domingo, 17 de agosto de 2025

Lei Magnitsky, o tiro no pé do imperialismo

 

Há ainda brasileiros que acreditam que a Lei Magnitsky dos EUA seja a favor da democracia e liberdade no mundo. Abra os olhos, patriota! Vamos usar discernimento e bom senso. Essa lei é outra legislação extraterritorial do império estadunidense, que visa submeter outros países a seus interesses. Leis que são usadas fora dos EUA, contra qualquer um, cidadão ou nação. O livro “A arapuca estadunidense: uma Lava Jato mundial” (F. Pierucci e M. Aron, Kotter Editorial, 2019) conta como uma dessas leis foi usada para que a General Electric engolisse a francesa Alstom, concorrente mundial na área de construção de usinas nucleares. Com suas leis desleais, os EUA distorcem, manipulam, ameaçam, chantageiam, espionam, torturam para favorecer seus interesses, econômicos ou geopolíticos, pelo mundo todo.

Não nos enganemos, os EUA não são a nação guardiã da democracia e da liberdade no mundo, que se arrogam ser. O “destino manifesto” faz os estadunidenses acreditarem que são predestinados a dominar o mundo, e azar daqueles que discordarem. As bombas de Hiroshima e Nagasaki – maior ato terrorista e genocida da História –, a imposição do dólar como moeda mundial, os golpes, as guerras, sanções e bloqueios impostos contra todos os governos insubmissos ao domínio do Tio Sam, o desvario atual de Trump, taxando inclusive países tidos como alinhados, mostram quem é a águia do Norte. Acuados ao perceber a decadência de seu império e a incontível tendência de multilateralismo no mundo, o antes hegemônico EUA desfaz-se da máscara de paladino da justiça, assume a nação guerreira e opressiva que sempre tentou disfarçar ser.

As punições via Lei Magnistiky de autoridades brasileiras – estas empenhadas em amenizar os efeitos do desgoverno que tentou desviar o Brasil para o autoritarismo, a submissão, o entreguismo e o negacionismo, desgoverno agora julgado pelos seus crimes contra a Constituição –, é outra mostra do desespero do império em decadência. Para tentar convencer que estão agindo em nome da democracia e da liberdade, os EUA contam com aliados de peso: a desinformação via mídias estadunidenses que eles impedem que sejam regulamentadas; os aliados entreguistas locais, cúmplices da rapinagem internacional; a ignorância negacionista imposta à população; o complexo de vira-lata de muitos brasileiros, que não conseguem enxergar o que significam as leis extraterritoriais como a Magnitisky. Traduzindo-as, elas querem dizer o seguinte: “Eu tenho poder militar, econômico e tecnológico, você não. Se você não me obedecer, eu tenho direito de usar meu poder contra você, da maneira que eu bem entender”.

As ações desesperadas do agonizante império hegemônico – não só as leis extraterritoriais, mas também as taxações, as guerras genocidas que patrocinam, os bloqueios e chantagens econômicas, o negacionismo com o aquecimento global e a emergência climática, a desfaçatez com as organizações, acordos e a diplomacia internacional – revelam, afinal, quem são os EUA. Caiu a máscara do império.

A população brasileira – e a mundial – está acordando para discernir quem é quem, e aprendendo a valorizar a soberania nacional, a verdadeira democracia e liberdade.

sábado, 9 de agosto de 2025

Caiu a máscara da hipocrisia

 Publicado no Jornal da Manhã em 12/08/2025.

Os EUA se arrogam ser a nação guardiã da democracia e da liberdade no mundo. Será? Vamos ver. Os EUA nasceram uma nação invasora. Foi assim que construiu seu território de oceano a oceano, tomando as terras do México. Isto depois de exterminar as nações indígenas, sob inspiração do “destino manifesto”, que faz o estadunidense acreditar que esteja predestinado a dominar o mundo. Foi assim durante a Segunda Guerra Mundial, quando esperou anos para engajar-se, agigantando suas indústrias de armas, enquanto Alemanha, Rússia, França, Itália e Inglaterra devastavam-se na Europa. Foi assim quando perpetrou o mais nefasto ato terrorista e genocida da História, as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Foi assim quando, terminada a guerra, único grande país que saiu com seu território ileso do conflito, submeteu todas as nações do mundo ao jugo do dólar. Foi assim quando invadiu Coréia, Vietnã, Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria e conspirou golpes no Irã, Chile, Argentina, Brasil, Venezuela, Guatemala, Ucrânia e tantos outros, a pretexto de deter o fantasma do comunismo. Foi assim quando, impedido de invadir, embargou Cuba, Venezuela, Irã, Coréia do Norte, Rússia. Está sendo assim quando patrocina o genocídio na Palestina, a guerra na Ucrânia, o ataque ao Irã.

Agora, com o crescimento da China e a ameaça à cambaleante hegemonia estadunidense, o enlouquecido Trump já não inventa subterfúgios para extravasar a ânsia de dominação do destino manifesto: quer submeter todas as nações do mundo, alinhadas ou não, ao que resta de poderio econômico dos EUA. Organizações internacionais, acordos, alianças já não têm nenhum préstimo. Antes, tinham o préstimo de ludibriar, de mascarar. Já não é necessário ludibriar: as garras da águia são expostas com o indisfarçável intuito de ameaçar e subjugar. É o caos mundial, a desordem intencional, que visa a dominação.

Não se trata só de tentar salvar a decadente supremacia econômica e militar estadunidense, através do comércio privilegiado, da usurpação de recursos naturais, dos embargos, chantagens e tramas comerciais. Também está em jogo a supremacia ideológica do neoliberalismo concentrador de riquezas, contra o socialismo distributivo. Com as tecnologias atuais de informação e desinformação, aprofundou-se a crença do fantasma comunismo ameaçando o planeta. Este tem sido o falso pretexto, agora desmascarado, para invadir o mundo. A guerra cognitiva imbeciliza o senso comum: transforma estadistas em ladrões; milicianos em mitos messiânicos; sistemas econômicos que protegem super-ricos e multiplicam a pobreza em ilusão de liberdade e prosperidade; sistemas que visam a equidade zelada por Estados fortalecidos em mordaças à livre iniciativa...

Adentramos a era da desinformação e da ignorância. A educação, com tantos recursos tecnológicos que poderiam estar nutrindo uma nova civilização, está sendo manipulada para fomentar a intolerância, o medo, o ódio, a idiotice, a violência, a subserviência, a desesperança. A força da renovação e transcendência parece bloqueada pela força do reacionarismo e do obscurantismo.

Talvez essa reação ao progresso da humanidade seja algo natural: toda grande mudança encontra rejeição por parte de muitos. Mas a sina é evoluir. Tem sido assim ao longo da evolução das espécies no planeta. A barbárie que ora prospera é o que vai separar o joio do trigo, e fazer nascer o ser humano lúcido, consciente das fragilidades de si mesmo, de seu próximo e da pródiga natureza.

A superação da hipocrisia, ainda que seja pela indisfarçada assunção da prepotência, pode ser o ponto de inflexão da evolução da humanidade.


sábado, 19 de julho de 2025

Elevador de Vila Velha, o retrocesso do bom senso

  

Em 2003 o Parque Estadual de Vila Velha – PEVV – passou por um minucioso processo de revitalização: a unidade de conservação foi então reconhecida na sua função de proteção integral da natureza, e muitos dos despautérios que antes lá eram cometidos foram corrigidos. Entre eles, o funcionamento do elevador na Furna 1, a maior do parque. O elevador só não foi retirado porque se alegou incapacidade técnica de fazê-lo sem provocar riscos ambientais ainda maiores do que manter o passivo ambiental. Um monstro a recordar uma época de total incompreensão da razão de ser do parque, a proteção ambiental, um local de singular patrimônio natural: os arenitos, as furnas, a Lagoa Dourada, a vegetação de campos e floresta com araucária, plantas e animais, alguns ameaçados ou endêmicos, como o cacto bola, a suçuarana, o lobo guará, os peixes nas águas do fundo das furnas e na lagoa.

Em 2003 compreendeu-se que, antes de ser uma atração para lazer e turismo, o PEVV é, pela sua excepcionalidade, um local de preservação, onde é possível aprender o funcionamento dos processos naturais na região, e compreender os serviços que a natureza nos presta, facultando o milagre da vida saudável. Vila Velha é para ser protegida, é lugar que deve ser tratado como santuário, laboratório de estudos e de Educação Ambiental, não como fonte de renda.

