domingo, 3 de junho de 2018

Lições da crise

Publicado no Diário dos Campos em 09/06/2018 e no Jornal da Manhã em 14/06/2018.
Quais aprendizados devemos colher da crise de caminhoneiros que parou o Brasil e transtornou a vida de todos?
É bom que tiremos lições dessa crise, sob pena de que ela não seja só uma crise, mas signifique um colapso. Lembrando, crise é quando o velho já está morto, e o novo ainda não nasceu. Colapso é quando o velho já está morto, e o novo já não tem como nascer. Que saibamos reconhecer os erros e dar vida ao novo, antes que seja tarde.
Quais erros temos cometido? São vários. Primeiro o erro de depender exclusivamente do transporte rodoviário, uma escolha de meados do século passado, que visou implantar a indústria automotiva neste nosso país continente. Escolha que priorizou o interesse das multinacionais automotivas, ignorando as peculiaridades do Brasil.
Depois o erro de depender de um sistema de produção de alimentos e produtos básicos que demanda transporte por longas distâncias. A produção e comercialização locais, diretas entre produtor e consumidor, praticamente inexistem. Se o transporte rodoviário para, o país para. Que tremenda vulnerabilidade logística!
Depois o erro de submeter o preço e a comercialização de bens estratégicos, como o petróleo e seus derivados, ao interesse de corporações transnacionais e seus acionistas, e não ao interesse da população e da soberania do país. É o grosseiro erro de acreditar que o mercado é melhor do que o Estado na gestão dos recursos estratégicos do país. Quem defende este erro ou é um ambicioso beneficiário direto de seus equívocos, ou alguém que ainda não refletiu sobre o conceito de “espírito animal” de John Maynard Keynes, um consagrado economista do século XX respeitado nos meios acadêmicos mas propositalmente esquecido pelos atuais adoradores do deus mercado. O “espírito animal” de Keynes manifesta-se sobretudo nos empresários, que encontram no adágio da livre concorrência o subterfúgio para a prática do salve-se quem puder, onde o mais velhaco é o mais favorecido. Um Estado verdadeiramente democrático forte é essencial para balancear o espírito animal e evitar as enormes desigualdades sociais que temos visto.
Há ainda o erro de acreditar em políticas de coalizão, em que interesses e princípios muito díspares conluiam-se oportunisticamente para exercer o poder, afastando-se do interesse da população e da ideia de construção de uma nação republicana e soberana. Mais hora menos hora as deserções e traições acontecem, as crises políticas sobrevêm.
E há ainda erros crônicos, decorrentes dos erros anteriores. Um sistema educacional fracassado, que não consegue formar cidadãos críticos e lúcidos, capazes de refletir e de intervir construtivamente nos destinos do país. Uma mídia viciada, que atende aos interesses de quem visa perpetuar privilégios de uma classe dominante atrasada. Um povo ignaro e manipulável, que facilmente é condicionado a abraçar causas retrógradas, como apoiar candidatos autoritários e pedir pela intervenção militar. Quem clama pela intervenção militar hoje ou é alguém mal intencionado, que enxerga nesse retrocesso a oportunidade para benefícios próprios, ou é alguém que desconhece o significado de uma intervenção militar, não viveu a ditadura nem conhece história.
A crise deflagrada pela paralisação dos caminhoneiros deveria fazer-nos refletir, e agir, sobre estes tantos erros que temos cometido, e com certeza muitos outros a eles associados. Se soubermos deixar de lado o nosso “espírito animal”, nossas ambições e paixões pessoais, e colocarmos o bem comum acima de nossas inseguranças e ganâncias, poderemos aproveitar a crise para corrigir os erros.
Que saibamos aproveitar a crise, antes que ela se torne um colapso de consequências imprevisíveis. Que esta crise marque o crepúsculo de uma época de sucessivos equívocos. Que o Brasil acorde de seu longo sono.

2 comentários:

  1. Parabéns pelo artigo caro Mario. Nele encontrei muito do que penso. Sempre fui muito critico desse modelo que os grandes capitalistas escolheram pra nós. Quanto ao povo ser despreparado e sem senso critico sempre lembro das palavras o grande educador Paulo Freire: SERIA UMA ATITUDE INGENUA ESPERAR QUE AS CLASSES DOMINANTES DESENVOLVESSEM UMA FORMA DE EDUCAÇÃO QUE PROPORCIONASSE ÀS CLASSES DOMINADAS PERCEBER AS INJUSTIÇAS SOCIAIS DE UMA FORMA CRÍTICA.
    abs. Carlos SA

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  2. Tirar lições da crise e o primeiro passo do nosso aprendizado.

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