sábado, 2 de novembro de 2024

O chupim do nosso jardim

 

Nosso jardim da casa na Vila Placidina, em Ponta Grossa, embora pequeno, é um santuário de pássaros. Uma pitangueira, uma caramboleira, uma aceroleira, um pote com água fresca, duas garrafinhas com água adocicada, um prato com alpiste e painço, um comedouro com mamão e bananas, quirera esparramada no chão, os insetos e vermes da terra, vasculhada pelas aves, dão conta de fazer aquele reduzido espaço, perto do centro da cidade, sempre muito cheio de vida. São sanhaços, sanhaços-papa-laranja, sabiás-laranjeira, sabiás-do-campo, sabiás-poca, bem-te-vis, cambacicas, saís-azuis, colibris, avoantes, canários-da-terra, rolinhas, chupins, joões-de-barro, corruíras. Mais raramente guaxos, tiés-sangue, saíras-preciosas e, estranhamente, pardais e tico-ticos; estes dois últimos antes eram comuns, mas passaram a quase não mais serem vistos. Nestes últimos dias, para nossa surpresa, apareceram pela primeira vez um jacuguaçu e uma saracura-do-mato. Pareceu-nos que a natureza anda mesmo desorientada.

É um rico divertimento ficar observando os pássaros, aprendendo seus hábitos e comportamentos. Constata-se que há os que são pacíficos, há os briguentos, há os tímidos. Todos têm preferências alimentares bem definidas. No comedouro de frutas, uma rígida hierarquia: os sabiás-do-campo têm prioridade, e costumam comer em família, até quatro indivíduos; depois vêm, na ordem, os sabiás-laranjeira, os sanhaços e, no final, o tranquilo bem-te-vi, que costuma tolerar os sanhaços enquanto bica as bananas. Sabiás-laranjeira e bem-te-vis sempre vêm sozinhos – salvo quando vem junto um filhote –. Os sanhaços aparecem em até sete indivíduos ao mesmo tempo, quando ruidosas balbúrdias chegam a jogar no chão as frutas do prato. As avoantes e os chupins chegam aos bandos para ciscar a quirera no chão, os canários-da-terra vêm quase sempre aos casais, no prato de alpiste e painço, e também na quirera.

Não sei por qual razão destes tempos desarrazoados, os antes predominantes pardais e tico-ticos têm desaparecido. Uma pardaloca às vezes vem bicar as frutas do comedouro, junto com os sanhaços. Mas o que nos chamou a atenção no início deste ano foi uma extremosa mãe tico-tico, alimentando um filhote de chupim já bem maior que ela. Aparentemente embaraçada em sua transvertida tarefa, ela ora conduzia o filhotão às frutas, ora à quirera no chão, ora ao prato com alpiste e painço. E ele, chiando de protesto, seguia-a obsessivo, abrindo um bico enorme, onde cabia toda a cabeça da mãe adotiva. Uma visão bizarra, às vezes até revoltante. A natureza não se cansa de nos surpreender com suas traquinagens.

Talvez por ser a preferência alimentar dos tico-ticos, era mais comum ver mãe e filhotão no prato de alpiste e painço. Mas, justamente para evitar que os pássaros maiores, tais como as avoantes, rolinhas e os chupins, acabassem com os grãos destinados prioritariamente aos pequenos canários-da-terra, protegi o prato com uma tela de arame com duas aberturas pequenas, que só deixam passar os pássaros menores: não só os canários, mas também os pardais e os tico-ticos. Um graveto fora da tela, junto às aberturas, serve de poleiro para os pássaros. Então, a mãe tico-tico entrava pela abertura, enquanto o filhotão aguardava chiando, protestando, abaixado, tremulando as asas, bico aberto, empoleirado no graveto. A mãe pacientemente entrava e saía pela abertura, levava os grãos do prato para o bico do birrento chupim.

Passados meses, os chupins continuam frequentando a quirera esparramada no chão. No início, só um chupim adulto – que creio ser uma fêmea, por não exibir o brilho azulado típico dos machos – frequenta o prato com alpiste e painço. Ela vem sozinha, pousa no poleiro fora do prato, não consegue passar pela abertura pequena, então enfia a cabeça e alcança alguns grãos mais próximos. De quando em quando, saltita no poleiro, como a sacudir o prato para fazer que mais grãos cheguem ao alcance do seu bico. Engenhosa, parece ter aprendido o método com uma extremosa mãe granívora.

