segunda-feira, 22 de julho de 2019

A moeda de troca do bolsonarismo: submissão ou rabo preso?


Publicado no Jornal da Manhã em 23/07/2019.
O caso dos navios iranianos no porto de Paranaguá paralisados por falta de combustível é emblemático. Mostra o que está sendo feito em termos de relações internacionais do Brasil, com efeito sobre as empresas brasileiras, entre elas a outrora gigante Petrobras, e o comércio internacional do país.
Os navios não recebem o combustível pois a Petrobras seria a única fornecedora disponível, e ela se nega a fazê-lo. Razão: “temor” de possíveis retaliações econômicas dos USA, que desde 2018 boicotam o Irã com sanções de todo tipo, acusando o país asiático de quebra de acordo nuclear internacional. Uma acusação muito discutível vinda de um país que há quase um século submete o mundo à força de seu poderio militar.
Os navios trouxeram ureia, uma matéria prima de fertilizantes essenciais para um estado agrícola como o Paraná, e deverão transportar milho, um componente alimentar, de volta ao Irã. Este país é um importante parceiro comercial do Brasil, só no primeiro semestre o superávit comercial brasileiro ultrapassou um bilhão de dólares.
Quantos significados nos traz este episódio! A outrora gigante Petrobras, que tinha uma política independente e alcançava o mundo todo, agora é uma empresa refém dos interesses estrangeiros. A Petrobras foi esfacelada pelas denúncias de corrupção que lhe foram imputadas nos últimos anos, desde a descoberta das gigantes reservas do pré-sal. Corrupção que é regra nas grandes transações internacionais, principalmente naquelas envolvendo energia, mas que governos e empresas resolvem com acordos sigilosos que não quebram nem submetem países e companhias. Não foi o caso com a Petrobras e o Brasil: a corrupção quebrou-nos como país e às nossas grandes empresas, e submeteu-nos aos protagonistas da “total dominação” do planeta, os USA.
Acordemos: o Tio Sam não é a democracia protetora da liberdade e dos direitos humanos, mas é o país que desde as bombas de Hiroshima e Nagasaki vem repetindo os maiores atos de terrorismo e de barbárie no mundo com um único objetivo: o poder hegemônico mundial. Hegemonia quer dizer inexistência de outros polos de poder, como o Brasil ameaçava tornar-se, com seu território, seus recursos naturais, solos agricultáveis, água abundante, localização estratégica na América do Sul e no Atlântico Sul, o extenso mar territorial, o tamanho da população e a indústria e infraestrutura já instaladas.
Mas a submissão da Petrobras e do atual desgovernado governo brasileiro à aspiração hegemônica do Tio Sam nos faz perguntar: qual a razão de nos tornarmos reféns de interesses que parecem contrariar nossos interesses? Será que no Brasil não existem mais patriotas, na política, na justiça, no governo, nas forças armadas, nos empreendedores, que acreditem que o país tenha um futuro promissor independente de ter de submeter-se ao grande poder hegemônico do império estadunidense? Ou a razão seria outra?
Não parece improvável que existam outras razões. Se acreditamos que o Brasil seja um país com um futuro promissor viável, o que nos fazem supor os muitos privilegiados atributos com que nosso país é abençoado, porque estariam hoje nossas grandes empresas e nosso governo curvando-se aos mesquinhos interesses e ditames de Tio Sam? Será que nosso desgovernado governo atual teria rabo preso com o tirânico imperador do norte? Quais seriam as razões deste rabo preso? Talvez a secreta ingerência do império estadunidense nas circunstâncias das eleições que levaram o atual desgoverno ao governo do Brasil? Talvez promessas inconfessáveis para um governo que se mostra igualmente propenso à violência e à dominação?
Está na hora dos brasileiros acordarem, antes que nosso país seja entregue à ganância e à sanha estrangeira de forma irreparável.

