da civilização em que a tecnologia tem evoluído mais rapidamente do que a capacidade humana de assimilá-la. Bem como o adolescente que já tem todos os atributos do adulto, mas que ainda não sabe que os tem, e muito menos sabe como utilizá-los.

O homem que acredita que já não é um animal remete a outros temas que são essenciais. O primeiro, é o “reflexo condicionado” do laureado Ivan Pavlov. No início do século XX seus estudos mostraram como cães podem ter seu comportamento condicionado por estímulos repetidos, ainda que estes estímulos sejam completamente falsos. Nos anos após a descoberta de Pavlov, ela vem sendo cada vez mais aperfeiçoada e utilizada nos humanos, tanto para o consumo de bens como de ideologias e de reacionários medos. O primeiro momento extraordinário em que isso aconteceu foi durante o fascismo e o nazismo, que tanto endeusaram quanto demonizaram ídolos, povos, raças e crenças.

Um segundo tema essencial é o reconhecimento que nosso cérebro é complexo. Ele guarda ainda toda a ancestralidade animal, desde os répteis e mamíferos primitivos, até a racionalidade do Homo sapiens e a ainda incipiente amorosidade do homem fraterno, no qual os instintos básicos da agressividade e da reprodução passam a ser superados por sentimentos de sociabilidade e solidariedade. Ainda reagimos primeiro como o réptil, cujo único impulso é sobreviver. É vital que a reflexão nos conceda tempo e compreensão para que nosso cérebro mais humanizado possa manifestar-se, e assim controlar o cérebro reptiliano. Caso contrário, não será necessária nenhuma catástrofe natural: a própria humanidade dará conta de extinguir-se, matando-se em guerras fratricidas ou contaminando e exaurindo o planeta.

O terceiro tema, que é o resultado no século XXI dos dois anteriores, é a sofisticada manipulação midiática. Ela usa avançadas tecnologias de desinformação e condicionamento. Diante das aprimoradíssimas possibilidades atuais de comunicação, parecemos o adolescente cujo corpo cresceu rápido demais, e ele ainda se bate e se magoa pelos cantos da casa, por ainda não ter noção do próprio tamanho. Descobrimos que o réptil em nosso cérebro é muito mais receptivo a uma mentira exótica e insidiosa que a uma verdade evidente e emancipadora. Pode-se passar a acreditar que a Terra é plana, que um psicopata pode ser um bom líder, que um povo é o escolhido de Deus, que a solidariedade é uma quimera inalcançável...

Dizem que a humanidade constitui-se de três terços, mais ou menos equivalentes: um que reptilianamente usa a manipulação midiática para predominar e preservar privilégios; outro que acredita na solidariedade e na possibilidade de uma sociedade justa e fraterna, mas debate-se ainda com seus próprios instintos; um terceiro que está a procura de encontrar-se, e que é disputado pelos dois grupos precedentes. Alguns espiritualistas dizem que nós, habitantes da Terra, somos isto mesmo: uma mistura de índoles, na tentativa de que o convívio com o diferente nos faça evoluir.

De volta à frase-título, pensamos, presunçosamente, que não somos animais. Mas somos sim! Todos nós, os supostos três terços que constituem a humanidade. O desafio que temos é encontrar em nós o cérebro fraterno que nos conduzirá à sobrevivência. E logo! Pois o planeta já dá mostras de que não consegue nos suportar.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Para que serve o plano diretor?

 Publicado no Jornal da Manhã em 10/11/2023

O plano diretor de Ponta Grossa, uma cidade média de quase 400 mil habitantes, está sendo atacado por empreendedores locais e os vereadores seus defensores. Alega-se que, tal como estão o código de obras, o zoneamento e o uso do solo, investimentos estão sendo brecados, empregos são perdidos, a prefeitura deixa de arrecadar IPTU.

Para que serve, enfim, o plano diretor? As cidades são uma aglomeração anômala de gente, edificações e atividades. Quanto mais cresce o ajuntamento de gente, ou seja, a população, mais são imprescindíveis as regras que humanizem a convivência de tantas pessoas. Há ainda fatores naturais a serem respeitados. É o caso das cidades ribeirinhas, que têm que aprender a conviver com o mutável humor dos rios. É também o caso de Ponta Grossa, uma cidade que ocupa espigões entre arroios divergentes, com problemas ligados a encostas íngremes, abruptos contrastes de urbanização, abastecimento e saneamento, fundos de vale caóticos, perimetrais e sistema viário muito prejudicados; além de fatores históricos: uma cidade antiga, que cresceu demasiado nas últimas décadas, mas tem ruas muito estreitas. Há quem diga que a cidade é média, tem tráfego de cidade grande, motoristas e ruas de cidade pequena.

O plano diretor destina-se, em tese, a estabelecer normas que melhorem a qualidade de vida da população, tanto mais prejudicada quanto mais populosa for a cidade. Por esse motivo procuramos compensar o estresse provocado pela vida urbana com o lazer na zona rural, ou no contato com o mar, no litoral. O plano diretor não deve se destinar a atender os interesses de incorporadores ou da prefeitura na sua arrecadação de tributos. Se assim fosse, ele estaria sendo desvirtuado de sua função original. Os incorporadores é que devem adaptar-se ao que estabelece o plano diretor. Que projetem, por exemplo, edifícios menores, ou em locais onde não prejudiquem a vizinhança. Não façam dos projetos de enormes edifícios uma competição de egos dos projetistas, ou de lucros das empreiteiras. Grandes edifícios significam empilhar muitas famílias numa área de terreno onde deveriam caber poucas. Esse empilhamento traz problemas de saturação do tráfego, de aumento da poluição, de abastecimento de água e energia, de saneamento, obstrui o sol, interfere na circulação atmosférica, ecoa e aumenta os ruídos urbanos, implica custos de aparelhamento do Corpo de Bombeiros e outros serviços públicos. Por isso é preciso analisar com muito critério a incorporação de grandes edifícios. Não é impedi-la, mas discipliná-la, de modo que os lucros das empreiteiras não signifiquem prejuízo na vida dos moradores.

