sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

O verdadeiro desafio da crise

 Publicado no Jornal da Manhã em 18/03/2021.

Um consenso atual é que estamos em crise. Ambiental, econômica, sanitária, política, social. Estão também em crise as religiões, os valores éticos e morais. Tememos o futuro, estamos desesperançados, fazemos guerra por motivos econômicos, religiosos, étnicos, políticos e por não suportarmos a paz. Em suma, a civilização está em crise. Não é uma constatação pessimista, é uma realidade. Que nos faz pensar em oportunidade de encontrar novos caminhos, mais adequados para o presente estágio de evolução da humanidade, superpopulosa e com tanta tecnologia e conhecimento.

Por certo transformar a crise atual em um passo evolutivo não vai ser tarefa fácil. Vai ser um árduo desafio, que vai colocar à prova a capacidade de avançarmos na evolução. A pandemia de Covid-19 está agudizando questões essenciais: economia ou meio ambiente, saúde e vida; educação e trabalho presencial ou virtual; estatização ou privatização? Por trás destas questões mais evidentes, outras mais nebulosas: os seres humanos acreditam ou não na ciência; são naturalmente individualistas, ambiciosos e egocêntricos ou são capazes de ser cooperativos e solidários; somos seres realmente sociais, no sentido mais amplo da palavra, ou somos egoístas, prepotentes, agressivos, enfim, fascistas e ditatoriais?

O sistema econômico segregacionista, injusto, elitista e promotor da exclusão, o meio ambiente explorado à exaustão, comprometendo a capacidade de sustentar a vida, as guerras infindáveis, as recorrentes pandemias, os sucessivos golpes obscurantistas que reinstalam governos tirânicos e fascistas, tudo é resultado da natureza humana, que se manifesta na sociedade, na civilização que vivemos. Não é algo peculiar de um povo ou país, é global. Só para citar alguns exemplos recentes, Itália, Rússia, Alemanha, Espanha, Portugal, Israel-Palestina, Chile, Camboja, Ruanda, EUA, Brasil... A lista é enorme, independente da situação econômica e cultural dos países. A origem dos problemas é o ser humano, as crises só o refletem.

O desafio somos nós, os seres humanos. Temos como superar a agressividade, o egoísmo, expressões instintivas de nosso cérebro reptiliano, e evoluir para algo mais civilizado? Por certo que temos! O cérebro límbico (dos mamíferos) e o neocórtex (dos humanos) já nos capacitaram o afeto para cuidar da prole e a racionalidade para nos comunicarmos, calcularmos, planejarmos, inventarmos.

Muitos já afirmam que a hipófise, a glândula relativamente pequena situada na base do cérebro, constitui o correlato encefálico da criatividade, liberdade, compaixão, intuição, clarividência, espiritualidade, altruísmo. Parece então que, se a evolução do réptil para o mamífero dependeu do crescimento do cérebro límbico, a evolução do mamífero para o humano atual dependeu do crescimento do neocórtex, então a evolução do humano atual para o humano evoluído dependeria do avanço da atividade e das manifestações da hipófise.

Ao que tudo indica, o progresso da manifestação da hipófise e o surgimento do novo humano é questão de tempo, uma regra evolutiva. Resta saber se nossos recalcitrantes instintos reptilianos não vão truncar bruscamente a evolução natural.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Obsolescência mentirosa

 

Outro dia falei da obsolescência coercitiva, que vem somar-se aos dois tipos mais conhecidos, a obsolescência perceptiva e a programada. Repensando os momentos em que me vi induzido a consumir sem necessidade, lembrei de outro caso, que vou chamar de “obsolescência mentirosa”.

Aconteceu ano passado na concessionária onde fui levar para revisão meu Fox 2015. Baixa quilometragem, o carro é para uso urbano, anda pouco. Ótimo carro, compacto mas espaçoso, funcional, sólido, versátil, econômico, ágil, dócil direção elétrica, motor eficaz, linha sóbria e elegante, equipamentos úteis e lúcidos. Padrão alemão! Mas, o atendimento na concessionária enxovalha todos os possíveis atributos do carro.

Estranhei que o consultor técnico que costumava me atender não estava mais por lá. Gostava dele. Trocava ideias comigo, perguntava onde eu tinha feito serviços alternativos muito mais baratos, ficou curioso ao saber que eu ministrava aulas de sustentabilidade, perguntava a respeito. Sugeria serviços no carro, mas tinha o cuidado de dizer o que ele pensava ser essencial, e o que podia ser adiado. Perguntei ao novo consultor por que motivo o meu conhecido não estava mais por lá, ouvi em resposta que ele tinha tido “problemas nervosos”.