Em 2003 reconheceu-se o impacto do elevador: óleos lubrificantes derramados nas águas da furna, ruído, vibrações, dejetos. Tudo isso impacta os andorinhões, os peixes, as águas, a estabilidade do maciço rochoso. Reativar o elevador é o clímax do retrocesso desde 2003. O PEVV não é lugar para festivais, feiras, eventos esportivos, espetáculos. Lá é lugar para preservar, estudar, aprender, respeitar, reverenciar. Como vivem os andorinhões, qual seu papel ambiental? Como funciona a diferenciação dos peixes endêmicos isolados nas furnas? Como são as águas do Aquífero Furnas? Como são os arenitos, que em profundidade, longe dos olhos, podem ser reservatórios de água ou hidrocarbonetos? Quais são e como vivem os peixes da Lagoa Dourada e do Rio Guabiroba? Como funcionam os campos nativos e a floresta com araucária? Como os sistemas naturais da região ajudam a equilibrar o ciclo hidrológico, o controle de pragas, a polinização, a retenção de carbono, o clima? Como os processos intempéricos modificam e moldam os arenitos e sua função como aquífero?

Em 2003 compreendeu-se a razão de ser do PEVV: disciplinou-se a visitação, desativou-se o elevador. O erro foi não removê-lo definitivamente quando daquele laivo de bom senso. Desde então, os gestores do parque pouco a pouco vêm substituindo a função ambiental por uma predatória função de atrativo turístico. O PEVV não tem tido uma gestão ambiental; tem tido uma gestão financeira. A reativação do elevador é uma decisão que ignora o que seja uma unidade de conservação de proteção integral, quais suas funções. Falta o PEVV ter um comitê gestor adequado.

Lamentável! Com as singularidades naturais do PEVV poderíamos estar aprendendo com a natureza, que nos concede a vida. Entretanto, transformando-o num produto turístico, estamos violentando quem poderia nos ensinar.

terça-feira, 8 de julho de 2025

O deus dinheiro e seu vassalo, o mercado

 Publicado no Jornal da Manhã em 08/07/2025.

Muitos dizem que o capitalismo, que prioriza o lucro e desdenha a qualidade de vida humana, é o grande vilão do momento de crise que vive a humanidade. Lucro, qualidade de vida, crise: três conceitos que merecem reflexão.

Consideremos aqui “lucro” não a viabilização econômica de um empreendimento; este lucro é necessário. O lucro que vemos hoje é a incalculável concentração de renda por uns poucos, nunca saciados, que se locupletam explorando o trabalho de uma grande maioria que, à beira da pobreza, luta para suprir suas necessidades básicas. Este lucro deveria ser mais adequadamente chamado de esbulho: o roubo do fruto da força do trabalho.

“Qualidade de vida” é o bem-estar social e pessoal, com as necessidades básicas supridas – alimentação, saúde, moradia, ensino, trabalho, cultura, lazer, segurança... –, e não o luxo e a ostentação daqueles que precisam parecer vencedores perante seus próximos. E que têm que viver em moradias que parecem bunkers, andam em carros blindados, com guarda-costas, acumulam suas fortunas em contas secretas nos paraísos fiscais. Verdadeira qualidade de vida implica paz de espírito e paz no mundo, ética, solidariedade, esperança no porvir, alegria de viver.

“Crise” é a disfunção de algum sistema, seja ele orgânico ou não. A crise antecede o colapso; ela alerta para o mal funcionamento, antes que o sistema sofra falência total. Colapso é o caos resultante desta falência. Um desarranjo muitas vezes com características e alcance imprevisíveis. Atualmente vivemos muitas crises: ambiental, social, política, sanitária, bélica, econômica, educacional, de segurança, ética, religiosa... Os sinais são evidentes. Porém, entre enxergar um sintoma da crise e ser capaz de fazer algo para evitar o colapso adiante, há uma barreira inexplicável. Por que a humanidade não é capaz de reverter a crise climática que ameaça exterminar-nos? Por que não é capaz de distribuir a renda produzida pelo trabalho para acabar com a fome, a pobreza, a humilhação, a criminalidade, a descrença? Por que não é capaz de implementar um ensino que privilegie a tolerância, a solidariedade, o discernimento, o bom senso? Por que não é capaz de findar com as guerras? Por que não é capaz de usar a bênção das tecnologias para o diálogo honesto, a compreensão, o bem-estar, e não a desinformação e a manipulação? Por que os verdadeiros religiosos não conseguem mais transmitir os ensinamentos dos profetas, e as igrejas transformam-se em heréticos templos de devoção à prosperidade, ao domínio e ao logro?

Será o capitalismo o responsável por tantas crises, e pelo colapso vislumbrado à frente? Ou o capitalismo, com todas as crises que ele engloba, é ele mesmo só mais um resultado de arraigados instintos humanos? Desde sempre o ser humano tem sido agressivo e dominador. Muito antes do capitalismo. Mas antes não contávamos com as espetaculares fontes de energia, nem o conhecimento e as tecnologias que temos hoje. Elas só multiplicam o alcance da ambição, da agressividade, da dominação e do cego deslumbramento humanos. O capitalismo é mais um fruto desses infelizes atributos do “Homo sapiens”, que parece mais “demens” que “sapiens”. Fecha-se um ciclo vicioso: os instintos criam o capitalismo, o capitalismo acirra os instintos.

Vivemos a era em que o deus dinheiro e seu vassalo mercado conduzem a espécie humana para a autoextinção. Enxergaremos e mudaremos antes do colapso?

domingo, 29 de junho de 2025

Aterro Botuquara, o câncer de Ponta Grossa

 Publicado no Jornal da Manhã em 01/07/2025.

Os jornais de Ponta Grossa têm noticiado o imbróglio que envolve o encerramento do Aterro Botuquara, que recebeu o lixo da cidade por mais de meio século, e foi desativado em 2019. Quando o Botuquara foi instalado, no final dos anos 1960, as normas ambientais e os atributos naturais da região eram desconhecidos. Hoje se sabe, o local do aterro não poderia ter sido pior, do ponto de vista ambiental.

O Botuquara – agora uma montanha de lixo, um incômodo passivo ambiental – situa-se sobre os arenitos da Formação Furnas, um generoso aquífero, cada vez mais utilizado por indústrias, postos de serviços, hospitais, supermercados, granjas e outros empreendimentos de Ponta Grossa e região. O Aquífero Furnas tem potencial para amenizar as crises hídricas previstas para os tempos de emergência climática que adentramos. As normas atuais preconizam que as áreas de recarga dos aquíferos não sejam utilizadas para os aterros, pelo risco de contaminação dos mananciais subterrâneos. Por esse motivo, recentemente foi impedida a localização de novo aterro da empresa Ponta Grossa Ambiental, na região do Rio Verde, ela também situada sobre a área de recarga do aquífero.

Muito se discute a destinação da área do desativado Aterro Botuquara. Fala-se de plano de recuperação de área degradada, de termo de ajuste de conduta, em área de lazer, em um sistema de energia solar, em produção de bioenergia, em Ministério Público, em Secretaria Municipal de Meio Ambiente, em poluição das águas superficiais e subterrâneas pelo chorume do antigo aterro. Um imbróglio, aparentemente sem solução, ou com prováveis soluções para daqui décadas.

O Aterro Botuquara é como um câncer já diagnosticado, mas para o qual se rejeita tratamento. Ele pode tornar-se incurável e alastrar-se, se as águas do Aquífero Furnas forem contaminadas. Os aquíferos são fonte abundante de água de boa qualidade, e têm outras vantagens: dispensam tratamento e redes de distribuição, não dependem das desastrosas variações das chuvas, previstas para se acirrarem com as mudanças do clima que estamos provocando. Mas têm uma vulnerabilidade: não podem ser poluídos. Se o forem, sua recuperação é inviável. Por todos esses motivos, crescem em todo o mundo os cuidados para a proteção dos aquíferos.