Querer adaptar o plano diretor aos interesses dos incorporadores e à arrecadação da prefeitura é uma aberração, um atentado ao discernimento. O certo é que os empreendedores e a administração pública respeitem características naturais e históricas da cidade, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população. Se não for assim, será dar prioridade ao lucro, ao dinheiro, e não ao ser humano que habita a cidade. E quanto à geração de empregos, se o plano diretor for cumprido, empreendimentos que o obedeçam continuarão a ser gerados, trabalhadores continuarão a ser necessários.

Que Ponta Grossa, uma cidade em franco crescimento, saiba progredir valorizando o ser humano e a qualidade de vida.


sábado, 4 de novembro de 2023

A Amazônia, as chuvas e o Aterro Botuquara

 Publicado no Jornal da Manhã e no Diário dos Campos em 04/11/2023.

As notícias são paradoxais: verão com temperaturas recordes e incêndios no Hemisfério Norte, inverno sem frio no Hemisfério Sul, seca na Amazônia, chuvas recordes com grandes inundações no sul do Brasil. E há ainda quem teime refutar que estejamos já vivendo as consequências do aquecimento global, provocado pela atividade humana.

Hoje presenciamos o contrassenso da seca na Amazônia e chuvas recordes no Sul. Mas este quadro é só um sintoma passageiro de um desarranjo climático cujas manifestações futuras são imprevisíveis. Amanhã é bem possível que tenhamos seca também no Sul, sobretudo se se agravar a seca na Amazônia. Graças a um arranjo singular na América do Sul, que combina a ação das correntes atmosféricas com a localização da Bacia Amazônica e da Cordilheira dos Andes, temos os “rios voadores”, que trazem a umidade para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Se não fosse esse singular arranjo, seríamos aqui uma área desértica, como são todas as outras regiões do planeta nas mesmas latitudes, seja no Hemisfério Norte ou no Sul.

Muitos pesquisadores têm alertado que os eventos climáticos extremos que temos presenciado, incluindo entre eles os antes desconhecidos e agora comuns ciclones extratropicais que têm afetado o sul do Brasil, são já consequências do aquecimento global. E têm alertado também que a distribuição das chuvas e da água no planeta está sendo drasticamente afetada. E já não é possível evitar estes eventos climáticos extremos. É obrigatório que saibamos nos adaptar a eles. Já passamos da hora da prevenção, chegou a hora da adaptação.

Diante desse quadro, é necessário repensar, ainda com mais prudência que antes, o papel dos reservatórios subterrâneos de água potável, os chamados “aquíferos”. É neles que se situa a maior parte da água doce: no planeta, só 3% da água é doce, 69% da água doce está congelada nos polos, 97% da água doce não congelada está contida nos aquíferos, só 3% é água superficial, de rios e lagos, o que corresponde a 0,009% da água existente na Terra. A conclusão é que, com o desvario do clima induzido pelo aquecimento global, vamos depender cada vez mais da água dos aquíferos.

O que o Aterro Botuquara tem a ver com isso? O Botuquara funcionou como lixão a céu aberto de Ponta Grossa desde a década de 1970 até o início dos anos 2000. O local foi escolhido por ser um terreno da prefeitura, o lixão não cumpria nenhuma norma técnica, nem mesmo a impermeabilização do substrato. E o Botuquara está sobre o Aquífero Furnas, que já abastece, através dos chamados poços artesianos, muitas indústrias, postos de combustíveis, hospitais, escolas, granjas, supermercados, abastecimento público e privado em Ponta Grossa. Estudos realizados com dados de 2010 revelaram que, naquela época, os poços artesianos já podiam atender a mais de 50% da demanda de água da cidade.

Os aquíferos são um enorme reservatório de água de boa qualidade, mas têm um problema: não podem sofrer poluição. Se forem poluídos, a recuperação é inviável. Ou seja, há que zelar pela preservação dos aquíferos, se queremos preservar estratégicas reservas de água potável para o incerto futuro hídrico que se nos apresenta.

Em conclusão, é necessário retirar a montanha de lixo do Aterro Botuquara do local onde se situa hoje, sobre o Aquífero Furnas. Lá, o lixo representa risco enorme de contaminação do aquífero, pela infiltração do chorume. Ameaça agravada com as fortes chuvas que têm caído atualmente.

Há outros locais no município, com rochas e solos impermeáveis, que poderiam servir de depósito mais adequado para o lixo do Botuquara, sem ameaças para o aquífero. Se os administradores não providenciarem esta mudança com urgência, estarão comprometendo a principal reserva de água potável para o futuro da região.


quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A verdade em Israel e na Palestina

 Publicado no Jornal de Manhã em 27/10/2023.

Qual a verdade em Israel e na Palestina? Como sempre, na guerra a primeira vítima é a verdade. Ela morre junto com a lucidez, a sensatez, a humanidade. As notícias que nos chegam, aqui do outro lado do mundo, não permitem que saibamos o que de fato se passa no Oriente Médio. O que nos leva a fazer conjecturas.

O que teria feito o Hamas perpetrar o bárbaro ataque que vitimou centenas de israelenses no 7 de outubro? Teria sido um ato de desespero? Muito improvável. Nem os 75 anos de expatriação e apartheid impostos aos palestinos fariam que eles realizassem a agressão que Israel aguardava, para justificar seu intento de exterminar ou expulsar em definitivo os palestinos. Como está fazendo agora. O que teria então acontecido naquele 7 de outubro?

Diz-se que é impossível que os serviços de inteligência de Israel não soubessem de um plano de ataque do Hamas. Então, tal como fez os EUA no 11 de setembro de 2001, teriam deixado acontecer, para justificar a selvagem retaliação? Que, de outro modo, seria a escancarada confissão dos planos de hegemonia mundial do Tio Sam? E, no caso de Israel, dos planos de exterminar definitivamente os palestinos?

Nem um ato de desespero justificaria os crimes do Hamas. Sabia-se que a retaliação seria monstruosa. Não é improvável pensar que, de fato, o que tenha ocorrido tenha sido um plano arriscado, mas que fugiu do controle. O Hamas pode ter pretendido fazer um grande número de reféns, sem mortos, para negociações com Israel. Por troca de prisioneiros, água, alimentos, medicamentos, energia, liberdade de locomoção... Enfim, pela sobrevivência. Por esse motivo os alvos foram não militares, festas e outros.

