domingo, 29 de março de 2020

O coronavírus e o Brasil


 Publicado no Jornal da Manhã em 26/03/2020.
No Brasil o coronavírus está fazendo das suas. Aqui a crise na saúde soma-se à crise política, econômica, civilizatória. A começar da enxurrada de besteirol nas redes sociais. Como nosso povo é pobre, de espírito, de linguagem, de discernimento! Instalou-se mais uma polarização entre dois extremos. Nunca ficou tão claro que a polarização é a medíocre realidade de quem não quer ou não é capaz de ponderar. Assume posições extremas como dogmas, como o beato de fé cega submete-se sem refletir.
De um lado temos a histeria do povo que lota supermercados, as filas de vacinas contra a gripe, o entulho das redes sociais. A pandemia parece ser o fim do mundo. Uma contradição típica do pânico insano. Estão apavorados, ao invés de isolarem-se juntam-se à multidão ensandecida para depois, contaminados, poderem talvez isolar-se.
De outro lado o brado de desvario do dinheirismo levado ao extremo da canalhice: ─ É uma gripezinha. Não podemos nos assustar com ela. Não podemos parar de trabalhar. Ou o mercado não vai resistir. A economia não vai resistir. ─ Há uma verdade clara e cruel nestas afirmações: o vírus vai provocar uma crise econômica sem precedentes, talvez com consequências mais agudas que o próprio vírus. E uma verdade oculta: o mercado é mais importante que a vida das pessoas, principalmente aquelas vítimas potenciais do vírus, os idosos, os vulneráveis, os miseráveis. É o dinheiro mais importante que a vida.
Mas esta pandemia tem seus caprichos. Ameaça também o vovô, a vovó, o tiozinho excêntrico e o priminho franzino das famílias da elite econômica. O medo alastra-se por todas as classes sociais, ainda que tenha suas preferências. Comparado com outros flagelos, como a fome, a insegurança, o desemprego, a discriminação, o vírus até pode ser considerado imparcial. Veremos se também vai ser imparcial o tratamento dos casos agudos nos hospitais públicos e privados.
Certo que a crise econômica desencadeada pelo vírus vai trazer o risco de mais sacrifícios, talvez mais mortes, vítimas da miséria e da violência. Mas uma consequência benéfica do vírus que muitos já têm ressaltado é que talvez a crise econômica nos obrigue a rearranjos mais solidários e mais lúcidos na ordem e na consciência mundial. Talvez a humanidade evolua desta civilização da desigualdade, da iniquidade, da competitividade, da locupletação de uns poucos à custa da miséria de muitos, do consumo desvairado ao preço do desequilíbrio do planeta.
E quem brada em defesa do mercado e da economia parece considerar que as mortes sejam um dano colateral inevitável, um pequeno sacrifício em nome de tudo continuar como tem sido, de uma ideia de progresso baseada em estatísticas e não no bem estar social.
No fundo, é o brado de quem não quer ser apeado de um governo que já se mostrava desorientado antes da crise, e agora, com o vírus, revela seu completo desvario.