Além de negligenciar o câncer diagnosticado, o poder público parece também querer impedir que se façam novos exames, para compreender o alcance das possíveis metástases: não é feito adequado monitoramento das lagoas de chorume, não são realizadas nem divulgadas análises da qualidade da água nos arroios próximos, nem de poços de monitoramento das águas subterrâneas.

Dadas as características locais, a melhor solução para o câncer Aterro Botuquara parece ser mesmo extirpá-lo. Transferir a montanha de lixo para um local sobre solos e rochas naturalmente impermeáveis, sem risco de contaminação de mananciais subterrâneos nem superficiais.

No município de Ponta Grossa há muitas áreas assim, onde afloram no terreno rochas argilosas impermeáveis da Formação Ponta Grossa.

sábado, 14 de junho de 2025

Analfabetismo funcional e cancelamento

 Publicado no Jornal da Manhã em 27/06/2025.

Surpreendi-me com a notícia divulgada em maio passado: 29% dos adultos no Brasil são analfabetos funcionais; 36% estão no nível elementar, são capazes de compreender textos simples e de tamanho médio; só 35% são considerados alfabetizados plenos. O estudo foi realizado por uma parceria de instituições, incluindo Unesco e Unicef. É sério e isento, e não uma peça de desinformação. Esses resultados são alarmantes. A realidade atual, com a comunicação digital, a inteligência artificial, a manipulação do comportamento usando a neurociência e recursos milionários, é muito complexa. Só a plena alfabetização tem chance de lançar alguma luz sobre tal complexa realidade. E não estamos preparados para tanto. Talvez esses dados expliquem por que se elegem tantos parlamentares vendilhões da pátria, entreguistas e a serviço de lobbies fisiológicos, e não estadistas de verdade.

Nestes tempos que vivemos, discernir é vital. A desinformação e o logro foram potencializados com o advento do mundo digital, das redes sociais e dos algoritmos da inteligência artificial. Eles, mais que libertar e emancipar o gênio humano, empenham-se em condicionar-nos para objetivos escusos: comprar, temer, alienar, imitar, mentir, fraudar, segregar, odiar... Os muitos apelos que nos chegam são perturbadores: se não soubermos triá-los, endoidamos. Ou, confusos, não conseguimos entender: consuma-se o analfabeto funcional.

Talvez o principal objetivo da manipulação da informação seja mesmo preservar a tirânica injustiça social, que divide em classes: a produção de riquezas pela força de trabalho seria suficiente para toda a população mundial ter vida digna e saudável. Entretanto, a maior parcela da humanidade vive em luta constante contra a fome, a pobreza e a humilhação, enquanto uns poucos locupletam-se, acumulam fortunas impensáveis.

Qual a relação entre analfabetismo funcional, cultura, cancelamento, injustiça social e colonialismo? Cultura vem com a alfabetização, vem com uma educação – formal ou informal – que seja inclusiva, crítica, que ensine a pensar e a criar, e não só a repetir, conformar e conservar. Sem ela, estaríamos ainda nas cavernas. Cultura é o cultivo do discernimento, da compreensão, da sensibilidade, da tolerância, da solidariedade. Sem diálogo lúcido e respeitoso, não há cultura. O cancelamento é a negação da cultura. A injustiça social, filha do narcisismo que quer destruir o diferente, é irmã do analfabetismo. Se a humanidade não for capaz de, com a cultura, superar a ignorância, está condenada à extinção. O colonialismo é só um resultado de todo desatino humano: países subjugando países, povos explorando povos, ricos explorando pobres, exércitos de pobres guerreando pelos ricos, alfabetizados iludindo analfabetos.

Escrevo regulamente crônicas, artigos e ensaios críticos. Textos que procuro fazer um apelo mais à razão que à emoção e aos preconceitos. Claro, sou humano. Apesar de tentar, não quer dizer que consiga dominar meus próprios arroubos emocionais e preconceituosos. Ademais, há muito compreendi o sentido do aforismo “A mentira desgasta relacionamentos; a verdade não, a verdade devasta!”. Procurar enxergar e dizer a verdade rompe relacionamentos. Afasta, inimiza, e, atualmente, cancela. Preferiria ser mais afeito a escrever textos que tocassem só os sentimentos. Eles não polemizam, parecem mais capazes de revelar e transformar que os pensamentos. Entretanto, o espontâneo e sincero impulso de refletir é parte da minha identidade. Negá-lo seria traí-la.

Recentemente, fui cancelado num grupo que se diz de cultura em Ponta Grossa. Motivo: postei um trecho do discurso do Presidente Lula agradecendo a homenagem da Academia Francesa. Ele lembrava os acadêmicos que só tem o primário e um curso técnico, mas tornou-se sindicalista, criou um partido e é presidente. O reconhecimento da Academia Francesa significa que é um ser humano singular, merecedor da rara homenagem. O discurso de Lula sugeria que a principal qualidade humana, a solidariedade, não depende da erudição: depende da escola da vida, e decerto também da índole de cada um.

A postagem do vídeo motivou minha exclusão do grupo de cultura. Ele não admite conteúdo político. Sinto que esta ideia de cultura também pode conduzir-nos à extinção.

terça-feira, 10 de junho de 2025

A arapuca estadunidense: uma Lava Jato mundial

 Publicado no Jornal da Manhã em 10/06/2025.

Esse é o título de livro de dois franceses (F. Pierucci e M. Aron, Kotter Editorial, 2019) que conta como uma lei dos EUA é usada para favorecer interesses desse país no mundo todo. Em 2018 essa lei, aplicada com distorções e ilegalidades, serviu para a General Electric estadunidense engolir a francesa Alstom, concorrente mundial na área de usinas nucleares. O título do livro não poderia ser mais acertado: trata-se de uma arapuca destinada a eliminar qualquer concorrente dos interesses dos EUA no mundo.

No Brasil, a operação Lava Jato começou em 2014, quando o País e suas empresas (Petrobrás, Odebrecht, Embraer, JBS e outras) prosperavam a ponto de provocar a punição dos EUA, país que não tolera concorrentes: elimina-os. Não eram só as empresas brasileiras, era o Brasil se tornando uma próspera potência. Os dirigentes da Lava Jato foram treinados pelos serviços de inteligência dos EUA. Depois das denúncias da Vaza Jato – que em 2019 revelou as falcatruas da operação e anulou-a – Sérgio Moro, seu principal agente, tornou-se sócio da empresa Alvarez & Marsal nos EUA, dedicada a explorar os despojos das empresas brasileiras. A Lava Jato não foi operação destinada a combater a corrupção, como se propagandeava. Foi destinada a sangrar empresas brasileiras e a perpetrar os golpes políticos que seguiram, e frearam a caminhada do Brasil rumo à plena democracia e à soberania.

Agora (2025), o governo Trump dos EUA ameaça a aplicação das leis extraterritoriais – valem no mundo todo – para além da economia. Ele quer penalizar autoridades de países – sobretudo na América Latina – que “trabalhem para restringir os direitos de cidadãos estadunidenses”. No caso, as autoridades são ministros do STF – Alexandre de Moraes e outros –, e os direitos dos cidadãos estadunidenses são postagens nas plataformas digitais e redes sociais do Tio Sam que disseminam ilegalidades, como a desinformação, discursos de ódio e de ataque às instituições e à democracia. Ou seja, Tio Sam já não tem mais vergonha de escancarar seu empenho em submeter os países que ousam tentar ser soberanos. Quer subjugá-los como eternas colônias. As ilegalidades que a regulamentação da internet tenta banir são uma ameaça para a estabilidade política e econômica do Brasil. E representam uma poderosa arma da guerra cognitiva que faz os brasileiros elegerem, numa aparente democracia, lobos travestidos de cordeiros para cuidar do rebanho.

A guerra cognitiva usa armas que idiotizam o ser humano. Ela emprega tecnologias avançadas, entre elas a comunicação digital, embasada na neurociência e na manipulação do comportamento humano. O condicionamento para comportamentos insólitos, tal como acreditar que fisiologismo, clientelismo, oportunismo e entreguismo sejam predicados de um bom homem público, é perpetrado pela guerra cognitiva. E ela é tanto mais eficaz quanto mais frágil for a capacidade de refletir, discernir e engajar-se da população.

Precarização da educação, analfabetismo funcional, guerra cognitiva, desregulamentação da internet, sabotagem à soberania e prosperidade do Brasil são temas intimamente ligados.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Encruzilhada humana

 Publicado no Jornal da Manhã em 03/06/2025.