Mas em Israel tudo é militar. Por algum motivo, a ação planejada fugiu do controle. Ou pela reação armada de algum dos pretendidos reféns, ou pelo descontrole de algum palestino mais irascível, diante de impropérios a ele dirigidos por algum judeu mais fundamentalista. Um disparo, e o que era para ter sido uma operação para fazer reféns acabou virando uma matança.

E o ataque ao hospital em Gaza que deixou centenas de mortos e feridos, a maioria mulheres e crianças? As trocas de acusações sobre quem teria realizado o ataque parecem querer esconder outra verdade: membros do Hamas, caçados, teriam procurado usar o escudo humano de civis para proteger-se. Um risco imperdoável. Mas Israel menosprezou o “efeito colateral” de centenas de vítimas civis. Talvez tenha encontrado ali outro pretexto para continuar a limpeza étnica?

Judeus e palestinos são irmãos de sangue milenares. Seu DNA é o mesmo. São fruto da mesma terra, dos mesmos povos originais. Como puderam tornar-se inimigos tão mortais? E os judeus, como podem hoje estar repetindo, talvez com ainda mais crueldade, perseguições de que foram vítimas tantas vezes ao longo da História? Nada aprenderam?

A crise atual da civilização não é só ambiental, ideológica, econômica, sanitária... Uma aguda crise ética e espiritual está a desafiar a sobrevivência da Humanidade.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Trágico despejo

 

Não consegui separar este infeliz episódio doméstico do conflito israelenses versus palestinos. Ele talvez seja o que melhor representa o desvario humano atual.

Aquele galho da árvore do jardim cresceu demais. Estava obstruindo a passagem e tapando a visão. Há tempos pensei em podá-lo, adiei. Ele cresceu ainda mais. De novo compreendi que era preciso podá-lo, de novo adiei. Nem lembro o motivo de tantos adiamentos. Hoje parece-me que foi um simulacro daquelas muitas negligências que vamos cometendo, até que suas consequências tornem-se trágicas.

Então, tarefa inevitável, uma tarde decidi enfim pegar as ferramentas para a necessária poda. Sem a devida atenção, acho que com aquela pressa de quem teme outro pretexto para um adiamento, realizei a tão postergada poda. Não foi fácil, tanto adiamento já fizera aquele galho avantajar-se. Foi necessário um suado esforço. Depois, recuperando o fôlego e as forças, sentei-me na mureta próxima, apreciando a passagem e a visão mais franqueadas, graças à ausência do estorvo do amputado galho.

Foi então que aquele inquieto beija-flor chamou-me a atenção. Ele esvoaçava em torno do galho caído no chão, pairava, inspecionava as ramas, tenho a impressão que olhava para mim. Aproximava-se do galho caído por um lado, pairava, ia para outro lado, pairava de novo, parecia atormentado procurar por algo. Despertou minhas lamentáveis suspeitas.

Com a ajuda da esposa fomos verificar o galho cortado com mais atenção. Após alguma procura, descobrimos nele a razão da angústia da extremosa mãe beija-flor: um pequeno ninho, caprichosamente tecido com delicadas fibras vegetais, talvez das alvas painas de paineiras, bem fixado num ramo do galho decepado. E, no chão, dois restos quebrados de minúsculos ovinhos brancos.

Que arrependimento! Como pude amputar o galho sem antes uma minuciosa inspeção? Como pude adiar a poda até a época da reprodução dos passarinhos e não tomar esse mínimo cuidado? Ainda tentei toscamente remediar o crime cometido, prendi com fita crepe o delicado ninho noutro ramo perto, com mais ou menos o mesmo calibre do anterior. Uma baldada tentativa de um absolvedor resgate.

E ficamos a observar a reação da desesperada mãe, de quem assassinamos os rebentos e destruímos o lar. Depois de aflitivas buscas no galho cortado no chão, ela procurou na árvore. Acabou por encontrar o canhestro arranjo que tínhamos feito com aquele ninho tão primoroso, preso ao galho com fita adesiva. Vasculhou o ninho vazio, procurava os ovinhos. Foi e voltou várias vezes, parecia não querer acreditar. Queria despertar do pesadelo que, de uma vez, destruíra o grande galho que era seu mundo, o ninho que fora construído com tanto zelo, os rebentos concebidos com tanto desvelo.

Afinal, a mãe beija-flor desistiu do ninho remendado. Sua reação foi então surpreendente. De graciosa, amistosa e depois desolada criatura, passou a agredir com fúria todos os pássaros que se aproximavam de onde era antes o galho sua morada. Tocaiava pousada noutro galho próximo e, subitamente, com rápidos rasantes, atacava sanhaços, bem-te-vis, rolinhas, canários que desavisados se aproximassem. Cheguei a pensar que atacaria a mim e à minha esposa, caso ousássemos nos aproximar. Constatamos que a dor enlouquecera aquela criaturinha.

Não logramos deixar de fazer o paralelo com o que se vê tão amiúde pelo mundo: criaturas que têm seus territórios, seus lares, suas famílias invadidas e destruídas, podem, de uma conduta antes pacífica e amistosa, tornarem-se alucinados e odiosos inimigos, cegos pela dor da perda, da segregação, do desrespeito, da ignomínia.

A desfaçatez transforma a amizade e a paz em ódio. Quando iremos aprender a conviver em paz, cuidando de respeitar o diferente?

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Nós, os répteis

 

Em 2015, um texto com o título “Nós, os répteis...” já foi publicado em jornal, livro e neste blog. Ele ironizava frase real, ato falho pronunciado por um professor de Paleontologia durante aula no curso de Geologia da USP, nos idos de 1980. O professor teria pretendido dizer “Nós, os mamíferos...”, e se equivocara. Mas sua desastrada frase, pela sua picardia, tornou-se mote do curso de Geologia à época: apareceu estampada em camisetas, foi pichada nos muros da universidade, foi impressa no jornal do centro acadêmico, era pronunciada amiúde e pintada em cartazes de manifestações.

Agora, outros motivos resgatam a agudeza do escárnio contido naquela frase. Acabo de ler o surpreendente livro “O mal-estar na civilização!”, de Sigmund Freud (Companhia das Letras, 2011), que me foi indicado por querida amiga psicanalista. O livro, na verdade um ensaio do renomado psiquiatra austríaco escrito em 1930, é uma reflexão sobre a infelicidade humana, diante da impossibilidade de dar plena vazão a dois impulsos básicos: a sexualidade e a agressividade. É impressionante constatar como, há quase cem anos, o sagaz Freud já foi capaz de encarar com tamanha sinceridade e maestria estes que são dois instintos onipresentes, até hoje insuperáveis tabus.

