sábado, 14 de junho de 2025

Analfabetismo funcional e cancelamento

 Publicado no Jornal da Manhã em 27/06/2025.

Surpreendi-me com a notícia divulgada em maio passado: 29% dos adultos no Brasil são analfabetos funcionais; 36% estão no nível elementar, são capazes de compreender textos simples e de tamanho médio; só 35% são considerados alfabetizados plenos. O estudo foi realizado por uma parceria de instituições, incluindo Unesco e Unicef. É sério e isento, e não uma peça de desinformação. Esses resultados são alarmantes. A realidade atual, com a comunicação digital, a inteligência artificial, a manipulação do comportamento usando a neurociência e recursos milionários, é muito complexa. Só a plena alfabetização tem chance de lançar alguma luz sobre tal complexa realidade. E não estamos preparados para tanto. Talvez esses dados expliquem por que se elegem tantos parlamentares vendilhões da pátria, entreguistas e a serviço de lobbies fisiológicos, e não estadistas de verdade.

Nestes tempos que vivemos, discernir é vital. A desinformação e o logro foram potencializados com o advento do mundo digital, das redes sociais e dos algoritmos da inteligência artificial. Eles, mais que libertar e emancipar o gênio humano, empenham-se em condicionar-nos para objetivos escusos: comprar, temer, alienar, imitar, mentir, fraudar, segregar, odiar... Os muitos apelos que nos chegam são perturbadores: se não soubermos triá-los, endoidamos. Ou, confusos, não conseguimos entender: consuma-se o analfabeto funcional.

Talvez o principal objetivo da manipulação da informação seja mesmo preservar a tirânica injustiça social, que divide em classes: a produção de riquezas pela força de trabalho seria suficiente para toda a população mundial ter vida digna e saudável. Entretanto, a maior parcela da humanidade vive em luta constante contra a fome, a pobreza e a humilhação, enquanto uns poucos locupletam-se, acumulam fortunas impensáveis.

Qual a relação entre analfabetismo funcional, cultura, cancelamento, injustiça social e colonialismo? Cultura vem com a alfabetização, vem com uma educação – formal ou informal – que seja inclusiva, crítica, que ensine a pensar e a criar, e não só a repetir, conformar e conservar. Sem ela, estaríamos ainda nas cavernas. Cultura é o cultivo do discernimento, da compreensão, da sensibilidade, da tolerância, da solidariedade. Sem diálogo lúcido e respeitoso, não há cultura. O cancelamento é a negação da cultura. A injustiça social, filha do narcisismo que quer destruir o diferente, é irmã do analfabetismo. Se a humanidade não for capaz de, com a cultura, superar a ignorância, está condenada à extinção. O colonialismo é só um resultado de todo desatino humano: países subjugando países, povos explorando povos, ricos explorando pobres, exércitos de pobres guerreando pelos ricos, alfabetizados iludindo analfabetos.

Escrevo regulamente crônicas, artigos e ensaios críticos. Textos que procuro fazer um apelo mais à razão que à emoção e aos preconceitos. Claro, sou humano. Apesar de tentar, não quer dizer que consiga dominar meus próprios arroubos emocionais e preconceituosos. Ademais, há muito compreendi o sentido do aforismo “A mentira desgasta relacionamentos; a verdade não, a verdade devasta!”. Procurar enxergar e dizer a verdade rompe relacionamentos. Afasta, inimiza, e, atualmente, cancela. Preferiria ser mais afeito a escrever textos que tocassem só os sentimentos. Eles não polemizam, parecem mais capazes de revelar e transformar que os pensamentos. Entretanto, o espontâneo e sincero impulso de refletir é parte da minha identidade. Negá-lo seria traí-la.

Recentemente, fui cancelado num grupo que se diz de cultura em Ponta Grossa. Motivo: postei um trecho do discurso do Presidente Lula agradecendo a homenagem da Academia Francesa. Ele lembrava os acadêmicos que só tem o primário e um curso técnico, mas tornou-se sindicalista, criou um partido e é presidente. O reconhecimento da Academia Francesa significa que é um ser humano singular, merecedor da rara homenagem. O discurso de Lula sugeria que a principal qualidade humana, a solidariedade, não depende da erudição: depende da escola da vida, e decerto também da índole de cada um.

A postagem do vídeo motivou minha exclusão do grupo de cultura. Ele não admite conteúdo político. Sinto que esta ideia de cultura também pode conduzir-nos à extinção.

3 comentários:

  1. Eu já tinha acessado aos dados a que o professor se refere. Me dá uma tristeza muito grande ver o que está acontecendo com a cultura e a educação em nosso país. As redes sociais estimulam discurso de ódio, sem precedentes.

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  2. Humanidade caminha para facistização plena!

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