domingo, 21 de julho de 2019

O lobo e o cordeiro na nova tropicália



Semelhante àquela antiga fábula de La Fontaine, mas agora já em nossos dias, chegavam, distanciados de uns poucos metros, um lobo e um cordeiro à beira de um regato de águas límpidas, daquelas que se pode beber. Os dois eram candidatos à iminente eleição para a direção do rebanho de ovelhas. Vinham de longas caminhadas e comícios, ambos estavam cansados e sedentos. O lobo vestia um colete militar camuflado cheio de bolsos que pareciam trazer muitos volumes. O cordeiro portava um lenço vermelho de algodão enrolado em torno do pescoço de ondulada lã branca.
Do outro lado do regato, um bando de ovelhas que estava a pastar viu a aproximação dos dois e pôs-se a observá-los. Era um grupo de potenciais eleitores, que logo chamou a atenção do lobo e do cordeiro.
Sequioso que estava, antes de qualquer debate o cordeiro resolveu primeiro saciar a sede. Ao abaixar-se sobre a água límpida ávido por um gole, ouve do lobo situado alguns metros a montante, do mesmo lado do regato:
─ Heeeeiiiii, pode parar! Não está vendo que vou beber dessa água e que se você o fizer antes de mim vai turvá-la e não poderei mais bebê-la? Isso lá são modos de um candidato como você que diz que tem como princípio básico o respeito ao próximo?
Ele falava alto, de soslaio espiava a reação do bando de ovelhas do outro lado do regato. Ficava evidente que queria impressioná-las para ganhar-lhes os votos.
─ Ora, não posso estar turvando a água que vai beber ─ respondeu o cordeiro. ─ Estou à jusante, você é que poderá turvar a água que eu vou beber. Por isso apressei-me para beber antes que isso acontecesse.
─ Ah, logo vi. Seu discurso fala em justiça, em igualdade, mas na hora de beber bem que se apressa para ser o primeiro, sem se importar com a água turva que vai provocar. É bem o que esperar de um comunista...
─ Não turvei a água. Ainda nem consegui beber. E já disse, estou abaixo, eu é que corria o risco de ter a água turvada. E comunista? Quem disse que sou comunista?
─ Ora se esse seu discurso em favor de baderneiros que fazem greves, invadem fazendas, fazem quebra-quebras em arruaças pelas cidades não é discurso de um comunista! E esse seu lenço vermelho, meu caro! Vermelho é a cor dos comunistas, vá agora negar isso. Você já não engana ninguém.
─ Você está enganado! Quem faz greve não é baderneiro, mas é o trabalhador que ganha a vida com o trabalho, e que procura defender seus direitos frente a patrões que parece que lamentam o fim da escravidão e nunca têm sua ambição saciada. Querem cada vez mais explorar seus empregados. Enlouquecem para ganhar tanto dinheiro que nem sabem o que fazer com ele. E as fazendas invadidas são aquelas cujos donos foram condenados por lei. São grandes proprietários rurais condenados por trabalho escravo, trabalho infantil, terras devolutas, sonegação de impostos, fraudes e outros crimes. As manifestações nas cidades são pacíficas, são multidões de ovelhas que querem chamar a atenção para injustiças, para explorações, para desmandos de governantes que se esqueceram do rebanho e passaram a agir em causa própria. Quem faz os quebra-quebras são lobos em pele de ovelhas que se infiltram para desmoralizar as manifestações...
A fala do cordeiro tinha firmeza e razões, e já ia longe demais. O lobo interrompeu-o bruscamente.
─ Isso é conversa de comunistas que sempre enganaram o povo. A História está cheia de exemplos de que o comunismo leva à bancarrota das nações. Veja o caso da França, Rússia, Camboja, Cuba, Nicarágua, Venezuela... Nunca deram certo. Os comunistas são ditadores tiranos, obrigam a trabalhos forçados, encarceram, fuzilam e decapitam seus opositores, separam famílias, sacrificam crianças, usurpam a propriedade do cidadão honesto para entregá-la a bandidos, perseguem religiosos e condenam quem crê em Deus. O próprio Deus é proscrito nessa hedionda ideologia ateísta. Querem dominar o mundo e disseminam enganosamente sua malfadada e infectante doutrina usando as artes, a literatura, a educação... E o comunismo não passa de uma mentirosa utopia.
O lobo revelava-se um hábil orador. O cordeiro procurava mostrar-se sereno, mas era visível que ia perdendo a paciência. Já estava com as patas dianteiras um pouco dobradas e a cabeça um pouco abaixada, como se estivesse prestes a arremeter contra o lobo, embora nem chifres tivesse. Controlando-se, respondeu:
─ Quanta ignorância! Nunca houve verdadeiro comunismo no mundo. Nesses países que você citou aconteceram sim revoluções populares, depois sabotadas por poderes imperialistas estrangeiros ou aparelhadas por homens truculentos e sanguinários que implantaram regimes de terror. Comunismo não é uma utopia inalcançável, é um sonho que a Humanidade vai viver quando conseguirmos ser mais solidários e menos egoístas e selvagens. E nem sou comunista, sou socialista. O lenço vermelho que uso é da cor do sangue derramado pelos patriotas e mártires que tombaram pela justiça e pela liberdade dos oprimidos ao longo da História.
O lobo notou que a fala do cordeiro ia enchendo de brios o rebanho do outro lado do regato. Deixou então de lado a retórica de político e mostrou sua verdadeira natureza. Arreganhou as presas e antes de saltar sobre o cordeiro ainda bradou:
─ Mentiras. Vocês cordeiros são mestres na mentira. Além de mentirosos são falsos. Comem muito mais grama que nós, os lobos, que só fazemos ensinar a cultivá-la para vocês. E por isso a grama anda escasseando.
Assim dizendo, pulou sobre o cordeiro que nem conseguiu reagir, fincou as aguçadas presas no pescoço lanoso e branco, tingiu-o de um rubro sanguíneo que acabou por se confundir com o lenço vermelho. De pronto, ferozmente devorava o pobre cordeiro abatido.
As ovelhas do outro lado do regato ficaram estarrecidas. Um terço delas, intimidado, surpreso e indignado, ficou paralisado mas com crescente revolta interna. Seu voto num outro possível candidato cordeiro estaria fortalecido, não fosse o medo. Outro terço contagiou-se com a raiva, admirou-se do poder do lobo, pensou que se votasse nele tornar-se-ia meio lobo, talvez um dia viesse a ser considerado igual aos lobos e aceito entre eles. Outro terço assustou-se, acovardou-se. Achou melhor ocupar-se de outra coisa, que não aquela eleição próxima. Afinal, tinha-se que pensar na grama a pastar, no inverno à frente, na brancura da lã, na tosquia, nos filhotes. E naqueles constantes sumiços de ovelhas, que ninguém sabia explicar.
E o lobo, após saciar a voracidade e o afã, amansou o jeito, voltou-se para as ovelhas que ainda permaneciam do outro lado do regato e deu início a um rosário de promessas para melhorar a vida no rebanho. Mas não tocou no assunto do sumiço de ovelhas. E nem elas ousaram perguntar.
Moral da história: contra o poder da boçalidade não há argumentos.