Estamos vivendo o momento em que a humanidade encontra-se diante de uma encruzilhada crucial: mais de oito bilhões de almas que somos hoje, aprenderemos a conviver com os limites da Mãe Terra e da psicologia humana?

Os sinais de que já ultrapassamos os limites da Mãe Terra são muitos: o aquecimento global, a degradação da camada de ozônio, a poluição das águas, o esgotamento dos solos cultiváveis, a contaminação dos alimentos com agrotóxicos, as condições pandêmicas que criamos, as ilhas flutuantes de descartes plásticos nos oceanos, a degradação das florestas, a extinção recorde de espécies, são só alguns sintomas. As resistências às tentativas de acordos para diminuir estes sintomas revelam que ainda não estamos convencidos que estamos destruindo as condições que suportam a vida humana no planeta. Não são só os países e governos que dão prioridade para a economia e para o poder; muitos indivíduos ainda desdenham quando são alertados que é preciso aprender a cuidar da casa comum, a Terra. Ela é mais vital que o dinheiro e o prestígio, mas a cupidez e a incúria têm mais força.

E os limites da psicologia humana? Nunca antes na história do planeta o atributo que nos distingue das demais espécies – a inventividade – assumiu tamanha importância no equilíbrio – ou desequilíbrio – ambiental e social. Além de sermos hoje mais de oito bilhões – o que por si já causa um impacto incalculável –, criamos tecnologias que permitem que salvemos, ou destruamos, o mundo todo. Gastam-se mais recursos para construir armas – capazes de destruir todo o planeta várias vezes – do que para acabar com a fome, as doenças, a miséria, a ignorância. Somos capazes de enviar o homem à Lua e sondas mapeiam Marte e Júpiter, mas não somos capazes de solucionar conflitos enlouquecidos, que conduzem a segregações, perseguições, guerras e genocídios.

Duas criações mais recentes do engenho humano constituem desafio sem precedentes para testar nosso equilíbrio psicológico: a comunicação digital e a inteligência artificial. A comunicação digital – que possibilita o contato global em tempo real – está se mostrando mais útil para a desinformação e o logro do que para a disseminação do conhecimento e da informação verdadeira. Ela tem sido a principal artimanha usada para manipular o ser humano e convencê-lo a consumir, sejam bens supérfluos, convicções, crenças, preconceitos, ideologias, ódios... Também mostramos não saber lidar com a inteligência artificial. Assim como a comunicação digital, se não soubermos usá-la ela poderá, ao invés de auxiliar-nos, idiotizar-nos, escravizar-nos ou comprometer a criatividade, a originalidade e a identidade humanas. Somos seres passíveis de serem condicionados – assim como os cães de Pavlov –, corremos o risco de termos nossas escolhas dirigidas pela desinformação e pela artificialidade.

Comunicação digital e inteligência artificial não são males sem remédio. Pelo contrário, podem ser bênçãos incomparáveis. Mas, assim como já temos feito com a agricultura, os combustíveis fósseis, a energia nuclear, benesses podem tornar-se fatais. Ter consciência do limite de uso dessas benesses é o desafio maior. Todo remédio é também um veneno, pode ser letal se descuidamos da dose.

Um outro aspecto essencial da natureza humana é a religião. Ela, como religação com o divino, que reconforta e inspira, é fundamental. Mas as igrejas estão deturpando a religião em doutrinas supremacistas, de prosperidade e dominação. É o Deus celestial sendo substituído pelo deus dinheiro e seu vassalo, o mercado. A religião autêntica, formadora de princípios éticos e solidários, também precisa ser recuperada.

O desafio maior da humanidade é conhecer os limites: do próprio ser humano, da natureza. A euforia, a soberba, a ambição, podem ser devastadoras para a espécie humana. É o momento de encará-las, e superá-las.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Anistia e meio ambiente

 Publicado no Jornal da Manhã em 24/05/2025

Nos últimos dias, dois temas têm frequentado o noticiário: a anistia aos golpistas de 8 de janeiro e a flexibilização das leis ambientais. Dois assuntos que parecem não ter muita ligação entre si, mas que, na verdade estão muito relacionados. E têm a ver com o dilema civilizacional que vivemos hoje, que deverá decidir o futuro da humanidade.

É correto falar em golpistas de 8 de janeiro? Na verdade, os vândalos de 8 de janeiro foram uma armação dos verdadeiros golpistas, estes infiltrados nas repartições, nos quartéis, nos tribunais, no agronegócio, no empresariado. Estes verdadeiros golpistas são uma parcela da população que alcançou poder político, econômico, militar, forense, mas nunca aceitou as regras da convivência democrática. Felizmente, não é toda a população que apresenta esse distúrbio de personalidade. A maioria ainda acredita que é possível que regras construídas por todos, e que valham para todos, são as que podem conduzir à convivência pacífica e próspera.

Os verdadeiros golpistas, que materializam no Brasil o surto de neofascismo que acomete o mundo, financiaram e manipularam os vândalos de 8 de janeiro, numa tentativa de deflagrar uma revolta popular. Mas, entre os vândalos, estavam só pessoas iludidas pelos golpistas? Certo que não! A maioria talvez estivesse lá ludibriada, mas uma boa parte estava lá porque identifica-se com os golpistas que não toleram a democracia.

E o meio ambiente? O Congresso Nacional discute projeto de lei flexibilizando o licenciamento ambiental. Alega-se que é para diminuir a burocracia, mas na verdade a lei discutida desobrigaria o cumprimento de muitas das leis ambientais vigentes. Essas leis têm, afinal, alguma serventia? Claro que têm! No mundo, o “Dia da Sobrecarga da Terra” para 2025 deverá ser o dia 1º de agosto: o dia em que a humanidade esgotará os recursos naturais disponíveis para todo este ano. Entraremos no vermelho da conta ambiental no início de agosto.

O Brasil, tido como um país com matriz energética limpa – graças às hidrelétricas e ao etanol –, é o quinto maior emissor de gases estufa. Motivo: o desmatamento, principalmente na Amazônia e nas áreas de cerrado. E a análise das águas dos reservatórios de abastecimento público revelou onipresença de substâncias tóxicas de esgotos e da agropecuária. Somos o país com maior quantidade de água doce do mundo, mas estamos aceleradamente envenenando-a.

Os representantes que elegemos, nesta nossa “democracia representativa”, parecem dispostos a conceder anistia aos golpistas, e a flexibilizar as leis ambientais. São dois casos muito ligados: ambos têm a ver com o ambiente social e natural que estamos construindo para um futuro bem próximo. Eles escolherão um futuro de respeito à democracia e à natureza em benefício de toda a população? Ou darão preferência aos interesses de quem despreza a democracia, explora o trabalhador e a natureza?

Não podemos esquecer: os parlamentares que lá estão decidindo sobre estes temas foram eleitos pela população. Eles estão representando a população? Foram eleitos para isso? E a população, está elegendo certo seus representantes? Ou está sendo ludibriada também no momento do voto, tão essencial no sistema atual?

A população precisa aprender: a compreender, a discernir, a escolher pelo bem do coletivo, e não para o privilégio de poucos. Enquanto não aprender, vai continuar sendo tangida como o gado.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Francisco, Mujica e a sociedade ensandecida

 Publicado no Jornal da Manhã em 16/05/2025.

O Papa Francisco e Pepe Mujica nos deixaram. Comove ver como são incensados na mídia, nas redes sociais, nas rodas de conversas – estas cada vez mais raras. Muita gente parece celebrar as qualidades destes homens notáveis que nos deixam, mas nos presenteiam com um legado de amorosidade, bom humor, lucidez, solidariedade, cuidado com a Mãe Terra, os povos originários, o trabalhador simples, as minorias, os refugiados da insensatez humana, as mulheres que lutam e começam a transformar o perverso mundo patriarcal.

Francisco e Mujica foram homens de paz, de simplicidade. Quantas irmãs podemos encontrar para estas duas já abençoadas irmãs: liberdade, justiça, bondade, fraternidade, a amorosidade que se estende a todos e a tudo o que a natureza nos oferece, que transforma nosso planeta na Mãe Terra que nos acolhe e nos nutre, mas que teimamos afrontar e magoar.