Deduzimos que é o filhotão – então seria filhotona – que víamos meses atrás, agora já um chupim adulto. Resolvemos dar-lhe o nome de Macuna, sincopado de Macunaíma. Apesar da implicância pelo fato de a considerarmos fruto de um cruel parasitismo, ela acabou conquistando nossa simpatia; pela criatividade, pela confiança e assiduidade com que frequenta o prato de grãos e nos diverte com seu engenho.

Mas eis que ela continua nos surpreendendo. Agora, tem vindo acompanhada de um chupim com o característico brilho azulado dos machos. Ela está compartilhando seu aprendizado com um companheiro recente. E dentro em pouco, possivelmente veremos de novo uma extremosa mãe tico-tico visitando o prato de grãos com um filhotão chupim. Nos perguntaremos então se ele será um filho-neto adotivo, fruto das artimanhas da natureza.

14 comentários:

  1. Gostei do texto leve , o observador sempre se enriquece.

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  2. Tenho um pequeno espaço, onde desfruto das traquinagens dos pássaros. Gostaria que as pessoas tivessem tempo para observar a riqueza da natureza. Parabéns pelo texto.

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  3. CLÊNIO DA SILVA OLIVEIRA3 de novembro de 2024 às 10:26

    Aqui em casa temos três gatos, ficaria difícil fazer um viveiro aberto de pássaros, mas admiro muito a ideia, parabéns pela atitude

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  4. Bom caro amigo Mário, que maravilhosa página. Muito dados preciosos sobre os bichinhos. Realmente é uma ação especial observar e relatar os lindos animais em teu jardim. Também tenho este costume por aqui e sempre adotei o comedouro separado pros canários. Gratidão pela riqueza de informação sobre espécies que surgem em minha janela e não sabia os nomes. Abraço fraterno

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  5. Ótimo texto. A natureza sempre nos mostrando novas possibilidades de convivência.

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  6. Querido Mário Sérgio … Parabéns 👏… você está como os vinhos … melhorando com a idade … 🤷‍♀️🤪🎩

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    1. Opa, o envelhecimento pode fazer os vinho melhor ou azedá-lo. Oxalá nos melhoremos com o tempo.

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  7. Beleza de texto! Aqui no nosso manacá da serra tem um ninho bem cosmopolita onde vários pássaros diferentes convivem, porém não em boa harmonia. À tardinha, após o mavioso canto dos sabiás, inicia-se a disputa pelo melhor lugar e a correria é geral. Tem aparecido tico-ticos e pardais há muito desaparecidos dos quintais.

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  8. Que legal este texto! Parabéns! Vou compartilhar com o Silvestre, ele vai gostar. Não é à toa que se chama Silvestre.

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  9. Que lindo! Vou te imitar nas comidinhas

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  10. Reitero o pedido aos leitores que desejarem comentar os textos, que se identifiquem. Caso não seja possível preencher o campo destinado à identificação, basta colocar o nome ao final do texto do comentário. Agradeço.

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  11. Meu comentário é o que está logo acima do da Rosicler. Sueli Fernandes.

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  12. Caro Mário, parabéns pelos seus excelentes textos! Identifiquei-me em especial com este, pois cultivo também um espaço em casa para os pássaros. Todos os dias temos sabiás, curruíras, rolinhas, canários e umas três espécies de sanhaço. Já estiveram aqui guaxos e pica-paus. As tirivas vêm quando há frutos nas palmeiras. Inspirado no seu comedouro para canários, consegui resolver um problema. Com um prato de cerâmica para vasos na base, um prato de plástico usado como teto e a tela ao redor, agora as rolinhas não "passam o rodo" nas sementes para canários. Para estas, deixo migalhas de pão. Aliás, aqui vejo muitos pardais, que vêm pelo pão, principalmente. Há alguns anos ficamos semanas observando um casal de curruíras que fizeram ninho numa casinha para pássaros. Quando finalmente o filhote deu as caras, era um chupim...

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