domingo, 14 de julho de 2019

Civilização e barbárie



Se pensarmos no tempo necessário para a evolução das espécies, a humanidade é ainda uma criança. Há dez mil anos, com o fim da última grande era glacial, o ser humano começou a cultivar alimentos, acumular estoques, construir cidades e fazer a guerra para saquear os estoques alheios. Dez mil anos é muito pouco comparado com o aparecimento dos primeiros hominídeos, há cerca de cinco milhões de anos.
Demoramos cinco milhões de anos para deixarmos de ser caçadores-coletores e começarmos a nos tornar civilizados, com necessidade de normas para o convívio nas cidades que começaram a surgir. E demoramos dez mil anos para construirmos as megalópoles que temos hoje, a tecnologia de comunicação no mundo globalizado, as armas que são capazes de destruir o planeta. Também nos tornamos capazes de destruir o planeta mesmo sem guerras e sem o uso das armas, graças a uma sociedade consumista e perdulária que não consegue atinar com os limites de exploração do planeta e contamina águas, o ar, os solos, desencadeia o aquecimento global.
Nestes tempos de superpopulação e superexploração do planeta, como temos conseguido conviver numa relativa ordem? Isso pareceria improvável visto sermos ainda uma espécie tão jovem, que desenvolveu tecnologias poderosíssimas mas ainda não desenvolveu a ética, a sabedoria, o bom senso para evitar que a criança que a humanidade é cometa desatinos irreparáveis.
A ordem que vivemos é muito relativa, pois os conflitos armados pelo mundo e as tensões dentro de uma injusta sociedade de classes revelam um equilíbrio muito débil. Mesmo precário, este equilíbrio só é conseguido pelo que denominamos os avanços civilizatórios: a organização em estados com poderes que disciplinam as condutas, um sistema de leis que inibe as transgressões, um sistema educacional que procura ensinar-nos a conviver como seres socializados, e não mais como feras governadas por instintos de supremacia e sobrevivência. Os quais ainda são muito fortes entre nós, embora não gostemos de reconhecer isso.
E se estes avanços civilizatórios entram em colapso? Se os poderes do estado deixam de ser funcionais, se as leis não mais são respeitadas, se a educação ao invés de ensinar-nos o respeito com o próximo ensina a violência e o ódio? Seria a barbárie.
Parece que é isto que estamos vendo acontecer. Os fazedores de leis, o legislativo, deixou de atender às aspirações da população que deveria estar representando, e passou a legislar em causa própria e da poderosa classe dominante que controla a mídia e os recursos financeiros. E cobra caro para cumprir este papel, na forma das verbas liberadas pelo executivo. Este parece ser manipulado pelos interesses globalizados que não conseguem enxergar além do lucro e da dominação: querem apoderar-se de recursos energéticos, de minérios, de solos agricultáveis, de recursos hídricos e pesqueiros, das pouco conhecidas riquezas da Amazônia, querem alastrar seu poder geopolítico sobre os continentes, os mares e os povos, estes vistos como consumidores potenciais.
Ao mesmo tempo, o ensino negligencia os temas que nos tornam mais humanos para enfatizar aqueles que nos tornam mais ferramentas. Devemos ser bons tarefeiros, mas não devemos questionar, não devemos pensar, não devemos aprender a viver em sociedade. Antes, devemos segregar, devemos odiar.
Tal civilização parece estar no caminho do colapso. Ou recuperamos um caminho civilizatório, ou estaremos no caminho da extinção. Quem sabe para dar lugar a outra espécie mais promissora.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Como lograr um povo e um país