Mas, se tanto escutamos incensar e louvar as qualidades de Francisco e Mujica, é porque uma imensa maioria silencia. Esse silêncio encoberta, talvez, rancor, culpa, desdém? Os dois homens notáveis que agora são incensados foram chamados de comunistas, de esquerdistas – pejorativamente, por quem ignora o verdadeiro sentido destas palavras – e até considerados inimigos da sociedade. Qual sociedade? Francisco dizia que preferia tomar suas refeições no restaurante dos funcionários do Vaticano, assim evitava ser envenenado. Mujica foi perseguido e preso por mais de uma década. Que sociedade persegue e condena estes homens, e depois celebra-os quando nos deixam? Celebramos seu legado, ou sua partida?

Triste, temos de concluir que a sociedade está doente. Um diagnóstico que o paciente se recusa a reconhecer, algo comum nos distúrbios mentais e emocionais. Nossa doença é mental, emocional, e também ética e espiritual. Não apresentamos só sintomas de insanidade – ao acumularmos arsenais capazes de destruir o mundo várias vezes –, de desvario – ao escolhermos e seguirmos líderes e ícones psicopatas, megalomaníacos e malignos –, de enfermidade espiritual – ao adorarmos o deus dinheiro e o hiperconsumismo, ao professarmos fé cega e segregacionista, inculcada por falsos profetas, ao abraçarmos a deturpação dos princípios religiosos legítimos.

Francisco foi um apóstolo da fé no homem celestial e na amorosidade. Mujica foi um apóstolo do homem amante da liberdade, da justiça, do despojamento, da simplicidade. Ambos foram apóstolos do respeito ao próximo e à natureza. E por assim serem, se por um lado são agora incensados midiaticamente, na verdade continuam vetados nas engrenagens ocultas que movem o sistema ensandecido que vivemos. Um sistema cruel, que manipula e explora o ser humano e a natureza, mas que acaba por ser interiorizado por todos nós, que o realimentamos com nossos medos e preconceitos.

Uma realidade enlouquecida. Talvez por esse motivo, junto com os louvores midiáticos a Francisco e Mujica, estejamos fazendo também uma penitência, um mea-culpa. Um resquício de esperança de que herdemos suas qualidades, e nos tornemos capazes de contribuir para mudar o destino ensandecido da sociedade atual.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O poder corrompe?

 

A todo momento recebemos confirmação desse aforismo. Desde o poder – ainda que irrisório – do porteiro ou do síndico do prédio, até o poder do presidente do império global, o mando corrompe e até enlouquece. Mas vamos refletir um pouco sobre isso: será mesmo o poder o vilão dessa história?

Parece mais que o poder, seja ele de que natureza for – hierárquico, político, econômico, pela força bruta, pelo saber –, faculta ao poderoso dominar e explorar seus oponentes sem o risco de retaliação ou punição. O poder coloca quem o detém acima das leis, da ética e da moral. A maioria tende a se beneficiar desse privilégio da impunidade, usa-o perpetrando injustiças e crimes. Felizmente nem todos são assim, há aqueles que empregam o poder para o bem coletivo.

Mas não é o poder o criador do ditador que aflora quando as normas e princípios são burlados. O ditador corrupto não é criado pelo poder; ele já existia, só é liberado pelo poder. Tem-se afirmado que temos dentro de nós o anjo e o demônio, o cordeiro e o lobo. Sem o contrato social que o contém, o lobo fica à vontade para devorar todas as presas ao alcance, e transgredir todas as regras que o impeçam de extravasar suas selvagens ânsias.

Tudo tem mostrado que temos dentro de nós o lobo e o cordeiro. Nenhum dos dois parece ser o ideal. Há que domar a ferocidade bestial do lobo, e há que despertar o cordeiro para que supere sua mansuetude e submissão. O melhor seria juntar o pacifismo do cordeiro com a assertividade do lobo. Oxalá o ser humano fosse ao mesmo tempo ferozmente engajado e angelicamente justo.

Mas não é assim, infelizmente. O vácuo de regras firmes corrompe e desatina a maioria. Por que é assim? O que podemos fazer para nos tornarmos seres mais lúcidos, equitativos e solidários, imbuídos do propósito da prosperidade coletiva?

Talvez o principal motivo de sermos corruptíveis é que, embora racionais, somos animais; e como tal ainda preservamos na nossa natureza os primitivos instintos de sobrevivência e competição do lobo. Ademais, a qualidade de zelo e proteção, característica dos mamíferos, parece que ainda não foi devidamente compreendida e cultivada entre nós. Veja-se por exemplo as religiões: no início imbuídas da intenção de compreender, aceitar e acolher, tornaram-se instrumentos de dominação, de comércio de promessas e indulgências, de extravasamento de impulsos de intolerância, ódio e crueldade.

Cultivar e fortalecer o anjo existente dentro de nós não é tarefa fácil. Mas é essencial! Uma educação humanista e não dinheirista, um sistema econômico inclusivo e justo, um sistema governamental guiado pela justiça social, uma religião que recuperasse os princípios de compreensão e amorosidade, seriam passos no rumo de resgatar a humanidade no ser humano.

Mas não é o que temos visto no mundo. O lobo é voraz. Não quer deixar o cordeiro crescer. Prefere logo devorá-lo, mesmo que ele ainda seja só um sonho.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Fraude no INSS e ataque à democracia

 Publicado no Jornal da Manhã em 25/04/2025.

As fraudes no INSS – Instituto Nacional do Seguro Social – reveladas estes dias – descontos indevidos de mensalidades de institutos, empréstimos consignados, etc. – nos deram uma boa mostra de como atacar a democracia. Democracia quer dizer poder, soberania para o povo. Quem a ataca é a plutocracia – o poder do dinheiro, dos ricos.

Fraude no INSS é um rastilho de pólvora que explode no bolso dos muitos aposentados, e de todos aqueles que têm um parente ou um amigo aposentado. É um tema de imediato interesse de grande parte da população brasileira, um apelo midiático estrondoso. Por esse motivo, nestes dias só se vê, na grande mídia, uma enganosa cumplicidade, explícita ou implícita, entre as fraudes lesivas e a culpa do próprio INSS, do Estado Brasileiro do qual ele faz parte, dos funcionários públicos, do governo Lula, do irmão de Lula, o sindicalista Frei Chico. Lembremos: o INSS é uma instituição garantidora de direitos do cidadão conquistados com muita luta, e que estão sob incessante ataque; o governo Lula é um governo que procura ser socialista, beneficiando o cidadão mais pobre. Esses não são interesses da plutocracia. Ela quer o Estado mínimo, com a única finalidade de financiar, com o dinheiro público, a recuperação das bancarrotas promovidas pelo mercado, o deus devorador por ela eleito como governo.

Os criminosos que cometeram a fraude no INSS são bandidos que têm que ser punidos. Sejam quem sejam. A superação da corrupção enraizada só acontecerá quando os corruptos pagarem por seus crimes. Mas atenção: corruptos, infelizmente, existem em todo lugar. É preciso identificá-los e inculpá-los, sem destruir as instituições que profanam. O erro é do corrupto, não do INSS nem do governo. Descrer do INSS ou do governo por causa dos corruptos seria como duvidar de todo o sistema de saúde porque ainda existem doenças.

A fraude revelada esta semana foi iniciada em 2019, todos sabem no governo de quem. E começou a ser investigada em 2023, todos sabem no governo de quem. Por isso o esforço da plutocracia – quer dizer, da grande mídia que ela controla – em ligá-la ao governo atual. A partir de 2023 o governo não é mais um fantoche da plutocracia, embora o Congresso Nacional, em sua maioria, ainda o seja. Não bastou à plutocracia insinuar que a fraude estava no coração do governo. Tentaram também insinuar que estava na família do Presidente. Frei Chico, irmão de Lula, é da direção de um dos sindicatos investigados pela Polícia Federal. O sindicato é investigado, Frei Chico não, nada pesa contra ele. De novo, uma instituição onde há corrupção não quer dizer que todos lá são corruptos. Mas isso não interessa à grande mídia, que logo fez parecer que a família de Lula é de corruptos. Como já tentou fazer antes, mas foi desmascarada.