Os pensamentos de Freud sobre sexualidade e agressividade parecem remeter aos répteis: para aqueles nossos longínquos escamosos ancestrais, estes dois impulsos eram essenciais para a sobrevivência. Há centenas de milhões de anos, a prioridade da irrefreável evolução das espécies era sobreviver. Os répteis, então a forma de vida mais evoluída no planeta, puderam dar origem a outras espécies graças à sua capacidade de sobrevivência, frente aos competidores e às vicissitudes da natureza.

Depois de Freud, neurocientistas e antropólogos têm afirmado que o Homo sapiens ainda conserva o primitivo cérebro reptiliano, acrescido do emocional cérebro límbico dos mamíferos e do racional neocórtex, que caracteriza nossa espécie. Tornamo-nos assim, para além da aptidão de sobreviver dos répteis, zelosos cuidadores das crias e dos grupos familiares, e capazes de observar, aprender, discernir, planejar, criar...

Há quem diga que já começamos a desenvolver um outro cérebro, representado pela hipófise, discreta glândula na base da caixa craniana. Este cérebro hipofisário seria identificado com a compaixão, solidariedade, fraternidade, empatia, ética, comunhão com o outro e com o planeta... enfim, seria o cérebro da espiritualidade.

Ufa! Que alívio! Estamos a compreender que somos mais que os répteis e os impulsos básicos que os comandaram ─ a sexualidade e a agressividade ─, tão honestamente dissecados por Freud. Mas afirma-se também que o cérebro reptiliano não só ainda está vivo em nós, como é o primeiro a se manifestar nas situações mais críticas. Por isso é tão importante não reagirmos intempestivamente, sem refletir. Seria nosso réptil ancestral que estaria a nos comandar, e não o Homo sapiens que o sucedeu.

Entretanto, atualmente parece que é o cérebro reptiliano que tem guiado a civilização. O zelo do límbico, o racional do neocórtex e o fraternal do hipofisário parecem estar sendo suplantados por dominantes impulsos sexuais e agressivos, que não logramos mais reprimir. E, nas palavras de Freud, daí nosso mal-estar, nossa infelicidade.

Estaremos regredindo ao ancestral cérebro reptiliano? O professor de Paleontologia da USP dos anos 1980 teria dito uma profecia? Ou estamos vivendo um lapso em que nosso cérebro reptiliano está sendo vilmente estimulado, a ponto de superar, nas reações que produz, os outros mais evoluídos?

O surto de hiperconsumismo, depredação ambiental, guerras, intolerâncias, segregacionismos, egoísmo, desigualdades, negacionismo, irracionalidade, cegueira ética e religiosa, incapacidade de discernir entre verdades e mentiras, nos faz supor que a frase possa estar acertada: sim, “Nós, os répteis...”.

sábado, 26 de agosto de 2023

Dia da sobrecarga da Terra – 2 de agosto de 2023

 Publicado no Jornal da Manhã em 14/09/2023.

O “dia da sobrecarga da Terra” (em inglês o “Earth Overshoot Day”, sigla EOD) é aquele dia do ano em curso em que o consumo de recursos naturais pela humanidade ultrapassa a capacidade do planeta de renová-los ao longo de todo aquele ano. Numa comparação grosseira, é como se fosse o salário sendo gasto ao longo do mês: se ele termina antes do fim do mês, e continuamos a gastar, vamos acumular saldo devedor. E teremos de pagar o débito no futuro, com juros. Como a Terra vai nos cobrar isso?

O cálculo do EOD é feito dividindo-se a capacidade de reposição dos recursos naturais renováveis ─ chamada “biocapacidade” ─ pelo consumo efetivo desses recursos pela humanidade ─ a chamada “pegada ecológica” ─ ao longo de um determinado ano, e multiplicando-se o resultado por 365 dias. Numa expressão matemática seria: biocapacidade mundial/pegada ecológica mundialx365. Esse cálculo tem sido feito por organizações internacionais não lucrativas, como a Global Footprint Network, a New Economics Foundation, a World Wildlife Fund e mais uma dezena de entidades envolvidas com estudos sobre a sustentabilidade no planeta.

A biocapacidade é a possibilidade de reproduzir recursos naturais consumidos pela população e a capacidade de reciclar/decompor resíduos. É um indicador da capacidade de regeneração do planeta frente à ação humana. É um conceito que envolve terras cultiváveis, pastagens, áreas de pesca, florestas, áreas urbanizadas, áreas de reservatórios artificiais e o tamanho da população que consome os recursos naturais e produz resíduos.

Visto que a biocapacidade tem sido cada vez menor e a pegada ecológica cada vez maior, o resultado do cálculo tem dado cada vez menos que 365. Neste ano de 2023, o resultado do cálculo deu 214. O que corresponde ao dia 2 de agosto passado. Ou seja, já ultrapassamos neste ano o consumo daquilo que o planeta Terra vai ser capaz de produzir ou renovar até o final do ano. Na comparação com o salário para durar 30 dias, é como se nosso saldo bancário estivesse já zerado no dia 18 do mês. A partir daí, entramos no vermelho. Vamos ter de contrair empréstimos a serem pagos no futuro, com juros.

EOD, biocapacidade, pegada ecológica são conceitos complicados, cuja validade pode gerar controvérsias. Mas, com certeza, ainda que sejam passíveis de aperfeiçoamentos, nos revelam verdades inquestionáveis. Os cálculos históricos indicam que até o final dos anos 1960 a biocapacidade compensava a pegada ecológica. Mas já no ano de 1970, o EOD foi o dia 30 de dezembro. Essa data crítica vem recuando desde então. No ano de 2000 foi no dia 22 de setembro. No ano de 2022, recuperação da pandemia, foi no dia 28 de julho. Em 2023, foi em 2 de agosto.

O constante recuo do EOD resulta do crescente consumismo de uma sociedade regida pelo capitalismo, cujo propósito é o lucro. O EOD é um dos alertas ambientais da insanidade dos rumos da civilização atual. A ele somam-se outros alertas ambientais, como o aquecimento global e os eventos climáticos extremos, e os alertas de degradação social, traduzida nas crises econômicas, guerras, multidões de refugiados, instabilidade política, totalitarismos, intolerâncias, miséria, criminalidade, concentração de renda, retrocesso cultural, religioso, moral...