quarta-feira, 25 de março de 2020

A praga dos fraquejados



─ Patrão, a praga já se espalhou pelas fazendas vizinhas. Até na nossa matriz do Norte. Muita gente doente, e muitos mortos. Pararam tudo, não tem mais plantio, não tem mais colheita, não tem mais secagem de grãos, não tem mais comércio.
─ Tão exagerando. Como é possível? Acho que tão mentindo. É coisa desse pessoal abolicionista. Assim não vai ter safra. Vão se arruinar! Se não trabalham, o que é que andam fazendo?
─ Estão trancados em casa, tentando evitar o contágio. Mas a praga é ladina, não dá pra saber quem está disseminando. O cabra parece são, está contaminado e contaminando.
─ E os patrões de lá? Também estão trancados em casa?
─ Estão, mais que o povo. A praga não tem compostura. Acomete o lacaio e o patrão do mesmo jeito. Ainda bem que os hospitais, na hora de internar os casos mais graves, selecionam.
─ Ah, ainda bem. Diante de tanta insolência, pelo menos isso. Mas não resolve a interrupção na produção e no comércio. Vão quebrar. Tem que trabalhar. Os que se recusarem a trabalhar por medo, é rua com eles. Tem muitos outros que estão querendo o seu emprego.
─ Acho que lá os patrões estão apostando que tudo passa logo. A malta tá em pânico, correndo aos mercados, os patrões estão vendendo os estoques, estão fazendo gordura econômica pra aguentar os próximos meses, até que tudo volte ao normal.
─ Será que volta ao normal? Se o mercado quebra, minha liderança vai junto.
─ Vai voltar. É preciso comer, é preciso viver. A vida continua. Apesar dos mortos.
─ Ah, os mortos! São na verdade os mais velhos, os já doentes, os mais pobres. Não têm valor no sistema produtivo. Não produzem, pouco consomem. São descartáveis. A praga está nos fazendo um favor, livrando-nos de um fardo social sem ter que carregar isso na consciência. Nem é preciso acabar com a saúde pública.
─ É verdade! Então talvez seja mesmo melhor não fazermos quarentena nenhuma. A praga vai fazer um expurgo, uma limpeza natural. Vamos nos livrar de um peso econômico, os velhos e os fracos. Só fazem lotar os hospitais, são uma sangria no nosso orçamento. Mas a praga também mata os velhos das famílias dos patrões.
─ Damos um jeito. Os patrões podem internar seus velhos nos hospitais da rede privada. Vamos providenciar isso aí. E tá na hora de entendermos que lugar de velho é mesmo no cemitério. São um estorvo.
─ Então não vamos fazer quarentena?
─ Não! Pelo contrário. Vou pessoalmente estimular as grandes multidões, vamos disseminar a praga, quanto mais doentes melhor. E vamos punir quem alegar questões de saúde pra não querer trabalhar. Vamos demitir, vamos cortar salários...
─ Mas patrão, não receia que a praga fuja de controle, mate mais gente do que as previsões?
─ Isso seria bom pro mercado, pra economia. Ia ser um sacrifício desprezível pelo bem da saúde do mercado. Ia melhorar a taxa de emprego, o PIB per capita...
─ Saúde do mercado?
─ É claro, é isso mesmo! A saúde do mercado é que importa. A saúde do povo depende dela. Só não podemos deixar que o povo enxergue isso. Vamos insistir que é só uma gripezinha.
─ Não tem medo de pegar essa praga?
─ Eu não! Isso não! Não tem praga que me pegue nesse mundo de fraquejados!

