sexta-feira, 23 de maio de 2025

Anistia e meio ambiente

 Publicado no Jornal da Manhã em 24/05/2025

Nos últimos dias, dois temas têm frequentado o noticiário: a anistia aos golpistas de 8 de janeiro e a flexibilização das leis ambientais. Dois assuntos que parecem não ter muita ligação entre si, mas que, na verdade estão muito relacionados. E têm a ver com o dilema civilizacional que vivemos hoje, que deverá decidir o futuro da humanidade.

É correto falar em golpistas de 8 de janeiro? Na verdade, os vândalos de 8 de janeiro foram uma armação dos verdadeiros golpistas, estes infiltrados nas repartições, nos quartéis, nos tribunais, no agronegócio, no empresariado. Estes verdadeiros golpistas são uma parcela da população que alcançou poder político, econômico, militar, forense, mas nunca aceitou as regras da convivência democrática. Felizmente, não é toda a população que apresenta esse distúrbio de personalidade. A maioria ainda acredita que é possível que regras construídas por todos, e que valham para todos, são as que podem conduzir à convivência pacífica e próspera.

Os verdadeiros golpistas, que materializam no Brasil o surto de neofascismo que acomete o mundo, financiaram e manipularam os vândalos de 8 de janeiro, numa tentativa de deflagrar uma revolta popular. Mas, entre os vândalos, estavam só pessoas iludidas pelos golpistas? Certo que não! A maioria talvez estivesse lá ludibriada, mas uma boa parte estava lá porque identifica-se com os golpistas que não toleram a democracia.

E o meio ambiente? O Congresso Nacional discute projeto de lei flexibilizando o licenciamento ambiental. Alega-se que é para diminuir a burocracia, mas na verdade a lei discutida desobrigaria o cumprimento de muitas das leis ambientais vigentes. Essas leis têm, afinal, alguma serventia? Claro que têm! No mundo, o “Dia da Sobrecarga da Terra” para 2025 deverá ser o dia 1º de agosto: o dia em que a humanidade esgotará os recursos naturais disponíveis para todo este ano. Entraremos no vermelho da conta ambiental no início de agosto.

O Brasil, tido como um país com matriz energética limpa – graças às hidrelétricas e ao etanol –, é o quinto maior emissor de gases estufa. Motivo: o desmatamento, principalmente na Amazônia e nas áreas de cerrado. E a análise das águas dos reservatórios de abastecimento público revelou onipresença de substâncias tóxicas de esgotos e da agropecuária. Somos o país com maior quantidade de água doce do mundo, mas estamos aceleradamente envenenando-a.

Os representantes que elegemos, nesta nossa “democracia representativa”, parecem dispostos a conceder anistia aos golpistas, e a flexibilizar as leis ambientais. São dois casos muito ligados: ambos têm a ver com o ambiente social e natural que estamos construindo para um futuro bem próximo. Eles escolherão um futuro de respeito à democracia e à natureza em benefício de toda a população? Ou darão preferência aos interesses de quem despreza a democracia, explora o trabalhador e a natureza?

Não podemos esquecer: os parlamentares que lá estão decidindo sobre estes temas foram eleitos pela população. Eles estão representando a população? Foram eleitos para isso? E a população, está elegendo certo seus representantes? Ou está sendo ludibriada também no momento do voto, tão essencial no sistema atual?

A população precisa aprender: a compreender, a discernir, a escolher pelo bem do coletivo, e não para o privilégio de poucos. Enquanto não aprender, vai continuar sendo tangida como o gado.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Francisco, Mujica e a sociedade ensandecida

 Publicado no Jornal da Manhã em 16/05/2025.

O Papa Francisco e Pepe Mujica nos deixaram. Comove ver como são incensados na mídia, nas redes sociais, nas rodas de conversas – estas cada vez mais raras. Muita gente parece celebrar as qualidades destes homens notáveis que nos deixam, mas nos presenteiam com um legado de amorosidade, bom humor, lucidez, solidariedade, cuidado com a Mãe Terra, os povos originários, o trabalhador simples, as minorias, os refugiados da insensatez humana, as mulheres que lutam e começam a transformar o perverso mundo patriarcal.

Francisco e Mujica foram homens de paz, de simplicidade. Quantas irmãs podemos encontrar para estas duas já abençoadas irmãs: liberdade, justiça, bondade, fraternidade, a amorosidade que se estende a todos e a tudo o que a natureza nos oferece, que transforma nosso planeta na Mãe Terra que nos acolhe e nos nutre, mas que teimamos afrontar e magoar.

Mas, se tanto escutamos incensar e louvar as qualidades de Francisco e Mujica, é porque uma imensa maioria silencia. Esse silêncio encoberta, talvez, rancor, culpa, desdém? Os dois homens notáveis que agora são incensados foram chamados de comunistas, de esquerdistas – pejorativamente, por quem ignora o verdadeiro sentido destas palavras – e até considerados inimigos da sociedade. Qual sociedade? Francisco dizia que preferia tomar suas refeições no restaurante dos funcionários do Vaticano, assim evitava ser envenenado. Mujica foi perseguido e preso por mais de uma década. Que sociedade persegue e condena estes homens, e depois celebra-os quando nos deixam? Celebramos seu legado, ou sua partida?