Ou a humanidade compreende a dimensão ambiental, social e econômica do termo “sustentabilidade”, ou logo transformaremos a Terra num planeta insustentável. Quer dizer, inabitável por humanos.

sábado, 19 de agosto de 2023

Apagão de nacionalismo

 Publicado no Jornal da Manhã em 26/08/2023.

O apagão que tumultuou o Brasil no dia 15 de agosto último foi muito revelador. Até o dia seguinte as autoridades ainda não conseguiam ─ ou ainda não ousavam ─ revelar as causas. Mas admitiam que o sistema brasileiro é interligado, e que o problema num determinado local pode originar um efeito dominó de consequências nacionais. E também admitiam que as causas poderiam ser devidas a “falha humana ou até dolo”. Ou seja, não sabiam dizer se poderia ter sido um acidente ou uma sabotagem, algo premeditado.

Este apagão não poderia ter vindo em hora mais adequada para uma advertência: na véspera, o governo do Paraná vendia a antes estatal Copel ─ Companhia Paranaense de Energia ─ na bolsa de valores de São Paulo. Antes, a Eletrobrás já fora privatizada, em 2022. E, num sistema integrado como reconhecem as autoridades, onde um colapso localizado pode estender-se nacionalmente, as empresas de energia estaduais assumem a mesma importância estratégica da nacional. O possível dolo, ou seja, a possibilidade de uma sabotagem, aventado pelas autoridades, pode ter origem numa estadual, ou na nacional.

No Brasil ainda não aprendemos que o mundo vive um momento de conflitos e disputas que não dispensam as sabotagens? Que não é improvável que o apagão tenha de fato resultado de uma sabotagem? E que o sistema energético do país é de importância vital, e que seu colapso desencadearia o caos e a absoluta vulnerabilidade? E que hoje, no mundo, nações agem como as aves de rapina que são seus símbolos, debilitando suas presas para depois predá-las impiedosamente?

Energia, água, alimentos, combustíveis, transporte coletivo, saneamento, comunicações, saúde, educação, pesquisa científica, moradia... são setores vitais para um país que deseja tornar-se soberano, próspero e inclusivo. Setores que devem estar controlados por interesses nacionais, e não pelo volúvel e ambicioso interesse de empresas privadas. A razão de ser das privadas é o lucro. Doa a quem doer. A razão de ser das empresas estatais é, em princípio, a autonomia, o benefício coletivo, a independência. Embora as estatais estejam sob ataque constante daqueles que querem sucateá-las, depreciá-las e então privatizá-las, para o lucro e benefício de poucos vis apaniguados.

Essa é a diferença entre governos e políticas públicas socializantes versus privatizantes. É a diferença entre o socialismo e o neoliberalismo. Este último propugna o “estado mínimo”, alegando que o mercado é autorregulável, e que a estatização só atrapalha e atrasa. Que argumento tão enganador! A prática tem mostrado, no mundo todo, que a privatização dos setores estratégicos só traz prejuízos e retrocesso para as nações e suas populações. Quem ganha são aqueles poucos acionistas que já estão locupletados, mas nunca lhes basta a riqueza, nada consegue saciar sua sanha. Privatizações de setores estratégicos têm sido revertidas em reestatizações nos países que experimentaram os erros de acreditar na mentira da autorregulação do mercado.

Privatizar setores estratégicos, como é o caso da energia, é entregar o país à sanha da vampiragem transnacional.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Os gols que o Brasil tem perdido

 

O primeiro que me impactou muito, foi o gol que o Santos – meu time do coração – perdeu contra o Barcelona, na final do mundial de clubes de 2011. O time catalão dominava a contenda, punha o Peixe na roda. Mas não conseguia infiltrar-se na área, não conseguia finalizar. A defesa do Santos estava muito bem plantada. O placar ainda 0X0. Até que o Santos conseguiu um contra-ataque fulminante, rápido. Neymar pelo meio avançava com a bola, mas à frente dois zagueiros do Barça o bloqueavam. Correndo ao lado de Neymar, livre, ia o lateral Danilo, na entrada da área catalã. Mas Neymar quis passar no meio dos dois adversários. Tomaram-lhe a bola! E na continuidade do jogo, o Santos, envolvido pelo talentoso e entrosadíssimo Barcelona, acabou perdendo por 4X0. Teria sido diferente se tivesse feito o primeiro gol.

O segundo, que me lembrou muito aquele de 2011, foi neste 29 de julho de 2023, no jogo do campeonato mundial feminino de seleções, França versus Brasil. Estava 1X1, após o Brasil ter iniciado o jogo perdendo. Então, outro contra-ataque fulminante, muito parecido com aquele de 2011. Debinha com duas zagueiras francesas à sua frente, na entrada da área, a seu lado uma jogadora brasileira livre – não me lembro quem era. Mas Debinha quis passar pelo meio das duas adversárias, para fazer seu segundo gol na partida. Tomaram-lhe a bola! E o Brasil acabou perdendo, por 2X1. E depois, no 0X0 contra a Jamaica, foi desclassificado. Não teria sido, se tivesse empatado com a França.

Se há duas coisas que atualmente distinguem o melhor futebol do mundo deste que se tem praticado no Brasil, são o espírito coletivo acima da vaidade pessoal, e a rapidez e acerto da decisão, acima dos vícios da lentidão e do desnecessário drible a mais, que parece só querer humilhar o adversário. Os melhores do mundo hoje, inclusive os hermanos e as hermanas da América do Sul, já nos ultrapassaram nestes dois atributos, essenciais para o bom futebol.

O que há conosco, que não conseguimos praticar o futebol solidário e objetivo que os melhores têm praticado? E que já praticamos um dia? Talvez o futebol seja uma manifestação do sentimento de nação. Quantos talentos, e quantas benesses, temos desperdiçado, e quantos gols temos perdido? Perdas que nos perpetuam como a grande nação do futuro nunca alcançado?