quarta-feira, 18 de março de 2020

Rumo ao colapso

Texto extraído do sítio https://aterraeredonda.com.br/rumo-ao-colapso/ (14/03/2020) postado aqui no Perrengas pela relevância: estaria Trump, no seu desespero eleitoral, planejando envolver o Brasil e seu insano governo numa guerra contra a Venezuela?
Por José Luís Fiori e William Nozaki*
Hoje, a única dúvida que nos resta é se o desastre à frente assumirá a forma de uma estagnação prolongada, acompanhada da destruição da indústria e de seu mercado de trabalho, ou a forma pura e simples de um colapso, com a desintegração progressiva da infraestrutura, dos serviços públicos e do próprio tecido social
Basta ligar dois pontos para desenhar uma reta. No caso da economia brasileira, são muitos pontos numa mesma direção, apesar de que as autoridades insistam em desconhecê-los, iludindo-se com a ideia de uma “retomada” que nunca existiu e nunca esteve no horizonte. Tudo isso muito antes e independentemente da epidemia de coronavírus, da guerra de preços do petróleo e da recessão mundial que deverá ocorrer, uma soma que irá piorar bastante a situação.
Hoje, a única dúvida que nos resta é se o desastre à frente assumirá a forma de uma estagnação prolongada, acompanhada da destruição da indústria e de seu mercado de trabalho, ou a forma pura e simples de um colapso, com a desintegração progressiva da infraestrutura, dos serviços públicos e do próprio tecido social.
Tudo isto se reflete no crescimento pífio do PIB brasileiro dos últimos três anos, mas muito mais ainda no declínio continuado da taxa de investimento da economia, que era de 20,9% em 2013, e que hoje é de 15,4%, a despeito do golpe de Estado, da reforma trabalhista, da reforma da previdência e das privatizações. Ao contrário do prometido, a economia não só não cresceu, como aumenta a cada dia a “fuga de capitais”, que nos últimos três meses já é maior do que em todo o ano de 2019.
A esperança depositada nos investidores internacionais também esmaeceu com a notícia de que, em 2019, o Brasil simplesmente desapareceu do Índice Global de Confiança para Investimento Estrangeiro, da consultoria americana Kearney, que indica os 25 países mais atraentes para os investidores internacionais. O mesmo índice em que o Brasil ocupava a 3a posição nos anos de 2012 e 2013, tendo caído para o 25º em 2018, e do qual foi simplesmente eliminado na hora das grandes reformas ultraliberais de Paulo Guedes, que supostamente iriam atrair os grandes investidores internacionais.
Este quadro só tende a piorar com a nova crise econômica mundial que se anuncia, com o avanço da pandemia do coronavírus e com o início de uma nova guerra de preços na indústria do petróleo. As agências financeiras privadas e os organismos internacionais já estão prevendo uma redução do investimento global na ordem de 15%, e uma queda do PIB mundial na ordem de 1,9%, com a possibilidade de uma recessão mundial no primeiro semestre de 2020, que pode prolongar-se no segundo semestre, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Neste momento, o que predomina é o pânico e a incerteza, mas o pior ainda pode estar por vir.
Tudo isso coincide com o período das eleições presidenciais norte-americanas, na qual Donald Trump busca a reeleição. Desde agora, bem no início da crise que se anuncia, o presidente americano parece que já está perdendo apoios, segundo pesquisa publicada pelo jornal Financial Times. E é exatamente aqui que pode estar se gestando a grande “tentação” do presidente Trump e que poderá se transformar numa catástrofe para a América Latina nos próximos meses. Afinal, é nessas horas, sobretudo no caso de um presidente americano que busca sua própria reeleição, que é comum a aposta em alguma inciativa de “alto teor” explosivo, como é o caso de guerras ou ações militares que façam esquecer a agenda desfavorável e que sejam capazes de mobilizar o sentimento comum de identidade nacional e patriotismo dos norte-americanos.
O problema é que o “menu de alternativas” à disposição do presidente Donald Trump é bastante limitado, e parece que só existe uma opção capaz de unificar o establishment norte-americano, cooptando inclusive as principais lideranças do Partido Democrata, qual seja, o cerco, o bloqueio naval ou o ataque direto à Venezuela, em tempo de driblar a epidemia, a recessão e a crise de sua indústria do petróleo.E foi exatamente isto que Donald Trump anunciou no seu discurso sobre o Estado da União, frente ao Congresso Americano, mesmo sem entrar em detalhes. Devendo-se anotar que este foi o único momento em que ele foi aplaudido de pé, e em conjunto, por todos os congressistas, republicanos e democratas.
É exatamente aqui, na preparação dessa operação militar americana, que se inscreve a encenação do jantar do presidente Trump na sua casa de praia, com seu vassalo brasileiro, que ele despreza de forma visível, mas que vem lhe entregando sem contrapartida tudo o que lhe é solicitado – inclusive o novo acordo militar RDT&E, que deverá servir de “guarda-chuva” para todas as ações militares conjuntas no futuro próximo, incluindo o tensionamento com a Venezuela. Trata-se de um Acordo que começou a ser negociado logo depois do Golpe de Estado de 2016, pelo Departamento de Defesa dos EUA em conjunto com o Ministério de Defesa do Brasil, e que acaba de ser assinado pelos representantes brasileiros, de forma emblemática, diretamente com o Comandante Craig Faller, chefe do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA para a América Latina e o Caribe.
Na ocasião da assinatura, o Almirante Craig declarou: “assinamos um acordo histórico hoje, que abrirá caminho para o compartilhamento ainda maior de experiências e informações. Trabalhamos muito próximos das nações aliadas”, além disso fez referências explícitas à Venezuela e à Bolívia (ver jornal Valor econômico de 08 de março de 2020).
É interessante chamar atenção para o papel do General Braga Neto, que participou das negociações deste Acordo e que depois foi Comandante do Estado Maior do Exército brasileiro, antes de assumir recentemente a Casa Civil da Presidência da República, colocando-se ao lado do general Luiz Eduardo Ramos, que era o Chefe do Comando Militar do Sudeste e hoje ocupa a Secretaria do Governo, como cabeças visíveis de um governo “paramilitar” que já conta com 2.897 integrantes das FFAA, alocados em inúmeros órgãos da administração pública federal, muito mais do que durante toda a ditadura militar de 1964 (segundo noticia o Portal 360).
