Publicado no Jornal da Manhã em 15/10/2024.
Na sala de uma moradia há, de um lado, uma ampla janela de
vidro, fechada, que dá para um iluminado jardim, com apetitosas flores e
frutos. Do outro lado da sala, uma porta dá para o interior da casa, mais
escuro que o luminoso jardim. Duas moscas tentam chegar ao jardim. Malogradas,
batem-se repetidamente contra o para elas invisível vidro. Já estão extenuadas,
quase mortas. Uma delas repousa um instante de recuperação, e volta a bater-se
contra o vidro. Até tombar sem vida. A segunda, resolve usar outra forma de
percepção que não seja só a visão, que lhe mostra o ambicionado jardim, mas não
o vidro. Olha em volta, vê a porta, não tão atraente, mas uma possível saída.
Voa para ela, consegue chegar a outro aposento da casa, depois a outro, até
encontrar uma janela aberta, e assim sai para a liberdade do ar livre. Se
procurar, ainda vai poder encontrar o jardim. A outra mosca, jaz no vão da
janela.
Os seres humanos parecem comportar-se como estas moscas. A
janela de vidro intransponível, contra a qual nos batemos, ignorando-a ou
negando-a, é o cuidado que deveríamos ter para com a natureza, que nos provê a
vida, e a solidariedade para com o próximo, que nos provê a justiça e a paz. A
natureza já não consegue se recuperar no planeta finito que está superpovoado e
superexplorado. A teimosia em bater-se contra o vidro é a cobiça, a compulsão
de ter, de poder, de competir, de sobressair-se. O jardim luminoso que nos
seduz talvez seja o sonho de emancipação, de paz, de fraternidade. O caminho
alternativo – a menos fascinante e mais longa porta de saída para a
sobrevivência, a liberdade e o devir esperançoso – é o controle de nossas
pulsões, o discernimento, a sobriedade para com a natureza, a compreensão dos
inevitáveis limites, a amorosidade para com o próximo. Tarefa que nos parece
assaz penosa.
Se teimarmos fazer como a mosca que se debate impulsiva
contra o vidro, vamos acabar como ela. É bem provável que não só venhamos a
perecer, mas também causemos uma extinção em massa no planeta. Apesar do
colapso, a Terra há de se recuperar, como já fez outras vezes após cataclismos
naturais: novas espécies, mais evoluídas, povoarão o planeta após a infausta
experiência humana. Temos imitado esta mosca negligentemente suicida: na ânsia
de dominar, de enriquecer, de se sobressair. As crises que a humanidade
vivencia hoje – climática, hídrica, sanitária, política, social, educacional,
cultural, religiosa, de segurança, de guerras, de foragidos, de desinformação,
ética, moral – e a impotência para resolvê-las, escancaram o quanto estamos
agarrados ao papel da mosca suicida.
A humanidade há de ter um lado mais evoluído, algo que a
distinga da mosca que não é cega da visão, mas é cega de capacidade de reflexão
e de cooperação. As crises que vivenciamos hoje não resultam de um sistema
econômico cruel, de uma nação imperialista guerreira, de um arranjo político e
social falido. Todos estes desatinos é que são resultantes do lado ainda
primitivo da índole humana, da teimosia de continuar batendo-se contra o vidro
da janela, ao invés de refletir para encontrar uma saída viável. Infelizmente,
esta cegueira de bom senso é alimentada por um avançado sistema de manipulação
da opinião, que tange multidões, dissemina mentiras e semeia desesperança, reduzindo
o gênio humano ao mesmo comportamento da mosca suicida.
Vê-se logo que a estória das duas moscas é muito simplista.
Há também aquelas que têm empatia com a congênere que se debate cega, e mostra
a ela o caminho da saída. Há aquelas que, chegando ao cobiçado jardim, vão
tentar tirar egoístico proveito dele. Talvez até construam anteparos de vidro
para isso.
Mas, com certeza, o ser humano é mais que a mosca cega de
discernimento. Só é preciso lembrá-lo disso.
Moscas... Parece uma boa comparação, pela atitude narrada, porém as pobres não merecem essa comparação, pois, sendo desprovidas de discernimento, são isentas de culpa, ao passo que o homem...
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