Solidariedade, garra e acerto/objetividade nas decisões não são atributos que têm faltado somente ao nosso futebol. Talvez os esportes só estejam refletindo o que está acontecendo com o país, com sua população. Isso explicaria como fomos capazes de acolher, pelo voto universal, o surto de totalitarismo e obscurantismo que está grassando pelo mundo todo, mas que entre nós veio com demência inusitada. O retrocesso civilizatório que vimos no Brasil está se refletindo no futebol, e também noutros esportes. O individualismo e a vaidade superaram a solidariedade e a causa coletiva. O desvario, a negligência e o erro superaram o zelo e a diligência.

Apesar da extraordinária mudança de rumo nas últimas eleições, ainda temos tido exemplos demais que nos fazem desacreditar do Brasil, e nos impelem ao individualismo e ao descaso. Os estoicos exemplos de apreço e amor pelo país, e pela riqueza cultural e moral de seu povo, acabam soterrados pelos exemplos de iniquidade, improbidade e demência. E estes últimos parecem ser incansavelmente incensados por uma mídia insidiosa, que visa justamente nos desacreditar dos nossos valores, talentos, e de um futuro de generosa prosperidade.

Se não quisermos nos submeter a uma nova forma de escravidão, temos de recuperar nossa identidade, e resgatar os talentos que nos distinguem. É reaprender a sermos solidários e termos garra na busca das conquistas que representam avanço coletivo. Quer dizer, avanço civilizatório. Então também voltaremos a praticar o melhor futebol do mundo.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

A primavera chegou!

 Publicado no Jornal da Manhã em 01/08/2023.

No quintal aterrissa, feito um helicóptero, uma daquelas engenhosas sementes voadoras, que a natureza criou para que as plantas-mãe possam reproduzir-se a grandes distâncias. O vão das telhas do beiral da edícula já voltou a acolher a família de andorinhas que retorna todo ano, depois da migração de inverno. E, no céu, as exibidas andorinhas fazem graciosas acrobacias, salpicadas de chilreios de alegria. Debaixo da caramboleira do jardim, a metade de um pequeno ovo de pássaro, as bordas serrilhadas de bicadas, mostra que o ninho acima acolhe uma nova ave. Ao lado, a pitangueira já está coberta de flores e botões, o ar está perfumado, os ouvidos zumbem com a presença de um diligente enxame de abelhas. Em frente à casa, na calçada, a sibipiruna, que ficou completamente desnuda de folhas há duas semanas, já está repleta de novos brotos de um verde luminosamente juvenil.

A natureza está nos dizendo: a primavera chegou! E estamos falando de Ponta Grossa, cidade com clima subtropical, situada num planalto do sul do Brasil a quase mil metros de altitude, com temperatura média histórica do mês de julho de 13,8ºC! Mas, apesar dos sinais que a natureza nos dá, não chegamos ainda ao final de julho, não alcançamos a metade do inverno. Ademais, o noticiário nos informa que temos tido no planeta as maiores temperaturas médias de que se tem notícia. Florestas ardem no Canadá, ondas de calor e temporais fazem vítimas na Europa.

A apressada chegada da primavera, mais de mês e meio antes da data prevista no calendário, a par de ser motivo de alegria pelos sinais de renascimento, torna-se também motivo de grande preocupação. As evidências do aquecimento do planeta estão indisfarçáveis. Para quem quer enxergar, não é mais possível alegar que os alertas para mudanças climáticas radicais sejam fruto do alarmismo de desatinados ou do oportunismo de aproveitadores.

Já há 60 anos temos tido os primeiros alertas do aquecimento global causado pela ação humana. Mas pouco conseguimos fazer para deter essa radical transformação, com consequências imprevisíveis para a humanidade. Iremos sobreviver?

A queima de combustíveis fósseis, os desmatamentos, a descriteriosa utilização agrícola dos solos e a atividade industrial têm sido os principais responsáveis pela emissão dos gases estufa que acirram o aquecimento do planeta. O arranjo socioeconômico que engloba estas atividades declara guerras, é hiperconsumista, incentiva a cupidez humana, cultiva o individualismo e a alienação, concentra renda, dissemina a pobreza, acarreta imenso desperdício de recursos e bens, depreda o ambiente, extingue espécies, desequilibra a biodiversidade. E causa o aquecimento global! O que falta então para tomarmos consciência das insanidades que cometemos? E mudar para uma outra civilização, mais comprometida com sua própria sobrevivência?

Talvez esteja faltando abrir mão da cupidez, que gera a injustiça, a pobreza e a ignorância. Talvez esteja faltando chegar à beira da catástrofe e do morticínio, quando a evidência do erro nos faça escolher, a tempo, caminhos mais ajuizados.

Oxalá despertemos antes de nos precipitarmos no abismo.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

O templo Vila Velha

  Publicado no Jornal da Manhã e no Diário dos Campos em 14/07/2023.

O Parque Estadual de Vila Velha foi criado em 1953, por suas pitorescas e singulares formas rochosas, que já atraíam visitantes e inspiravam relatos empolgados desde o século XIX. À época da criação, ainda não eram bem conhecidos nem divulgados os impactos da ação humana na natureza. Os grandes desastres ambientais ainda não tinham acontecido, a preocupação com o meio ambiente era desdenhada.

Desde então, muitos erros foram cometidos no PEVV: restaurantes incrustrados nas rochas, visitação desordenada e depredação, piscina, kartódromo, refletores coloridos, elevador na Furna 1... Tudo isso refletiu um tempo de desconhecimento da justificativa ambiental para a existência das unidades de conservação.

A partir da década de 1980, com o crescente alerta dos desastres ambientais mundo afora e o alvorecer da consciência da necessidade das unidades de conservação para preservação de sítios delimitados relevantes, consolidou-se a legislação ambiental. No Brasil, ela foi finalmente concretizada no SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza –, lei publicada em julho de 2000. A revitalização do PEVV e remediação de muitos dos erros pretéritos veio então em 2003.