Além disso, do ponto de vista econômico, merece atenção neste período recente a forma como a política e os gastos da Defesa têm crescido, na contramão da política econômica ultraliberal do Ministério da Economia. Basta dizer que foi exatamente no período recente de 2019-2020 que o Ministério da Defesa brasileiro teve seu maior orçamento histórico, R$ 115 bilhões em média. E só a Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), vinculada à Defesa e à Marinha, foi capitalizada em R$ 7,6 bilhões, passando por um projeto de revisão de sua atuação e escopo que lhe permite coordenar e executar projetos estratégicos não apenas da Marinha, mas também do Exército e da Aeronáutica.
Seguindo esta linha, cabe sublinhar que o próprio acordo RDT&E, parece ter sido apenas um passo a mais de uma estratégia que já passou por outros acordos anteriores com as FFAA norte-americanas, como é o caso do Master Information Exchange Agreement (de troca de informações tecnológicas militares), o Acquisition and Cross-Servicing Agreement (de apoio logístico e de serviços militares) e o Space Situational Awareness (de uso do espaço exterior e aéreo para “fins pacíficos”).
Vários movimentos militares que parecem convergir e coincidir com o documento divulgado recentemente pelas FFAA, no qual elas definem, a partir de seu próprio arbítrio, os cenários da política de defesa brasileira até 2040, com a escolha da França como principal inimiga estratégico do Brasil. Uma escolha que surpreendeu aos menos avisados, mas que parece perfeitamente coerente com o objetivo central e imediato da preocupação das FFAA brasileiras, que é a Venezuela, e agora também a Guiana, devido a sua descoberta recente de imensas reservas de petróleo off-shore.
Além disso, a escolha da França como principal inimigo facilita a provável denúncia futura do acordo de cooperação militar do Brasil com a França, em torno da construção do primeiro submarino nuclear brasileiro, que provavelmente será substituído por um novo projeto conjunto com os próprios Estados Unidos. É dentro dessa mesma perspectiva que se deve enquadrar também o acordo já assinado com os EUA de liberação do lançamento de foguetes e satélites na Base de Alcântara, de venda da Embraer para a Boeing, de transformação do Brasil em aliado preferencial extra-OTAN, o que significa, no limite, a transformação progressiva do Brasil em um “protetorado militar” dos EUA.
Mais ainda, é dentro dessa mesma “ofensiva final” contra a Venezuela, anunciada pelos Estados Unidos e apoiada pelo Brasil, que se pode entender a nomeação do General Mourão para o comando unificado do Conselho da Amazônia, do qual foram excluídos todos os governadores civis da região, que assim ficam afastados de todo tipo de informação e decisão, inclusive na eventualidade de que que o Brasil seja convocado pelos norte-americanos para garantir o cerco amazônico da fronteira venezuelana. Uma situação que parece cada vez mais exequível depois que o Brasil retirou seus diplomatas e cônsules das cidades fronteiriças da Venezuela, e depois que o governo brasileiro notificou vários funcionários e diplomatas venezuelanos de que devem abandonar o território brasileiro no prazo de 60 dias. Uma ruptura diplomática sem precedentes, que só costuma ocorrer em caso de escaladas militares ou de preparação para a guerra.
Dadas as características próprias da sociedade americana, não é impossível que essa ofensiva militar – muito provável – possa “salvar” a eleição de Donald Trump, numa conjuntura de forte recessão econômica. O mesmo se pode dizer com relação ao governo “paramilitar” brasileiro, que poderia passar a governar por “decreto” e por cima do Congresso Nacional, em caso de uma “emergência de segurança nacional” desse tipo. No entanto, se o Brasil quiser obedecer e seguir atrás dos Estados Unidos, os responsáveis por tal insensatez devem ter claro para si que estarão entrando em um tipo de conflito internacional do qual o Brasil nunca participou, envolvendo de forma direta as três maiores potências militares do sistema mundial.
Deve-se ter bem claro, além disso, que o Brasil não dispõe de armamentos, nem de capacidade financeira e logística para enfrentar as forças armadas venezuelanas, a menos que se restrinja ao mesmo papel simbólico, subalterno e pontual que teve ao lado dos Estados Unidos na Segunda Guerra, e na invasão de Santo Domingos, em 1965. Mas, se mais à frente – e isto é muito provável – as FFAA brasileiras receberem e aprenderem a utilizar o armamento americano mais sofisticado que deve lhes ser repassado pelo novo acordo RDT&E, e decidirem utilizá-lo contra um vizinho latino-americano, seria muito importante que esses senhores que pretendem tomar uma decisão de tamanha gravidade, em nome do povo brasileiro, tenham muito claro o que estão fazendo e quais as consequências do seu ato de vassalagem, para o longo prazo da história do Brasil e da América Latina.
Porque eles serão os responsáveis, diante da História, por terem trazido a guerra em grande escala para um continente que foi sempre pacífico, e por terem contribuído com os Estados Unidos para transformar esta região da América do Sul num novo Oriente Médio. Com a diferença que, neste caso, não será concedido ao Brasil o lugar que Israel ocupa na política externa americana. Pelo contrário, o mais provável é que o Brasil se transforme num novo Iraque de Saddam Hussein, que foi usado pelos americanos durante uma década de guerra contra o Irã, e que depois foi destruído pelos próprios Estados Unidos. Quase da mesma maneira com que os Estados Unidos utilizaram os Talibãs na sua guerra contra a URSS, na década de 80, e depois os bombardearam durante 20 anos antes de trazer seus jovens de volta para casa, deixando para trás um Afeganistão completamente destroçado.
*José Luís Fiori é professor titular do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE-UFRJ); pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP)
*William Nozaki é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP)