Então, que seja. Deixei-me ser atendido pelo novo consultor. Era para fazer uma revisão simples do carro, troca de óleo e alguns itens menores, de desgaste mais frequente. O homem começou então uma minuciosa inspeção no Fritz (o nome do Fox). Olhou os pneus, enfiou nos sulcos um gabarito na forma de um cartão plástico, mostrou-me que a borda da banda de rodagem concordava com uma tarja vermelha no gabarito:

─ Tá vendo a tarja vermelha? Tá na hora de trocar os pneus!

Reparei que ele tinha enfiado o cartão no sulco justamente sobre o ressalto que tem a função de indicar a hora da troca. Faltava muito para o pneu ficar careca, a banda de rodagem ainda estava muito acima do ressalto (que aprendi agora chamar-se TWI, Tread Wear Indicator). Mas, insatisfeito, o consultor abriu o capô do motor, e disparou:

─ Precisa trocar o tambor do líquido de arrefecimento... E também o do fluido de freio.

─ Por quê? Estão danificados?

─ Estão manchados, impedem a visualização do nível dos líquidos.

Espiei os recipientes, de fato eles tinham manchas, que dificultavam mas não impediam a visualização do nível. Não autorizei as trocas, nem dos pneus nem dos tambores. Foram feitos só os serviços de manutenção usuais, que eram na verdade os únicos necessários.

Nas semanas seguintes aguardei o rotineiro contato do serviço de atendimento ao cliente, pretendia falar do consultor que tentara me empurrar itens desnecessários, inclusive sendo desonesto na avaliação do desgaste dos pneus. Nunca me contataram. Tentei fazer uma reclamação diretamente no sítio da fabricante, também não consegui.

Para a próxima revisão, vou tentar achar o lugar onde trabalha agora aquele antigo consultor meu conhecido. Imagino de quais “problemas nervosos” ele possa ter sido vítima.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Obsolescência coercitiva

 

Fala-se em dois tipos de obsolescência: a programada e a perceptiva. A programada é, por exemplo, a lâmpada feita para durar mil horas, quando poderia durar dez mil. Ou os equipamentos de informática e smartphones com fontes, baterias, encaixes que não conversam com gerações mais novas, outras marcas ou periféricos. O melhor exemplo da obsolescência perceptiva é a moda. A propaganda, replicada pelos por ela doutrinados, nos induz a acreditar que a roupa, o sapato, o celular, o carro que temos, e que ainda está muito bom, saiu de moda, é ultrapassado, obsoleto, faz-nos passar vergonha, tem que ser trocado pelo do ano ou da estação.

A obsolescência é uma artimanha do desenfreado consumismo atual. Dizem que sem as trocas frequentes as fábricas iriam à falência, desempregos, crise social... Será? Os críticos do desperdício afirmam que não podemos continuar com o presente consumo de recursos naturais; o planeta está à beira da exaustão, em breve será o colapso. Os mesmos críticos afirmam que a suposta crise econômica e social que viria da queda de consumo é uma falácia para preservar os lucros escorchantes de uma ignóbil elite econômica. Haveria trabalho e renda suficiente para todos se setores tais como alimentação, saúde, educação, justiça, moradia, lazer, cultura, transporte fossem priorizados. Para funcionar bem, estes setores demandam ainda muita gente empregada.

Mas semana passada fui vítima de um outro tipo de obsolescência. Vou chamá-la “obsolescência coercitiva”. Ela me foi imposta, sem apelação. Sou conservador com meus bens, minha impressora tem já quinze anos, mas vinha funcionando muito bem para minhas necessidades. De repente, o drive da impressora parou de funcionar. Tenho o disco de instalação, reinstalei-o, não adiantou. Tentei de tudo, sem resultado. Pesquisando na web, fiquei sabendo que a fabricante, uma transnacional bilionária, deu um jeito safado de tornar inoperantes as impressoras antigas. Alegam que um certo dispositivo do aplicativo tornou-se incompatível com a indústria atual, e informam meios alternativos de fazer a impressora funcionar. Tentei todos eles, nenhum funcionou. Convenci-me que tais “meios alternativos” não passam de uma empulhação, para não assumir que as impressoras antigas foram transformadas em sucata tecnológica.

Ora, tenho a impressora em bom estado, o disco original de instalação do drive e não consigo fazê-la funcionar! Por certo o supressor do drive foi instalado à minha revelia via acesso à web. Numa das “atualizações” involuntárias que o sistema periodicamente realiza no meu desktop. Ou seja, a obsolescência coercitiva não é só obra da gigante fabricante da impressora, conta com a cumplicidade da gigante dos sistemas operacionais. É um poderoso conluio para obrigar-nos a consumir.

Felizmente, tão conservador que sou, tenho também o laptop com a mesma idade da impressora, que hoje para mim funciona quase como uma boa máquina de escrever. Os dois por certo conversarão, na sua velha e fiel linguagem, ainda imune aos golpes mercadológicos, cada dia mais comuns.