domingo, 7 de abril de 2024

Talento e vocação

 Publicado no Jornal da Manhã em 09/04/2024.

Vamos aqui considerar como “talento” aquela habilidade nata edificante, que engrandece o indivíduo e contribui para o convívio social pacífico e próspero. Diferente de outras habilidades, que podem ser nefastas, como a do projetista de minas terrestres explosivas, ou a do exímio ladrão profissional. E vamos considerar como “vocação” o chamado, o desejo e empenho em firmar-se numa determinada habilidade, seja profissional, artística, esportiva, científica...

Bem-aventurada aquela pessoa na qual convergem talento e vocação! Quem tem talento para ser um músico, e deseja firmemente sê-lo, superará obstáculos, e terá grande chance de tornar-se um músico bem-sucedido. Mas quem tem talento para ser um escritor, e não deseja nem se empenha em sê-lo, talvez nunca escreva nada. Para concretizar-se, o talento deve vir acompanhado da vocação.

Há ainda outras componentes decisivas nessa relação entre talento e vocação. A oportunidade, concedida pelo ambiente, natural ou social, em que a pessoa vive e evolui, é uma delas. Alguém com talento para a música que nunca seja apresentado a ela, nem a um instrumento musical, dificilmente poderá tornar-se um músico. A menos que seu talento seja tão prodigioso que ele encontre a música nos sons da natureza, e crie seus próprios instrumentos. Alguém com talento para a literatura que nunca venha a conhecer um livro, nem a linguagem escrita, dificilmente poderá tornar-se um escritor.

Outra componente é a circunstância. Entre os sobreviventes de um acidente aéreo na floresta, por exemplo, um hábil escriturário da cidade pode ser forçado a revelar-se um competente intérprete da ignorada linguagem da selva. E pode salvar a todos. Um milagre da “Santa Necessidade”.

Uma condição essencial para que o talento se manifeste é a aceitação do dom natural. Mas é possível que o talentoso nunca descubra seu talento ─ dizem que esta é a situação mais comum ─. Ou até saiba dele, mas o rejeite, influenciado por modismos, preconceitos ou imposições sociais. A mulher agregadora e líder nata pode vir a ser segregada e sabotada num meio ferozmente patriarcal, e pode optar por anular-se. O poeta sensível pode preferir o anonimato numa sociedade machista e mercantil. Ou ainda, uma talentosa cozinheira nata pode ser convencida que cozinhar seja tarefa de escravas e serviçais, e assim prefira nunca desenvolver e praticar seu condão.

Há ademais o outro lado: o desejo, a vocação, divorciada do talento natural. Neste caso, a eventual realização do desejo, a transformação da vocação em comprovada habilidade, vai depender da combinação de outros fatores. Sobretudo, de firme dedicação. Vai ser preciso adquirir uma habilidade que não se possuía naturalmente. Isso é possível, com empenho e perseverança. E desde que a pessoa seja capaz de vencer as limitações para construir-se talentosa na sua vocação. E de reconhecer quais os limites intransponíveis. Não é plausível que um deficiente visual venha a tornar-se um fotógrafo renomado. Nem que alguém dotado para ser um velocista torne-se um campeão de levantamento de peso pesado. Nem que a pessoa com aguda deficiência de atenção transforme-se numa revisora de textos eficiente.

Em qualquer dos muitos casos possíveis ─ estes aqui lembrados são só uma parca amostragem ─, é essencial que cada ser humano tenha oportunidade e estímulo para reconhecer, valorizar, praticar e desenvolver seus talentos. Educação e inclusão social são capitais para que isso aconteça, e devem ser prioridade de um governo democrático.

É bem crível que todos nós, sem exceção, tenhamos nossos talentos natos. Lograr descobri-los e exercê-los realizaria o indivíduo e acrescentaria à sociedade.

4 comentários:

  1. Uma excelente reflexão sobre o quanto cada um conhece a si mesmo. Às vezes a pessoa talentosa, porém também dotada de excessiva humildade, pode jamais chegar ao ápice do desenvolvimento do próprio talento.

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  2. Parabéns Mário você foi mais uma vez muito feliz

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  3. Pois é, quem diria há muitas décadas atrás que o seu talento fosse escrever e tão.maravilhosamente bem ?
    Parabéns !!! Principalmente por ter permitido que esse dom aflorasse e que iria investir tanto nele.

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