sexta-feira, 13 de março de 2020

Hipocrisias princesinas



A Sanepar anuncia, e logo seus arautos não se cansam de proclamar, que a cidade de Ponta Grossa (a Princesa dos Campos) é uma das cidades melhor saneadas do País. Será verdade? Se assim é, por que quem conhece os muitos arroios urbanos da cidade sabe que todos eles são esgotos a céu aberto? Por que as análises da qualidade da água do Lago de Olarias, ainda a ser inaugurado, sempre dão qualidade insatisfatória? Por que o Instituto das Águas, no ano de 2015, empenhou-se em rebaixar a categoria dos rios da cidade no que diz respeito à qualidade da água, reconhecendo a incapacidade de mantê-los limpos? Esta grosseira contradição parece querer fazer crer que o cidadão ponta-grossense satisfaz-se com as aparências da imagem da cidade, ainda que falsas.
É possível que o anúncio da Sanepar esteja fundamentado em dados que não correspondem à realidade. É bem possível que a rede urbana de coleta de esgotos seja mesmo uma das maiores do País. Mas numa cidade antiga amiúde os esgotos não estão conectados à rede de saneamento, mas sim à rede de captação das águas das chuvas, que acaba indo parar nos arroios e no Lago de Olarias. Reparar este problema demandaria um minucioso trabalho de investigação de edificação por edificação, para saber se a destinação do esgoto está correta.
Outra aparente marca do conformismo do ponta-grossense com bizarrias é aquilo que pretende ser uma ciclovia na Av. Bispo Dom Geraldo Pellanda em Uvaranas. Que disparate! Sem adequar a largura da via de autos, pintou-se uma estreita faixa à direita sinalizada, no piso e com placas, indicando tratar-se de uma ciclovia. Ironicamente, há placas orientando os motoristas dos autos para distanciar-se um metro e meio do ciclista. Mas se assim o fizer, o motorista vai invadir um metro e meio a faixa à sua esquerda. A pretensa ciclovia é uma empulhação. Uma vergonha para qualquer cidadão, daqui ou de fora, que a vê e se pergunta se os moradores da cidade deixam-se iludir tão grosseiramente.
Bizarrias como essas contaminam o senso do que seja correto de toda a população, cidadãos e autoridades. Os mecânicos da oficina de motos na Carlos Cavalcante não se incomodam de lavar as motos e lançar os efluentes na sarjeta, que vai para a rede pluvial, levando os piores poluentes para as águas que vão encher o Lago de Olarias. O fiscais, apesar de notificados, negligenciam a fiscalização. Os proprietários rurais ignoram, ou fazem que ignoram, os essenciais préstimos ambientais das unidades de conservação nas cercanias da cidade, pois estão deslumbrados com o lucro rápido e altamente impactante. E ainda bravateiam que nas suas propriedades cuidam melhor do meio ambiente que a população da cidade.
Isso tudo configura um conjunto de hipocrisias de uma melindrosa princesa acostumada a falsas aparências em nome de uma imagem enganosa. Como se sabe que era usual na nobreza que não tinha responsabilidade com seus súditos nem seu lugar.
Um povo digno, uma cidade digna, não são edificados sobre imposturas, mas sobre a verdade. Já muito se disse, “a mentira desgasta relacionamentos, a verdade não; a verdade devasta”. Estaremos qualificados para enfrentar os desafios da verdade?