Os seres humanos têm muita dificuldade de compreender a relevância das UCs e da preservação da natureza. Não temos responsabilidade nem mesmo com a vida, nem a humana nem a dos demais seres vivos! Que diria então conseguir alcançar a compreensão da importância do meio ambiente, que está subjacente ao milagre da vida! E que é responsável pela preservação e evolução das espécies na Terra, nossa única casa comum! Os ruralistas, por exemplo, renegam as UCs, não compreendem que elas são a garantia da preservação do clima, da água, dos polinizadores, do sequestro de gases estufa, do controle natural de pragas, do equilíbrio da biodiversidade... Todos estes são fatores que contribuem para a manutenção da fertilidade e produtividade nos solos agricultáveis. O cidadão comum ainda despreza os alarmes para o aumento da temperatura, os eventos climáticos extremos, a escassez de água potável, a subida do nível dos mares, a extinção de espécies, a exaustão dos solos... Tudo a indicar que estamos a comprometer, para um futuro cada vez mais próximo, a vida no planeta.

A capela de Vila Velha é, do ponto de vista ecológico, um erro como todos os outros, cometidos pela incompreensão da função ambiental das UCs. A diferença é que, se os outros erros eram movidos por conveniências de alimentação, lazer e comércio, a capela o foi pela fé cristã. É preciso debater mesmo questões de fé. Nossa civilização é antropocêntrica, ou melhor, androcêntrica: endeusamos o ponto de vista humano masculino, subestimamos a natureza e o feminino. Não aprendemos ainda a lidar com a Mãe Terra, a Pacha Mama dos povos originário sul-americanos.

Com a radical transformação e degradação do meio natural na região de entorno, o PEVV passou a funcionar como um santuário vivo da biodiversidade. É muito mais que um templo! O Parque contribui para a preservação das espécies e mecanismos naturais que tentam compensar o impacto da ocupação humana. E é um símbolo do esforço para passarmos de um mundo androcêntrico para outro, que equilibre natureza e sociedade, o furor masculino e o amor feminino.

A discussão do tombamento da capela e seu significado como patrimônio cultural não pode ignorar o significado do patrimônio natural representado pelo PEVV.

 

sábado, 8 de julho de 2023

Mais médicos, Plano Safra, PAC, etc.

 Publicado no Jornal da Manhã em 08/07/2023.

Vamos rever os títulos de algumas notícias que têm aparecido nos jornais de Ponta Grossa neste ano: “Governo Federal libera R$1,5 bilhão para Santas Casas” (21-24/04/23); “Hospital Bom Jesus terá R$1,8 mi em verba federal” (17/05/23); “Ponta Grossa terá UPA em Uvaranas com investimento de R$5,5 milhões” (30/05/23); “Novos médicos iniciam atendimento nos postos de saúde de Ponta Grossa” (28/06/23); “Governo lança Plano Safra de R$364,22 bi para o agronegócio” (28/06/23); “Novo PAC garante obras para cidades da região” (01-03/07/23); “HU planeja nova torre para dobrar atendimentos em PG” (05/07/23).

O que há de comum nestas notícias? Todas elas envolvem diretamente a cidade de Ponta Grossa e região. Todas elas significam o aporte de recursos federais, ou no total da empreitada, ou em parte dela. E, lembremos, o Governo Federal atual não só foi muito mal votado, mas costuma ser demonizado na região.

Além das notícias mencionadas acima, há muitas outras, referentes a verbas para vacinação, universidades, Itaipu, UNILA, o PPA (plano plurianual), que interessam à região e ao Paraná, que poderiam também ser relembradas. O que significam todas estas notícias?

O Governo Federal atual está atuante, apresentando-se com notoriedade também na região de Ponta Grossa e Campos Gerais. Apesar de sempre ter sido renegado pela conservadora elite econômica ruralista que domina o cenário regional.

Há ainda muitos cidadãos que demonizam Lula, o presidente eleito, e seu partido. Eles são odiados, e tidos como ameaças para o país e para os direitos do cidadão. Será que são mesmo isso? Estas notícias acima não seriam um indício de que o Governo Federal atual está de fato interessado na prosperidade coletiva e em construir uma nação para todos? Há quanto tempo não tínhamos tantas notícias mostrando que temos um governo que está colocando as ações de verdadeira governança como prioridade em relação a bravatas, disparates e desmandos cotidianos, aparentemente destinados unicamente a aturdir o siso da população e a incitar à desunião e à desesperança? Há quanto tempo não tínhamos notícias mostrando o empenho do governo em reconhecer e atender direitos e necessidades do trabalhador e da população em geral? Renda mínima, preços mais baixos para alimentos e combustíveis, pisos salariais mais dignos, reforço à saúde e educação de qualidade, investimentos em setores básicos vão neste sentido.

As notícias que revelam o esforço de colocar o Brasil de volta no rumo da prosperidade, econômica, social e ambiental, somam-se a notícias que procuram resgatar o papel internacional de país promotor da paz, da justiça e da soberania das nações. Agora é preciso que a população supere o complexo de vira-lata que lhe tem sido incutido há séculos por insidiosa manipulação, desperte para o discernimento e inicie a tarefa de apaziguamento e reconstrução nacional.

domingo, 25 de junho de 2023

Uma guerra contra o Brasil

 Publicado no Jornal da Manhã em 15/08/2023.

“Uma guerra contra o Brasil – como a Lava Jato agrediu a soberania nacional, enfraqueceu a indústria pesada brasileira e tentou destruir o Grupo Odebrecht” é o título e longo subtítulo de livro de autoria de Emílio Odebrecht (Topbooks Editora, 2023), que acaba de ser lançado. À época do início da Operação Lava Jato, em 2014, o autor era presidente do Conselho de Administração da Odebrecht, um grupo de empresas atuante principalmente na área de construção pesada, no Brasil, América Latina e África.

A Lava Jato, comandada por Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, ordenou então a prisão de vários executivos da Odebrecht, incluindo os filhos de Emílio, acusados de atos de corrupção na condução das empresas do grupo. De acordo com o autor, transações financeiras normais do cotidiano das empresas foram consideradas como propinas e outros ilícitos, apesar dos detidos negarem as acusações.

O que Emílio relata então, com a prisão e pressão sobre os detidos para que cooperassem em delações premiadas, remete ao suplício narrado por Frédéric Pierucci, francês executivo da Alston autor do livro “A arapuca estadunidense – uma Lava Jato mundial” (Kotter Editorial, 2021): a tortura psicológica e até física para os detidos confessarem crimes que não cometeram e delatarem supostos cúmplices, permitindo que promotores e juiz aprisionassem outros executivos e estrangulassem suas empresas com pesadas multas e sanções de todo tipo. Pierucci era então um executivo de segundo escalão, foi preso nos EUA para que os diretores principais da Alston, reféns mantidos livres mas chantageados, sob ameaça de prisão e penalidades ainda piores, pudessem negociar a venda da empresa francesa para a concorrente estadunidense, a General Electric. O que de fato aconteceu.