A plutocracia está trabalhando incansavelmente visando 2026. Ela teme ser de novo derrotada nas urnas, teme ver de novo um executivo democrata dirigir o país. Vai usar todas as armas que possa comprar para convencer o eleitor que o lobo é um cordeiro.

domingo, 6 de abril de 2025

Dividir para dominar

 Publicado no Jornal da Manhã em 08/04/2025

Esse aforismo decerto tem sido praticado desde os tempos pré-históricos. Mas é ao longo da história conhecida da humanidade que se constata a eficácia dessa ancestral estratégia de dominação: dividir os povos dos territórios a serem dominados, insidiosamente lançando tribos contra tribos, povos contra povos, etnias contra etnias, religiões contra religiões, culturas contra culturas, homens contra mulheres... Atualmente, nacionalidades contra nacionalidades, classes sociais contra classes sociais, ideologias contra ideologias, até o clímax da cizânia, irmãos contra irmãos.

Certamente há na índole humana teimosos resquícios do instinto de competição e dominação, inerente à nossa natureza animal e sua sujeição aos princípios da sobrevivência e da seleção natural. Mas desde que nossa inteligência tomou ciência de que somos esses seres naturalmente competitivos, esse traço primitivo tem sido manipulado com o fim de dominar-nos. É assim para assanhar a ânsia de consumir da sôfrega civilização atual. Possuir é sobressair-se, ambicionar faz íntima ligação entre a posse de bens e a ostentação da supremacia dos dominadores. Tornamo-nos consumidores compulsivos, à mercê de quem lucra com nossa compulsão. E, vítimas da guerra cognitiva, competimos com nosso conterrâneo, nosso vizinho, nosso irmão. Um instinto tão forte que nos cega para a compreensão de que, alhures, alguém nos manipula, dividindo-nos, enfraquecendo-nos, enquanto nos controla e nos explora.

A fraqueza que nos é incutida não o é só na nação, na etnia, na classe socioeconômica. Manifesta-se também na tibieza do caráter. A guerra cognitiva é vitoriosa quando subjuga a mente do inimigo. Implanta nela a desinformação, a ignorância, o negacionismo, a intolerância, a segregação, o medo, o ódio, a incapacidade de refletir, de discernir, de dialogar, de ter sensibilidade e empatia. Os subjugados reagem como animais acuados.

Será que seremos capazes de quebrar esse ancestral arquétipo? Seremos capazes de perceber quantos fantasmas nos são imputados para que, amedrontados, transformemos nosso próximo num inimigo visceral? Desde a cuca que vem pegar a criança inquieta, monstro fictício inventado para assustá-la e controlá-la, até o apregoado perigo, não menos fictício, da outra ideologia, da outra religião, da outra cultura, são muitas maldosas criações para nos provocar medo, nos dividir e dominar.

Dominação não é só de um país sobre outros, como temos constatado hoje com a ânsia estadunidense de submeter hegemonicamente todo o mundo. Tão perversa e tão global quanto ela é a dominação econômica, num arranjo universal onde uma elite usufrui dos benefícios da riqueza produzida pelo trabalho de uma imensa maioria excluída e empobrecida.

Na verdade, todas as formas de dominação – territorial, cognitiva, econômica, racial, de gênero – estão ligadas. São múltiplas expressões do impulso primitivo único, agora manipulado por moderníssima tecnologia, com apurados métodos científicos.

Se quisermos escapar da dominação de quem nos divide, para alcançarmos a emancipação e a liberdade pessoal, e a soberania de nosso País, é essencial que deixemos de ter nossos instintos manipulados. Isso é possível. Basta cultivarmos e cuidarmos de nossos princípios e convicções – nossa cultura – com mais força que o nosso inimigo invisível da guerra cognitiva que já nos foi declarada.

Nossa consciência, desde que apelemos a ela, é muito mais poderosa que esse inimigo estranho que quer nos dominar.

quinta-feira, 27 de março de 2025

O Brasil financia as guerras na Ucrânia e Israel

 Publicado no Jornal da Manhã em 27/03/2025.

O Brasil – e muitos outros países que não têm verdadeira soberania – financia as guerras na Ucrânia, em Israel, na Síria e em tantos mais lugares do mundo. Cogita-se que a próxima seja na Ásia, entre China e Taiwan – mais uma guerra por procuração. Os grandes promotores das guerras – não só as militares, mas também as híbridas, midiáticas, econômicas, legais, cognitivas, tecnológicas, culturais... – são os EUA. No ano de 2021, os gastos militares do Tio Sam ultrapassaram 38% do total do planeta. Em 2023, eles somaram US$916 bilhões, o equivalente a 42% do PIB brasileiro naquele ano. E o valor computado não leva em conta gastos que promovem a vassalagem do mundo, financiando as muitas outras guerras, que não são as militares.

E quem paga essa enorme conta? Os estadunidenses? Ou as populações dos países que ainda não se firmaram como nações soberanas, e são vítimas de uma sangria constante, uma transfusão involuntária de recursos para o belicoso Tio Sam? Até mesmo potências tradicionais, como a França, têm sido sangradas pelos EUA. O livro “A arapuca estadunidense – uma Lava Jato mundial”, de Frédéric Pierucci e Matthieu Aron (Kotter Editorial, 2021) narra como a General Electric estadunidense engoliu a concorrente francesa Alstom através de uma insidiosa lawfare. Os EUA têm leis extraterritoriais, ou seja, aplicáveis fora de seu país, que distorcem a verdade, a justiça e praticam tortura visando aumentar seu patrimônio e eliminar os concorrentes pelo mundo.

Se até os grandes sofrem com a avidez estadunidense, que dirá os mais vulneráveis, tal como o Brasil? Nossos governos democráticos têm sido sistematicamente sabotados pelos golpes urdidos pelo Tio Sam, para manter-nos submissa colônia exportadora de commodities com baixo valor agregado, e importadora de valorizados bens industrializados. A operação Lava Jato, que destruiu ou enfraqueceu empresas estratégicas brasileiras – empreiteiras, alimentícias, petrolíferas, aviação –, ao invés de simplesmente saneá-las da corrupção onipresente nas grandes empresas do mundo, é um exemplo de sangria recente a que fomos submetidos. Um exemplo mais antigo é a privatização de empresas estatais de áreas vitais – como energia, comunicações, saneamento, petróleo, fertilizantes, transporte coletivo – que vem sendo realizada há décadas, em nome de uma suposta ineficiência do Estado. É a voracidade do neoliberalismo, que só faz concentrar para uns poucos inescrupulosos e ávidos acionistas e seus comparsas a riqueza que deveria ser revertida para a prosperidade do País. As privatizações são parte essencial da transfusão de riquezas para os EUA.

Agora estamos às voltas com novos golpes e tramas para saciar a belicosa voracidade do Tio Sam: as tarifas sobre as commodities que exportamos e a aliança de elites reacionárias estadunidenses com seus lacaios similares no Brasil. Querem mais de nossas riquezas, para financiar as guerras que promovem no mundo, ou para benefício próprio.

Boa parte da população brasileira, entorpecida por décadas de eficaz guerra cognitiva, renega o esforço de emancipação do nosso País. Ademais, é deslumbrada com o glamour da suposta pátria da liberdade e da justiça, criado pela ilusão hollywoodiana. A lebre crê que a águia vai acolhê-la e apoiá-la.

Se não acordarmos, continuaremos a ajudar os EUA a financiarem suas guerras de dominação e extermínio mundo afora.


domingo, 23 de março de 2025

O périplo da conta d’água

 Publicado no Jornal da Manhã em 19/03/2025.

Justino Sempadim é um cidadão comum. Paga as contas e os tributos em dia, vota nas eleições em candidatos honestos e justos, que já mostraram a que vieram, e não nos ilusionistas que prometem milagres. Entre as contas que paga em dia, está a conta de água. Justino mora com esposa e filho, três na residência. Segundo dados de agências internacionais, eles, que não são esbanjadores, devem consumir cerca de 330 litros de água por dia. Ou seja, 9.900 litros por mês. Vamos arredondar para 10 m³ por mês.

Mas Justino, desatento e confidente, não notou que sempre a conta da empresa de saneamento cobrava 30 m³ por mês. Ah, a construção era antiga, o hidrômetro também. Estava lá desde antes da família se mudar para aquela casa. E o relógio se situava para dentro do muro, era preciso que o leitor tocasse a campainha para poder fazer a leitura mensal do consumo.