segunda-feira, 2 de março de 2020

“Povo marcado, ê, povo feliz!”

Publicado no Jornal de Manhã em 03/03/2020.

A vigorosa canção de Zé Ramalho “Admirável gado novo” (1979) diz “Ê, ô, ô, vida de gado/Povo marcado, ê!/ Povo feliz!”. Apesar de ter quarenta anos, a canção é atualíssima. Quem não a conhece, procure conhecê-la, é facilmente encontrável na web.
O povo continua sendo marcado, mas não liga, se pode ser feliz. Veja-se a notícia de que num único dia do carnaval dois milhões de pessoas juntaram-se festejando nos blocos de rua do Rio. Viva os blocos de rua, talvez sejam a expressão mais autêntica dessa que já foi uma festa popular, espontânea.
Mas estes dois milhões de foliões poderiam ser também cidadãos lúcidos, e apresentar-se nos momentos em que é mister indignar-se. A imagem de povo gado confunde-se com a imagem do “corno manso”. Gado manso? Não faz muito a expressão designava os frouxos de caráter que não tinham firmeza para reagir à infidelidade, naquele tempo algo imperdoável, passível de punição até por lei. Os tempos mudaram, mas a expressão corno manso ainda tem sua força original. O corno é aquela figura inexpressiva, sem nenhuma energia, que não se incomoda que lhe usurpem a parceira, que roubem a flor, depois pisem o jardim, depois roubem a voz e por fim lhes roubem a identidade, a dignidade, a vida. O corno manso é um capacho em que todos pisam, fornicam até na sua própria cama, e ele, acovardado, não sabe como reagir, ou até faz que não sabe de nada do que acontece, enfia a cabeça num buraco, como o avestruz.
O terço da população que é atavicamente fascista e vive inebriado pelo fascínio do poder e da posse a qualquer custo pode ser comparado com o chifrador. Os outros dois terços são as vítimas potenciais. E boa parte destes dois terços anda se portando como legítimo gado manso, marcado, alienado, e feliz.
O que mais falta para mostrar que o povo está sendo tangido como gado ou chifrado por estupradores? Que não se satisfazem em violentar a população, mas querem ferrar o País, submetendo-o a garanhões ainda mais truculentos, a quem nossos estupradores domésticos, amansados, submetem-se de bom grado?
Destruição, venda, fechamento de grandes empresas brasileiras (Petrobras, OAS, JBS, Odebrecht, Embraer...), congelamento de investimentos sufocando áreas estratégicas (infraestrutura, saúde, educação, pesquisa científica...), incentivo à destruição da Amazônia (que equilibra o clima no Brasil), liberação de agrotóxicos condenados (que envenenam os alimentos), precarização do trabalho, restrições à aposentadoria e ao emprego público, redução dos programas sociais, ocultação ou queima de arquivo de testemunhas-chave (Cunha, Paulo Preto, Queiroz, Capitão Adriano...), assassinato de opositores (Marielle), excludente de ilicitude (igual a autorização para matar o pobre), incentivo ao armamentismo, associação de governantes com milícias que impõem com terror e bala seu mando...
Se isto não basta para nos indignar é porque somos gado marcado e feliz, ou exemplares cornos mansos. Estão nos tangendo para o abatedouro, estão mesmo nos ferrando, e não queremos ver.