Triste, temos de concluir que a sociedade está doente. Um diagnóstico que o paciente se recusa a reconhecer, algo comum nos distúrbios mentais e emocionais. Nossa doença é mental, emocional, e também ética e espiritual. Não apresentamos só sintomas de insanidade – ao acumularmos arsenais capazes de destruir o mundo várias vezes –, de desvario – ao escolhermos e seguirmos líderes e ícones psicopatas, megalomaníacos e malignos –, de enfermidade espiritual – ao adorarmos o deus dinheiro e o hiperconsumismo, ao professarmos fé cega e segregacionista, inculcada por falsos profetas, ao abraçarmos a deturpação dos princípios religiosos legítimos.

Francisco foi um apóstolo da fé no homem celestial e na amorosidade. Mujica foi um apóstolo do homem amante da liberdade, da justiça, do despojamento, da simplicidade. Ambos foram apóstolos do respeito ao próximo e à natureza. E por assim serem, se por um lado são agora incensados midiaticamente, na verdade continuam vetados nas engrenagens ocultas que movem o sistema ensandecido que vivemos. Um sistema cruel, que manipula e explora o ser humano e a natureza, mas que acaba por ser interiorizado por todos nós, que o realimentamos com nossos medos e preconceitos.

Uma realidade enlouquecida. Talvez por esse motivo, junto com os louvores midiáticos a Francisco e Mujica, estejamos fazendo também uma penitência, um mea-culpa. Um resquício de esperança de que herdemos suas qualidades, e nos tornemos capazes de contribuir para mudar o destino ensandecido da sociedade atual.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O poder corrompe?

 

A todo momento recebemos confirmação desse aforismo. Desde o poder – ainda que irrisório – do porteiro ou do síndico do prédio, até o poder do presidente do império global, o mando corrompe e até enlouquece. Mas vamos refletir um pouco sobre isso: será mesmo o poder o vilão dessa história?

Parece mais que o poder, seja ele de que natureza for – hierárquico, político, econômico, pela força bruta, pelo saber –, faculta ao poderoso dominar e explorar seus oponentes sem o risco de retaliação ou punição. O poder coloca quem o detém acima das leis, da ética e da moral. A maioria tende a se beneficiar desse privilégio da impunidade, usa-o perpetrando injustiças e crimes. Felizmente nem todos são assim, há aqueles que empregam o poder para o bem coletivo.

Mas não é o poder o criador do ditador que aflora quando as normas e princípios são burlados. O ditador corrupto não é criado pelo poder; ele já existia, só é liberado pelo poder. Tem-se afirmado que temos dentro de nós o anjo e o demônio, o cordeiro e o lobo. Sem o contrato social que o contém, o lobo fica à vontade para devorar todas as presas ao alcance, e transgredir todas as regras que o impeçam de extravasar suas selvagens ânsias.

Tudo tem mostrado que temos dentro de nós o lobo e o cordeiro. Nenhum dos dois parece ser o ideal. Há que domar a ferocidade bestial do lobo, e há que despertar o cordeiro para que supere sua mansuetude e submissão. O melhor seria juntar o pacifismo do cordeiro com a assertividade do lobo. Oxalá o ser humano fosse ao mesmo tempo ferozmente engajado e angelicamente justo.

Mas não é assim, infelizmente. O vácuo de regras firmes corrompe e desatina a maioria. Por que é assim? O que podemos fazer para nos tornarmos seres mais lúcidos, equitativos e solidários, imbuídos do propósito da prosperidade coletiva?

Talvez o principal motivo de sermos corruptíveis é que, embora racionais, somos animais; e como tal ainda preservamos na nossa natureza os primitivos instintos de sobrevivência e competição do lobo. Ademais, a qualidade de zelo e proteção, característica dos mamíferos, parece que ainda não foi devidamente compreendida e cultivada entre nós. Veja-se por exemplo as religiões: no início imbuídas da intenção de compreender, aceitar e acolher, tornaram-se instrumentos de dominação, de comércio de promessas e indulgências, de extravasamento de impulsos de intolerância, ódio e crueldade.

Cultivar e fortalecer o anjo existente dentro de nós não é tarefa fácil. Mas é essencial! Uma educação humanista e não dinheirista, um sistema econômico inclusivo e justo, um sistema governamental guiado pela justiça social, uma religião que recuperasse os princípios de compreensão e amorosidade, seriam passos no rumo de resgatar a humanidade no ser humano.

Mas não é o que temos visto no mundo. O lobo é voraz. Não quer deixar o cordeiro crescer. Prefere logo devorá-lo, mesmo que ele ainda seja só um sonho.