Publicado no Jornal da Manhã em 05/07/2019.

Não é tão difícil lograr um país e todo seu povo, basta ter à mão os meios necessários para tanto. Às vezes o cidadão será logrado de bom grado, até ajudará no logro de outros cidadãos. Este cidadão ao mesmo tempo logrado e logrador ambiciona usufruir também dos privilégios do logro.
Mas vamos ao que interessa: o que é preciso para lograr o cidadão comum? Primeiro é preciso um bom número de homens ditos públicos, mas que há muito tempo deixaram de sê-lo. Não têm mais escrúpulos nem princípios éticos, não sabem mais o que seja o espírito público. São políticos, juristas, empresários, pelegos, militares, funcionários. Homens que decidem sobre as leis, os cargos públicos, o uso do dinheiro do país, os rumos a seguir.
Depois, é preciso controlar as informações, isto também é essencial. Vivemos a era da informação. TVs, rádios, jornais, revistas, as mídias sociais devem ser capazes de divulgar somente informações que reforçam o logro, e esconder aquelas que poderiam despertar os logrados.
Terceiro, é preciso que o sistema educacional mantenha os logrados na infantilidade cívica. É mais certo que se tenha sucesso em lograr os analfabetos políticos, incapazes do senso crítico e da autonomia.
Estes são os três ingredientes essenciais para o logro: dirigentes corrompidos, mídia facciosa e mentirosa, povo civicamente infantilizado. Há, claro, muitos outros ingredientes que adicionam requintes ao logro. É preciso ter aliados externos poderosos, eles auxiliam com recursos financeiros, com tecnologia de arapongagem e inteligência, com a farsa das declarações de reconhecimento de uma sórdida diplomacia. É bom que o país logrado tenha o que oferecer a estes poderosos aliados externos. Petróleo, minérios estratégicos, farta água potável, vastos solos agricultáveis, a Floresta Amazônica, um mercado de duzentos milhões de consumidores, o controle geopolítico da América do Sul e do Atlântico Sul, uma enorme extensão de mares territoriais deverão bastar para saciar a sanha desses vorazes aliados externos.
Convém também firmar uma sólida rede nacional de comparsas que controlam a economia do país. São os grandes banqueiros, especuladores, empresários, proprietários de terras, que vivem dos juros da dívida pública e da exploração do trabalho, decidem sobre os investimentos, os empregos, e assim podem sabotar a economia do país, se isto for conveniente para, por exemplo, deflagrar golpes e derrubar governos democraticamente eleitos, se estes se opõem ao grande logro.
Convém também pesquisar sempre as técnicas mais sofisticadas para cooptar os oportunistas que apóiam o logro, e que são conscientes dele. E para engambelar e aqueles que apóiam o logro iludidos, acreditando que ele é a salvação da pátria. Estes, coitados, são a maioria. São os logrados que julgam que são os cidadãos exemplares, que finalmente deixaram de ser ignorados, e agora são paladinos da cidadania. Exibem as cores da bandeira sem noção que estão a serviço do loteamento do país para a rapinagem internacional.
Estes logrados acreditam que agora a boa índole inerente de políticos, autoridades, patrões vai resolver os problemas do país. E consuma-se assim o logro.