Publicado no Jornal da Manhã em 16/06/2021.
Os cães são adestráveis. Podemos
fazê-los dóceis cães-guia e cães de companhia ou ferozes e assassinos cães de
guarda e cães-policiais. Ou podemos treiná-los para tarefas e respostas
programadas, como os farejadores, os de circo e os de laboratórios pavlovianos.
Moldamos o comportamento e as reações dos cães, basta adestrá-los com
suficiente insistência. Os exemplos mais extremos talvez sejam os cães de rinha:
odeiam-se sem se conhecerem, e, confrontados, engalfinham-se até a morte.
E os seres humanos? São assim também tão
adestráveis? Se aos cães falta-lhes capacidade de reflexão e autodeterminação
para escaparem da sina que lhes é impingida, parece que os humanos não são
muito diferentes. O aforismo “dividir para dominar”, aplicado pelos impérios
para conquistar suas colônias, mostra a força do condicionamento que faz irmãos
se odiarem e se matarem, abrindo livre caminho para os invasores. Tem sido
assim em todos os impérios coloniais, na Ásia, na África, na América Latina.
Até na Europa e América do Norte conhecem-se as históricas manipulações que incitaram
o ódio entre religiões, raças e castas, atiçando guerras, perseguições,
fanatismos e atentados.
Nós, seres humanos, não somos tão
racionais quanto julgamos. Desdenhamos a irracionalidade que nos faz reagir
como cães raivosos. E os adestradores de humanos, usando recursos sofisticados,
fazem de nós o que bem querem: ou nos amansam submissos, ou nos fazem odiar até
nossos irmãos, compadres e vizinhos.
Vejo isso no Brasil hoje. O ódio está
sendo fomentado e as pessoas não têm discernimento suficiente para perceber
que estão sendo treinadas para reações violentas, descabidas: o velho
conservador odeia a jovem progressista; o policial odeia a professora grevista;
o cristão católico odeia o cristão evangélico; o branco da zona sul odeia o
negro do morro; a dona de casa de verde e amarelo odeia o pai de família de
vermelho; o taxista odeia o uberista; o porteiro do prédio passa a odiar o
antes amado compositor popular; os torcedores dos times rivais sempre se hostilizaram,
mas agora se odeiam; a professora grevista também odeia o policial; a jovem
progressista também odeia o velho conservador; até um adesivo no vidro do carro com
opinião desperta ódio irrefreável.
Entre os humanos, sempre houve aquela
parcela mais próxima dos cães, que é mais fácil de adestrar e de incitar ao
ódio, para semear o ambiente de rinha. Tanta raiva ainda não conseguiu fazer
que despertássemos para o fato que estamos sendo doutrinados para o ódio, para
nos debilitarmos e autodestruirmos. Uma guerra ideológica que só interessa a
quem quer ver-nos sempre como o país do futuro, a colônia do passado e do
eterno presente.
Mas, felizmente, se por um lado
desdenhamos nossa canina herança irracional e manipulável, por outro já temos
sim alguma racionalidade. É o “eu superior” que já viceja em nós. Já somos
capazes de refletir, de compreender e de escolher por nós mesmos quem somos: se cobaias controladas pelos reflexos condicionados, ou se indivíduos lúcidos e
livres.
Não é tarefa fácil libertar-se do
condicionamento que nos domina no dia a dia, pela TV, rádio, jornais, revistas,
cinema e agora as poderosas mídias sociais. Mas se não formos capazes de
exercer nossa racionalidade, e nossos sentimentos e solidariedade, para
neutralizarmos o perverso adestramento que nos é imposto, logo estaremos
banalizando nas ruas a mesma sangrenta violência das rinhas, que hipocritamente
declaramos foras da lei.
O Homem é um animal que pensa. E pensa que não é um animal.
ResponderExcluirÓtima frase Valenz, sintetiza tudo que se pudesse dizer sobre o bicho homem.
ExcluirUma triste constatação... Não caminhamos muito distantes daqueles rebanhos, de várias espécies, confinados nas savanas e selvas africanas;uma saga interminável, a luta pela sobrevivência... Mario Sérgio, não é nada confortável termos que admitir que no dito mundo civilizado, ainda hoje, temos o nosso maior predador. O ser humano, disfarçado, é O bicho...
ResponderExcluirAcho que a parábola do joio e do trigo no final vai revelar quem é quem entre nós humanos. Mas não se engane. Todos estão no mesmo barco e podem despertar a qualquer hora do sono da indiferença e/ou da truculência e violência. Quem viver, verá.
ResponderExcluirabs.