domingo, 29 de junho de 2025

Aterro Botuquara, o câncer de Ponta Grossa

 Publicado no Jornal da Manhã em 01/07/2025.

Os jornais de Ponta Grossa têm noticiado o imbróglio que envolve o encerramento do Aterro Botuquara, que recebeu o lixo da cidade por mais de meio século, e foi desativado em 2019. Quando o Botuquara foi instalado, no final dos anos 1960, as normas ambientais e os atributos naturais da região eram desconhecidos. Hoje se sabe, o local do aterro não poderia ter sido pior, do ponto de vista ambiental.

O Botuquara – agora uma montanha de lixo, um incômodo passivo ambiental – situa-se sobre os arenitos da Formação Furnas, um generoso aquífero, cada vez mais utilizado por indústrias, postos de serviços, hospitais, supermercados, granjas e outros empreendimentos de Ponta Grossa e região. O Aquífero Furnas tem potencial para amenizar as crises hídricas previstas para os tempos de emergência climática que adentramos. As normas atuais preconizam que as áreas de recarga dos aquíferos não sejam utilizadas para os aterros, pelo risco de contaminação dos mananciais subterrâneos. Por esse motivo, recentemente foi impedida a localização de novo aterro da empresa Ponta Grossa Ambiental, na região do Rio Verde, ela também situada sobre a área de recarga do aquífero.

Muito se discute a destinação da área do desativado Aterro Botuquara. Fala-se de plano de recuperação de área degradada, de termo de ajuste de conduta, em área de lazer, em um sistema de energia solar, em produção de bioenergia, em Ministério Público, em Secretaria Municipal de Meio Ambiente, em poluição das águas superficiais e subterrâneas pelo chorume do antigo aterro. Um imbróglio, aparentemente sem solução, ou com prováveis soluções para daqui décadas.

O Aterro Botuquara é como um câncer já diagnosticado, mas para o qual se rejeita tratamento. Ele pode tornar-se incurável e alastrar-se, se as águas do Aquífero Furnas forem contaminadas. Os aquíferos são fonte abundante de água de boa qualidade, e têm outras vantagens: dispensam tratamento e redes de distribuição, não dependem das desastrosas variações das chuvas, previstas para se acirrarem com as mudanças do clima que estamos provocando. Mas têm uma vulnerabilidade: não podem ser poluídos. Se o forem, sua recuperação é inviável. Por todos esses motivos, crescem em todo o mundo os cuidados para a proteção dos aquíferos.

Além de negligenciar o câncer diagnosticado, o poder público parece também querer impedir que se façam novos exames, para compreender o alcance das possíveis metástases: não é feito adequado monitoramento das lagoas de chorume, não são realizadas nem divulgadas análises da qualidade da água nos arroios próximos, nem de poços de monitoramento das águas subterrâneas.

Dadas as características locais, a melhor solução para o câncer Aterro Botuquara parece ser mesmo extirpá-lo. Transferir a montanha de lixo para um local sobre solos e rochas naturalmente impermeáveis, sem risco de contaminação de mananciais subterrâneos nem superficiais.

No município de Ponta Grossa há muitas áreas assim, onde afloram no terreno rochas argilosas impermeáveis da Formação Ponta Grossa.

sábado, 14 de junho de 2025

Analfabetismo funcional e cancelamento

 Publicado no Jornal da Manhã em 27/06/2025.

Surpreendi-me com a notícia divulgada em maio passado: 29% dos adultos no Brasil são analfabetos funcionais; 36% estão no nível elementar, são capazes de compreender textos simples e de tamanho médio; só 35% são considerados alfabetizados plenos. O estudo foi realizado por uma parceria de instituições, incluindo Unesco e Unicef. É sério e isento, e não uma peça de desinformação. Esses resultados são alarmantes. A realidade atual, com a comunicação digital, a inteligência artificial, a manipulação do comportamento usando a neurociência e recursos milionários, é muito complexa. Só a plena alfabetização tem chance de lançar alguma luz sobre tal complexa realidade. E não estamos preparados para tanto. Talvez esses dados expliquem por que se elegem tantos parlamentares vendilhões da pátria, entreguistas e a serviço de lobbies fisiológicos, e não estadistas de verdade.

Nestes tempos que vivemos, discernir é vital. A desinformação e o logro foram potencializados com o advento do mundo digital, das redes sociais e dos algoritmos da inteligência artificial. Eles, mais que libertar e emancipar o gênio humano, empenham-se em condicionar-nos para objetivos escusos: comprar, temer, alienar, imitar, mentir, fraudar, segregar, odiar... Os muitos apelos que nos chegam são perturbadores: se não soubermos triá-los, endoidamos. Ou, confusos, não conseguimos entender: consuma-se o analfabeto funcional.