Até que, com a privatização e a terceirização dos serviços da saneadora, o leitor, obrigado a cumprir uma forçada meta diária, passou a fazer uma leitura a cada três meses. Nos outros dois, registrava “ausente”, e estimava um consumo de 10 m³ para os meses em que a leitura não era realizada. Quando voltava a fazer a leitura no velho hidrômetro, ele marcava um consumo de 30, e não 10 m³/mês. Então o valor da conta era acrescido das sobretaxas sobre as crescentes faixas de consumo. Uma das contas ultrapassou os mil reais, Justino foi reclamar no escritório da saneadora, lá no alto da avenida. O funcionário pediu foto do hidrômetro, quando Justino a mostrou, de pronto o funcionário reduziu o valor da conta para aquele usual. Justino espantou-se, pareceu-lhe que o funcionário reconhecera sem questionamentos que algo estava errado no valor.

Alertado por aquela casualidade, Justino chamou um técnico especialista em localizar eventuais vazamentos. Ele vasculhou a casa, usou geofone eletrônico, fez teste de estanqueidade. Não encontrou indícios de perdas d’água, emitiu laudo atestando isso. Ao mesmo tempo, para evitar as sobretaxas por consumo elevado, Justino formalizou pedido para transferir o hidrômetro para a calçada em frente à casa. Um processo demorado, meses para instalar novo hidrômetro e refazer a calçada, serviços cobrados do consumidor. A caixa do novo relógio, de plástico, precária e frágil, restou cheia de terra. O fecho ficou obstruído, não durou dois meses, entalou, quebrou.

Mas Justino notou uma diferença no consumo: agora, leitura feita mensalmente sem a necessidade de tocar a campainha, sem o argumento do “ausente”, o novo hidrômetro dizia que a família de três pessoas consumia 10 m³/mês, e não os 30 m³ que dizia o velho e descalibrado relógio. Justino deduziu que por anos pagara à saneadora 20 m³/mês que a família não consumira.

Mas logo veio o racionamento de água na cidade, o rodízio de fornecimento entre os bairros. Supostamente culpa do calor do verão, e do exagero de consumo dos moradores. Mas Justino lia no jornal que bilhões eram pagos aos acionistas da agora privatizada saneadora. Não estariam então faltando recursos para os obrigatórios investimentos para atualizações?

Quando o fornecimento era retomado após um dia de racionamento, a família de Justino percebia as “explosões” nas torneiras e na caixa d’água que era reabastecida: ar que vinha na tubulação que estivera vazia. E então outra surpresa: com a água racionada, banhos de pingos, o consumo medido no novo hidrômetro subiu de 10 para 16 m³/mês!

Estaria a saneadora agora também cobrando pelo ar que vem pelos canos?

domingo, 9 de março de 2025

Ecologia profunda

 Publicado no Jornal da Manhã em 11/03/2025.

O tema da Igreja Católica para a Campanha da Fraternidade de 2025, iniciada na quarta-feira de cinzas, é “Fraternidade e Ecologia Integral”. Este tema remete ao conceito de “ecologia profunda”, cunhado pelo filósofo norueguês Arne Næs em 1972, e que se opõe à “ecologia rasa”. Mais recentemente, a ecologia profunda tem sido defendida, entre outros, por Fritjof Capra e, entre nós, Leonardo Boff; autores que têm nos incitado a refletir sobre os rumos atuais da civilização. Rumos que têm nos conduzido para a aguda crise não só ambiental, mas também socioeconômica, ética e religiosa que vivemos hoje.

A crise é profunda. Campanhas de plantio de árvores, redução de descartáveis, coleta seletiva ajudam, mas são rasas. É como o fumante inveterado, que fuma dois maços de cigarro por dia, e ao final do dia toma uma colher de xarope para tentar limpar os pulmões. Colocar em prática a ecologia profunda implica questionarmos o antropocêntrico sistema de vida que tem nos sido imposto por um bombardeio incessante de propaganda para que consumamos sempre mais. Para que continuemos a fazer crescer o lucro das grandes corporações e de seus donos e acionistas. Como diz Pepe Mujica, antes os trabalhadores lutavam para reduzir a carga de trabalho de 44 horas semanais; hoje os trabalhadores precarizados têm dois ou três empregos diferentes, e vivem o afã de trocar de carro, de comprar o segundo carro, ter uma moto, trocar o celular, o computador, comprar o eletrodoméstico supérfluo, trocar a roupa e o calçado que saíram da moda...

Somos hoje a “civilização do consumo”. E também das desigualdades, do abandono da fraternidade. Há muitos empobrecidos no mundo, que mal conseguem consumir o suficiente para ter assegurada a alimentação. São os explorados que sustentam o desarrazoado nível de consumo – e desperdício – daqueles que estão no alto da pirâmide social.

O afã do consumismo fere profundamente a Mãe Terra que nos supre. Ela já não dá conta de repor ou recuperar, com os processos naturais, aquilo que temos consumido e/ou degradado. Isso já acontece até com o ar e a água, os bens prioritários de que depende a vida. Mas vale também para o solo agricultável, o alimento saudável, o ambiente harmonioso e pacífico que nos inspira pertencimento e saúde emocional.

Pensar em ecologia profunda nos obriga repensar os princípios e valores que uma minoria de megaempresários ensandecidos pelo lucro e poder impõem a uma grande maioria atordoada pelo bombardeio de uma sofisticada tecnologia de propaganda e (des)informação. Ela nos incute desejos, convicções e atitudes antropocêntricas, ou, pior ainda, androcêntricas – aquelas fundadas no macho. Viver a ecologia profunda é voltar a comungar com a Mãe Terra, como o fazem os povos originários sobreviventes, que compreendem que o bem-estar do ser humano depende de enxergar que ele faz parte da natureza, e não é seu dono, um perverso dominador e explorador.

A civilização atual tem se comportado como o irreverente adolescente que, deslumbrado com o vislumbre da autonomia e da liberdade, desafia e mesmo agride e mata a Mãe Terra, quando ela procura mostrar-lhe que a sobrevivência e a evolução impõem a compreensão de que existem limites a serem respeitados perante a natureza.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Cinema, Oscar, entretenimento, política


Talvez a palavra “cultura” também devesse estar presente no título acima. Ele poderia ser então “Cinema, Oscar, entretenimento, cultura, política”. Penso que cada um de nós ordenaria essas palavras de uma maneira diferente. Talvez o ideal fosse “Cultura, cinema, entretenimento, Oscar, política”? A cultura não expressa algo mais vasto, denso e duradouro do que aquilo que expressam as outras palavras?

Vamos começar pelo cinema. Nestes dias, no mundo e talvez especialmente no Brasil, o cinema e sua grande premiação, o Oscar, são as grandes vedetes. Sem dúvida, o cinema é uma expressão da cultura. Walter Salles, o diretor do magnífico “Ainda estou aqui”, que acaba de ganhar o Oscar de melhor filme internacional, em entrevista após a premiação declarou que o filme é um humano alerta de uma mulher guerreira que resistiu a um desumano crime da ditadura. Sua resistência evoca a necessidade da lembrança para enfrentar a tentativa de esquecimento que ameaça a democracia, no Brasil, nos EUA e no mundo. O diretor também afirma que a premiação do filme é uma vitória da cultura brasileira.

A premiação do filme traz implícita uma mensagem em favor da justiça e da democracia; é um sinal de dignas intenções do Oscar, concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, sediada em Los Angeles, EUA. Ainda bem que o meio artístico resiste demonstrando intenções dignas. Nem sempre as intenções da Academia são tão dignas. Devemos lembrar que a produção cinematográfica de Hollywood é uma das principais armas de propaganda internacional do modo de vida estadunidense, fundada no “destino manifesto”, que cria a ilusão do glamour, da justiça, da democracia e da defesa dos direitos humanos do país que é o principal agente das tiranias, injustiças e guerras de dominação pelo mundo afora.

Walter Salles também disse que a premiação de “Ainda estou aqui” quebra a barreira da política binária. Creio que ele esteja querendo dizer que a profundidade do humano está além da polarização ideológica. O drama e a resistência de uma família arbitrariamente subtraída da presença do estimado pai é uma mensagem mais comovente e eficaz contra a violência do totalitarismo e da intolerância.

