Postado no Portal ncg.news em 06/07/2021.
A Vila Placidina fica entre o centro de
Ponta Grossa e a Vila Estrela; estão nela o Hospital da Criança, Chácara
Margherita Masini, Polícia Federal, Regional de Saúde e UPA Santana. Muitas
vezes ela é confundida com a Vila Estrela, que na verdade começa mais além. Ela
já fez jus à placidez do nome, mas as mudanças chegaram.
Este incógnito bairro é cortado pela Rua
Balduíno Taques, caminho para Curitiba, Palmeira e Vila Oficinas. Há 25 anos moramos
em casa na Vila Placidina, a 30 metros da Balduíno. Quando a família aqui chegou,
o silêncio reinava à noite, apesar da proximidade da via de saída da cidade. Era
como se morássemos num bucólico vilarejo do interior. A calma do lugar nos animou
a plantar árvores frutíferas no pequeno jardim em frente à casa. Nele, sabiás,
sanhaços, bem-te-vis, guaxos, saís-azuis, às vezes até o tié-sangue, vêm bicar
pitangas, acerolas e carambolas. Árvores generosas, amiúde carregadas. E pardais,
canários, avoantes, chupins e rolinhas vêm também ciscar a quirera que lhes esparramamos.
Tico-ticos desapareceram. Foram sumindo, ao mesmo tempo em que proliferaram os chupins.
Decerto efeito das extremosas mães tico-tico, que, indulgentes, alimentam grandes
filhotes de chupins. Logo os chupins não terão quem choque seus ovos. Um alerta
aos humanos e seus parasitismos.
Na calçada na frente da casa, uma
sibipiruna alterna épocas desfolhadas com verdes folhas jovens e floradas
amarelas. Suas vagens se contorcem e rompem ao sol, arremessando as sementes. Projéteis
que ricocheteiam ruidosos nas vidraças, anunciando a primavera. Outros pássaros
frequentam a sibipiruna, mormente quando ela está florida: cambacicas,
gaturamos, coleirinhos, beija-flores, saíras-preciosas. Isso tudo nos transporta
a uma atmosfera campestre, a apenas mil metros da praça da matriz.
Mas a placidez da Vila Placidina não
resistiu ao “progresso”. Carros e motos barulhentos, veículos policiais,
ambulâncias e bombeiros com sirenes disparadas, vêm nos revelando que não
estamos no vilarejo, mas sim na cidade que é agitado polo regional. E, nos
últimos anos, uma novidade: alta madrugada, às vezes ouve-se o apito e o ronco dos
motores a diesel de locomotivas. Com tanta nitidez que parece que estão
correndo pela Balduíno. Por algum sobrenatural sortilégio, a diurna avenida viraria
via férrea nas horas mais recônditas da noite?
Quando notamos os sons da ferrovia ao
lado de casa no silêncio da madrugada, primeiro pensamos que fosse sonho ou
ilusão. Não, não era! Seria assombração? Cheguei a sair para o quintal para
perceber melhor de onde vinham aqueles desarrazoados ruídos. Eles eram bem
reais, vinham mesmo da Balduíno. Mas por lá não passava nenhuma locomotiva a
marcar com seus berros e sacolejos o trajeto percorrido. De onde vinham então
aqueles estranhos sons?
Fantasiei que aparições de antigos trens
deveriam estar assombrando o que antes fora a estrada de ferro que atravessava Ponta
Grossa. Trens fantasmas! Teria sido esse o motivo do nome da torcida do time de
futebol da cidade? Para compensar a fantasia, fui procurar nos mapas a ferrovia
mais próxima. Ela está muito longe, lá para os lados do bairro da Nova Rússia. Viriam
de lá os sons que ouvíamos no silêncio da noite?
Enfim reconhecemos que não eram só os
sons da fantasmagórica ferrovia que tínhamos passado a escutar. Os raros
veículos ruidosos que percorriam a Balduíno durante a noite também nos chegavam
com uma intensidade que não conhecíamos. Será que antes eles não aconteciam? Ou
algo na cidade estava fazendo que eles chegassem a nós com mais força?
Numa manhã de dia útil, ao sair de carro
da garagem de casa, notamos mais um sinal das mudanças no bairro: a rua estava
tão cheia de carros estacionados, que um descuidado motorista parou obstruindo
parte da guia rebaixada em frente ao portão. Não chegava a impedir a saída, mas
a dificultava muito. Distraidamente, pensei que era mais um efeito dos gigantes
prédios de mais de 20 andares, recém-construídos bem no quarteirão do outro
lado da Balduíno. Os carros eram de moradores ou de trabalhadores nos muitos
apartamentos da urbe que cresce para o alto, enquanto o espaço no chão parece
encolher.
De repente caiu a ficha: os prédios!
Eram eles os responsáveis pelos sons noturnos! Não eram trens fantasmas!
Decerto sobretudo em noites com ventos favoráveis, os sons da ferrovia, bem audíveis
lá na distante Nova Rússia, são trazidos pelo ar até os enormes anteparos de
concreto e vidro, e refletem-se na vizinhança como se de fato os trens
estivessem ali.
E os colossais blocos de concreto não só
nos trouxeram as locomotivas à Balduíno. Eles são imensos tapumes. Retalham o
que antes era o nosso vasto azul do dia ou o borrão de estrelas das noites sem
névoa. Roubam-nos o horizonte, o sol, o céu onde passeávamos nosso senso de vastidão.
Um fenômeno de propagação e reflexão do som nos monólitos que brotam
incontíveis e, ao mesmo tempo, de invasão da janela do firmamento por onde
divagávamos nossas cismas.
O “progresso” vem confinando às lembranças
o tempo da plácida Vila Placidina.
Tempos que sempre estarão na memória , esses de sossego e aconchego.
ResponderExcluirO progresso destrói a paz de todos , derruba as árvores e os pássaros migram e o barulho toma conta de tudo.
Sensacional!
ResponderExcluirParabéns!
Lembrei-me da musica do Chico e do Francis Hime, Passaredo.
ResponderExcluir"Bico calado, toma cuidado, que o homem vem aí".
E outras tantas que tratam do tema.
Bela crônica. Mais uma.
abs.
Carlos SA