Talvez o principal objetivo da manipulação da informação seja mesmo preservar a tirânica injustiça social, que divide em classes: a produção de riquezas pela força de trabalho seria suficiente para toda a população mundial ter vida digna e saudável. Entretanto, a maior parcela da humanidade vive em luta constante contra a fome, a pobreza e a humilhação, enquanto uns poucos locupletam-se, acumulam fortunas impensáveis.

Qual a relação entre analfabetismo funcional, cultura, cancelamento, injustiça social e colonialismo? Cultura vem com a alfabetização, vem com uma educação – formal ou informal – que seja inclusiva, crítica, que ensine a pensar e a criar, e não só a repetir, conformar e conservar. Sem ela, estaríamos ainda nas cavernas. Cultura é o cultivo do discernimento, da compreensão, da sensibilidade, da tolerância, da solidariedade. Sem diálogo lúcido e respeitoso, não há cultura. O cancelamento é a negação da cultura. A injustiça social, filha do narcisismo que quer destruir o diferente, é irmã do analfabetismo. Se a humanidade não for capaz de, com a cultura, superar a ignorância, está condenada à extinção. O colonialismo é só um resultado de todo desatino humano: países subjugando países, povos explorando povos, ricos explorando pobres, exércitos de pobres guerreando pelos ricos, alfabetizados iludindo analfabetos.

Escrevo regulamente crônicas, artigos e ensaios críticos. Textos que procuro fazer um apelo mais à razão que à emoção e aos preconceitos. Claro, sou humano. Apesar de tentar, não quer dizer que consiga dominar meus próprios arroubos emocionais e preconceituosos. Ademais, há muito compreendi o sentido do aforismo “A mentira desgasta relacionamentos; a verdade não, a verdade devasta!”. Procurar enxergar e dizer a verdade rompe relacionamentos. Afasta, inimiza, e, atualmente, cancela. Preferiria ser mais afeito a escrever textos que tocassem só os sentimentos. Eles não polemizam, parecem mais capazes de revelar e transformar que os pensamentos. Entretanto, o espontâneo e sincero impulso de refletir é parte da minha identidade. Negá-lo seria traí-la.

Recentemente, fui cancelado num grupo que se diz de cultura em Ponta Grossa. Motivo: postei um trecho do discurso do Presidente Lula agradecendo a homenagem da Academia Francesa. Ele lembrava os acadêmicos que só tem o primário e um curso técnico, mas tornou-se sindicalista, criou um partido e é presidente. O reconhecimento da Academia Francesa significa que é um ser humano singular, merecedor da rara homenagem. O discurso de Lula sugeria que a principal qualidade humana, a solidariedade, não depende da erudição: depende da escola da vida, e decerto também da índole de cada um.

A postagem do vídeo motivou minha exclusão do grupo de cultura. Ele não admite conteúdo político. Sinto que esta ideia de cultura também pode conduzir-nos à extinção.

terça-feira, 10 de junho de 2025

A arapuca estadunidense: uma Lava Jato mundial

 Publicado no Jornal da Manhã em 10/06/2025.

Esse é o título de livro de dois franceses (F. Pierucci e M. Aron, Kotter Editorial, 2019) que conta como uma lei dos EUA é usada para favorecer interesses desse país no mundo todo. Em 2018 essa lei, aplicada com distorções e ilegalidades, serviu para a General Electric estadunidense engolir a francesa Alstom, concorrente mundial na área de usinas nucleares. O título do livro não poderia ser mais acertado: trata-se de uma arapuca destinada a eliminar qualquer concorrente dos interesses dos EUA no mundo.

No Brasil, a operação Lava Jato começou em 2014, quando o País e suas empresas (Petrobrás, Odebrecht, Embraer, JBS e outras) prosperavam a ponto de provocar a punição dos EUA, país que não tolera concorrentes: elimina-os. Não eram só as empresas brasileiras, era o Brasil se tornando uma próspera potência. Os dirigentes da Lava Jato foram treinados pelos serviços de inteligência dos EUA. Depois das denúncias da Vaza Jato – que em 2019 revelou as falcatruas da operação e anulou-a – Sérgio Moro, seu principal agente, tornou-se sócio da empresa Alvarez & Marsal nos EUA, dedicada a explorar os despojos das empresas brasileiras. A Lava Jato não foi operação destinada a combater a corrupção, como se propagandeava. Foi destinada a sangrar empresas brasileiras e a perpetrar os golpes políticos que seguiram, e frearam a caminhada do Brasil rumo à plena democracia e à soberania.

Agora (2025), o governo Trump dos EUA ameaça a aplicação das leis extraterritoriais – valem no mundo todo – para além da economia. Ele quer penalizar autoridades de países – sobretudo na América Latina – que “trabalhem para restringir os direitos de cidadãos estadunidenses”. No caso, as autoridades são ministros do STF – Alexandre de Moraes e outros –, e os direitos dos cidadãos estadunidenses são postagens nas plataformas digitais e redes sociais do Tio Sam que disseminam ilegalidades, como a desinformação, discursos de ódio e de ataque às instituições e à democracia. Ou seja, Tio Sam já não tem mais vergonha de escancarar seu empenho em submeter os países que ousam tentar ser soberanos. Quer subjugá-los como eternas colônias. As ilegalidades que a regulamentação da internet tenta banir são uma ameaça para a estabilidade política e econômica do Brasil. E representam uma poderosa arma da guerra cognitiva que faz os brasileiros elegerem, numa aparente democracia, lobos travestidos de cordeiros para cuidar do rebanho.