Emílio, diretor principal do Grupo Odebrecht, não foi preso, mas seus filhos foram. O pai teve então de cuidar das empresas e famílias acéfalas, enquanto negociava com os lavajatistas o destino dos encarcerados e das empresas. O relato do autor revela como a operação visava destruir a Odebrecht, e outras empresas da área de construção pesada, bem como da área de petróleo, como a Petrobras, e de alimentos. O objetivo da operação não era combater a corrupção, mas era impor pesadas multas e tornar inoperantes, senão eliminar, empresas brasileiras que estavam concorrendo com similares estadunidenses, principalmente na América Latina e África.

Resumindo, a Lava Jato subverteu a noção de justiça e de ética no Brasil, graças ao vergonhoso apoio da grande imprensa, que promovia espetáculos midiáticos ao vivo das prisões, buscas e conduções coercitivas ilegais, para manipular a opinião pública. Os alvos da operação eram previamente demonizados e midiaticamente linchados. Instâncias jurídicas superiores foram emparedadas, tornaram-se incapazes de contrapor-se aos descalabros da ignominiosa operação.

Emílio encerra o livro enumerando todas as provas de que a Lava Jato foi uma operação organizada e patrocinada nos EUA, visando impedir a eleição de Lula e quebrar o país que era então a sétima economia do mundo, e que sonhava tornar-se soberano, livre da tutela e do jugo do Tio Sam. O autor reproduz fidedignos cálculos do Dieese ─ Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos ─ que apontam as consequências da Lava Jato: 4,4 milhões de empregos a menos no Brasil; perda de 3,6% do PIB nacional; redução de R$67,7 bilhões em arrecadações do governo; redução da massa salarial do país em R$85,8 bilhões. Isso sem contar as inúmeras perdas de contratos internacionais das empresas prejudicadas. E, ademais, a criminosa operação escancarou a “caixa de Pandora”, que iniciou o ciclo de descrédito na justiça, na política, na mídia, de ódio ideológico, de negacionismo e cegueira moral, ética e religiosa em que o país ainda se encontra submerso.

Os dois livros suscitam um terceiro título: “A arapuca estadunidense declarou guerra contra o Brasil”. Ela venceu a primeira batalha, mas já vem sofrendo reveses. Quem sairá vitorioso ao final, ainda veremos. Mas é preciso que todos os brasileiros conheçam o que revelam os dois livros, e unam-se para frustrar o plano de perpetuar nosso país como colônia dilapidada, exportadora de matérias primas com preços aviltados. O eterno “país do futuro”, mas sempre o país da injustiça e da pobreza.

sábado, 17 de junho de 2023

O desafio progressista

 Publicado no Jornal da Manhã em 29/06/2023.

Vamos convencionar entender por “progressista” tudo aquilo que visa transformar a sociedade atual, de privilégios e concentração de renda, em outra sociedade. Esta outra com mais justa distribuição de oportunidades e da riqueza, que é gerada por todos os que trabalham. Esta ideia de “progressista” confronta a ideia de neoliberalismo. Liberal, no caso, quer dizer a liberdade dos mais poderosos, donos do capital e consequentemente dos meios de produção e das oportunidades, continuarem explorando e precarizando o trabalho e concentrando renda.

Neoliberalismo acrescenta às ideias liberais o chamado “estado mínimo”, aperfeiçoando a “liberdade” dos liberais, que sem o controle estatal têm ainda mais independência para impor formas de produção que permitem que poucos se locupletem às custas do empobrecimento de muitos. As desigualdades econômicas e sociais nunca foram tão agudas como neste primeiro quarto do século XXI, após cinquenta anos do “laissez-faire” do neoliberalismo, que pode ser traduzido como “o mais forte sempre tem razão” da fábula do lobo e do cordeiro de La Fontaine.

O neoliberalismo dos últimos cinquenta anos não está mais conseguindo esconder suas nefastas consequências: crescente injustiça, conflitos e insegurança social, criminalidade, radicalismo, intolerância, guerras, crises ambientais e sanitárias, colapsos financeiros, sanções e embargos econômicos, ruína ética, moral e religiosa, falência da verdade e da credibilidade dos meios de comunicação... O agravamento da crise da civilização atual resulta também de outros fatores: população de oito bilhões; consumismo exacerbado; meio ambiente degradado; lucro desmesurado de poucos; muitas armas de destruição em massa; planeta conectado em tempo real, agudizando os “efeitos cascata”; verdade distorcida em favor de interesses inescrupulosos...

Diante dessa desastrosa realidade, empunhar a bandeira progressista é um difícil desafio. Primeiro, pelo desleal embate com a elite privilegiada do arranjo atual, que domina a mídia e a política, e não quer perder suas regalias. Segundo, pelo fato que parte dos explorados ou não enxerga que o seja, ou tão simplesmente aspira ascender economicamente e vir a fazer parte do restrito grupo de apaniguados do sistema.

Mas o pior inimigo dos progressistas é interno: é aquele lado sombrio que todo ser humano também tem dentro de si, por mais que sua consciência já o tenha convencido da urgência de ser compreensivo, solidário e amoroso para com o próximo e o planeta. Muitas qualidades negativas ocultam-se nesses sombrios pântanos da psique do Homo sapiens: vaidade, egocentrismo, individualismo, ciúme, ambição, arrogância, ignorância, medo...

É o animal selvagem que ainda trazemos dentro de nós, e que temos que ir aprendendo a domar a cada dia. É esse lobo que muitas vezes faz com que, mesmo entre progressistas, o ideal maior de prosperidade da coletividade seja suplantado pela ambição pessoal. Aí é perder o rumo da causa! Esquece-se de combater o monstro da desfaçatez que conduz a civilização à barbárie, perde-se o foco em disputas por cargos, prestígio e favorecimentos. O mesmo jogo da elite reacionária a ser combatida. Os progressistas acabam movidos pelo fisiologismo e o clientelismo, igualando-se àqueles que pretendiam combater.

Domar o lobo e unir-se em prol da justiça social deve ser o farol dos progressistas.