O cinema não é só entretenimento, passatempo sem outros propósitos. Sim, cumpre também esse papel. Mas parece que, cada vez mais, por detrás da simples diversão há sempre uma mensagem sub-reptícia, sutil, aliciando-nos a consumir uma mercadoria, um serviço ou uma ideologia. Há quem veja no moreno e inescrupuloso Scar, o irmão do rei leão Mufasa, e nas hienas suas comparsas uma alegoria estigmatizante dos não brancos, os ameríndios, os afrodescendentes e latinos. Estes, tal como Scar e as hienas, seriam os sabotadores do suposto reino de bem-estar dos brancos.

Felizmente, em contrapartida há os filmes e documentários que têm a intenção justamente de nos alertar para as armadilhas do sistema, da mídia e do cinema. Entre estes, destaco “Não olhe para cima” (direção Adam McKay, de 2021), que é uma bem humorada crítica do negacionismo e da despudorada má-fé dos oportunistas de plantão, travestidos de benfeitores da humanidade. Este filme não levou nenhum Oscar.

E a política? Política está em tudo, está no cinema. Até quem diz que não discute política, está assumindo uma postura política. Das piores. Já foi dito: “pior do que aqueles que praticam o mal são os omissos”. Quem ainda não compreendeu isto precisa ler o poema “O analfabeto político”, de Bertolt Brecht.

domingo, 2 de março de 2025

TVI – Transtorno da Voracidade Insaciável

  Publicado no Jornal da Manhã em 06/03/2025.

Não, não se trata da voracidade alimentar. Se bem que ela também ande merecendo boas reflexões sobre suas causas e consequências, para a saúde pessoal e social. Também não se trata de algum quadro clínico descrito por psicanalistas ou profissionais de saúde, pelo menos não que eu saiba. Trata-se sim de uma invenção para dar pretexto para abordar uma doença que parece estar acometendo nossa civilização, cada um de nós: a insaciável voracidade de poder, notoriedade e de ganho financeiro ou material.

Vendo o livro “O despertar de tudo – uma nova história da humanidade” (de David Graeber e David Wengrow, Companhia das Letras, 2021), nos convencemos que há muito tempo o desenvolvimento da inteligência e da sofisticação humanas vem acompanhado do crescimento do TVI. Muito agudamente, desde pelo menos 10.000 anos atrás, quando a agricultura, a irrigação, as primeiras cidades propiciaram os excedentes de grãos e a noção de propriedade. Desde então, estoques e cultivos significaram posses a negociar, ou bens alheios a serem saqueados.

Os autores mostram que até menos de dois séculos atrás, antes da conclusão do extermínio ou total catequese das culturas nativas ameríndias, ainda existiam sociedades que não conheciam o dinheiro, e estranhavam como os invasores europeus precificavam bens essenciais à sobrevivência da comunidade. Já na nossa civilização globalizada, ficamos na dúvida se o ar puro e a luz solar também já não estejam sendo precificados. De resto, tudo já o foi.

10.000 anos pode parecer-nos muito tempo, mas diante da evolução das espécies, inclusive do autodenominado Homo sapiens, não é. Nossos ancestrais são reconhecidos como tal desde cerca de 300.000 anos atrás. É como se fosse o último ano de quem já viveu outros 30. Mas mudamos demais nestes últimos 10.000 anos. Mudamos nas coisas que inventamos. Será que mudamos na estrutura emocional e psíquica, na capacidade de discernimento, naquilo que é de verdade necessário para que uma população de mais de oito bilhões de seres seja capaz de sobreviver, sem destruir os suportes à vida que o planeta é capaz de suprir e sem nos autodestruir?

Temos aprendido com o tempo, temos nos adaptado. O TVI é só um sinal de que estamos sempre nos reequilibrando diante de desajustes que nós mesmos, a humanidade, criamos. A inescapável obrigação das espécies estarem em constante busca do equilíbrio consigo mesmas e com o meio que habitam. Senão, fenecem, extinguem-se. Dão lugar a novas espécies, melhor adaptadas. Será que seremos capazes de superar o TVI?

O Homo sapiens tem uma singularidade, celestial e infernal, que o distingue das demais espécies: a engenhosidade. Inventamos incomparavelmente. Coisas para salvar, libertar, destruir, dominar. Tudo transformado em coisas para mercadejar. Temos engenhosidade, nos falta a inteligência de saber usá-la. Por enquanto, o TVI tem nos conduzido às muitas crises atuais: ambiental, sanitária, política, social, econômica, ética, religiosa... A humanidade está doente. Nós, seres humanos, estamos doentes. Todos nós, alguns mais, outros menos, somos portadores do TVI. Não é só a avareza dos bilionários, é também a corrupção e a desonestidade disseminadas, o hiperconsumismo, o desperdício, o imperialismo, a beligerância, o fundamentalismo, a intolerância, a soberba, o narcisismo...

Oxalá sejamos capazes de nos curar do Transtorno da Voracidade Insaciável.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Crise hídrica e código de águas em Ponta Grossa

 Publicado no Jornal da Manhã em 21/02/2025 e no portal D'Ponta News em 22/02/2025.

O que temos visto em Ponta Grossa é uma vergonha: chuvas acima da média em 2025, temperaturas elevadas também acima da média, racionamento da água via rodízio entre os bairros, diretores da Sanepar alegando que a empresa não tem culpa nenhuma, o clima é culpado de tudo. Enquanto isso, discute-se sem nenhuma transparência a privatização da empresa, cujos contratos foram estendidos até 2048; e seguem as obras do novo manancial do Rio Tibagi, que deveriam ter sido concluídas em 2022. Um imbróglio típico de acordos onde prevalece o interesse privado, não o coletivo.

Fala-se então em medidas emergenciais. Já é hora que medidas responsáveis, de longo alcance, sejam tomadas. A realidade da cidade e da conjuntura de emergência climática que já adentramos precisa ser levada em consideração. Picos de calor como o atual, estiagens prolongadas e mesmo chuvas excepcionais concentradas, capazes de danificar os sistemas de captação, tratamento e distribuição, serão cada vez mais frequentes e inevitáveis.

A cidade cresce, expande-se territorial e verticalmente, a população consome mais água. E as redes de distribuição são cada vez mais complexas e sujeitas a problemas. Mas há características ambientais de Ponta Grossa que têm sido ignoradas quando do enfrentamento da questão da água e das crises hídricas: a primeira, é que estamos numa cidade onde em média chovem mais de 1.500 mm por ano, mais ou menos bem distribuídos, não há mês “seco”; a segunda é que estamos sobre o Aquífero Furnas, um manancial subterrâneo que produz água de boa qualidade, em quantidade; há ainda o Aquífero Itararé, menos importante que o Furnas, mas adequado em algumas situações.

Urge que a cidade tenha um “código de águas”, que deve cumprir várias funções. Algumas delas são: estimular e disciplinar o uso da água da chuva, principalmente por estabelecimentos como postos de serviços automotivos, indústrias, condomínios e outros; estimular e disciplinar a explotação da água subterrânea do Aquífero Furnas; disciplinar o uso da terra na região de afloramento do Arenito Furnas a leste da cidade, que é a área de recarga do Aquífero Furnas, o manancial subterrâneo, diferente da bacia de captação, que é o manancial superficial; introduzir nos códigos de obra dos bairros da cidade questões relativas ao uso da água da chuva e dos mananciais subterrâneos.

Os aquíferos, como o Furnas e o Itararé que ocorrem na cidade, são potenciais bons produtores de água, com algumas vantagens: os poços podem ser perfurados no local de consumo, dispensam redes de distribuição; a água é de boa qualidade, amiúde classificada como “água mineral natural”, dispensa tratamento; são reservatórios subterrâneos acumulados ao longo de milênios, não dependem da chuva num dado momento. Mas os aquíferos têm uma vulnerabilidade: não podem ser poluídos. Se o forem, sua recuperação é praticamente impossível. Por isso é essencial a proteção das áreas de recarga. Da mesma forma, os poços devem ser geridos de modo a evitar a poluição e a depleção pela superexplotação.

Temas a serem abordados no “código de águas” da cidade.