A guerra cognitiva usa armas que idiotizam o ser humano. Ela emprega tecnologias avançadas, entre elas a comunicação digital, embasada na neurociência e na manipulação do comportamento humano. O condicionamento para comportamentos insólitos, tal como acreditar que fisiologismo, clientelismo, oportunismo e entreguismo sejam predicados de um bom homem público, é perpetrado pela guerra cognitiva. E ela é tanto mais eficaz quanto mais frágil for a capacidade de refletir, discernir e engajar-se da população.

Precarização da educação, analfabetismo funcional, guerra cognitiva, desregulamentação da internet, sabotagem à soberania e prosperidade do Brasil são temas intimamente ligados.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Encruzilhada humana

 Publicado no Jornal da Manhã em 03/06/2025.

Estamos vivendo o momento em que a humanidade encontra-se diante de uma encruzilhada crucial: mais de oito bilhões de almas que somos hoje, aprenderemos a conviver com os limites da Mãe Terra e da psicologia humana?

Os sinais de que já ultrapassamos os limites da Mãe Terra são muitos: o aquecimento global, a degradação da camada de ozônio, a poluição das águas, o esgotamento dos solos cultiváveis, a contaminação dos alimentos com agrotóxicos, as condições pandêmicas que criamos, as ilhas flutuantes de descartes plásticos nos oceanos, a degradação das florestas, a extinção recorde de espécies, são só alguns sintomas. As resistências às tentativas de acordos para diminuir estes sintomas revelam que ainda não estamos convencidos que estamos destruindo as condições que suportam a vida humana no planeta. Não são só os países e governos que dão prioridade para a economia e para o poder; muitos indivíduos ainda desdenham quando são alertados que é preciso aprender a cuidar da casa comum, a Terra. Ela é mais vital que o dinheiro e o prestígio, mas a cupidez e a incúria têm mais força.

E os limites da psicologia humana? Nunca antes na história do planeta o atributo que nos distingue das demais espécies – a inventividade – assumiu tamanha importância no equilíbrio – ou desequilíbrio – ambiental e social. Além de sermos hoje mais de oito bilhões – o que por si já causa um impacto incalculável –, criamos tecnologias que permitem que salvemos, ou destruamos, o mundo todo. Gastam-se mais recursos para construir armas – capazes de destruir todo o planeta várias vezes – do que para acabar com a fome, as doenças, a miséria, a ignorância. Somos capazes de enviar o homem à Lua e sondas mapeiam Marte e Júpiter, mas não somos capazes de solucionar conflitos enlouquecidos, que conduzem a segregações, perseguições, guerras e genocídios.

Duas criações mais recentes do engenho humano constituem desafio sem precedentes para testar nosso equilíbrio psicológico: a comunicação digital e a inteligência artificial. A comunicação digital – que possibilita o contato global em tempo real – está se mostrando mais útil para a desinformação e o logro do que para a disseminação do conhecimento e da informação verdadeira. Ela tem sido a principal artimanha usada para manipular o ser humano e convencê-lo a consumir, sejam bens supérfluos, convicções, crenças, preconceitos, ideologias, ódios... Também mostramos não saber lidar com a inteligência artificial. Assim como a comunicação digital, se não soubermos usá-la ela poderá, ao invés de auxiliar-nos, idiotizar-nos, escravizar-nos ou comprometer a criatividade, a originalidade e a identidade humanas. Somos seres passíveis de serem condicionados – assim como os cães de Pavlov –, corremos o risco de termos nossas escolhas dirigidas pela desinformação e pela artificialidade.

Comunicação digital e inteligência artificial não são males sem remédio. Pelo contrário, podem ser bênçãos incomparáveis. Mas, assim como já temos feito com a agricultura, os combustíveis fósseis, a energia nuclear, benesses podem tornar-se fatais. Ter consciência do limite de uso dessas benesses é o desafio maior. Todo remédio é também um veneno, pode ser letal se descuidamos da dose.

Um outro aspecto essencial da natureza humana é a religião. Ela, como religação com o divino, que reconforta e inspira, é fundamental. Mas as igrejas estão deturpando a religião em doutrinas supremacistas, de prosperidade e dominação. É o Deus celestial sendo substituído pelo deus dinheiro e seu vassalo, o mercado. A religião autêntica, formadora de princípios éticos e solidários, também precisa ser recuperada.

O desafio maior da humanidade é conhecer os limites: do próprio ser humano, da natureza. A euforia, a soberba, a ambição, podem ser devastadoras para a espécie humana. É o momento de encará-las, e superá-las.