terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Feliz 2018, Brasil!

Publicado no Diário dos Campos em 27/12/17
Que 2018 seja um ano de paz, de tolerância, de compreensão, de liberdade, de verdade, de justiça, de amor. Aliás, não por acaso justo ao fim do ano comemoramos o aniversário do profeta da religião mais difundida no planeta, que, assim como os profetas de outras religiões, vieram nos ensinar estes valores emancipadores e humanísticos.
Que saibamos ter temperança e serenidade para que de nosso ser emane a paz. Que as divergências que vão pelo mundo, muitas vezes incentivadas por aqueles que querem delas aproveitar-se para estender seu domínio, não nos contagiem. Que nós brasileiros recuperemos a alegria, a amizade, a criatividade artística, a hospitalidade, que já foram marcas de nosso povo. E que recuperemos também aquela capacidade de convivência pacífica com o diferente, outra marca de nosso povo, herdada de uma mistura de raças sem igual no mundo. Ainda que tenhamos tido sempre muito a progredir em termos da verdadeira solidariedade.
Que sejamos capazes de substituir a reação instintiva pela reflexão, compreensão e sabedoria. Que nossos posicionamentos e nossas escolhas emanem da nossa capacidade de refletir e de decidir com base em valores que nos são próprios, e não na manipulação interesseira de estímulos e de reações estranhas que nos são imputados via um massacrante condicionamento midiático.
Que logremos escapar desse consenso construído que nos imputa falsas convicções e conflitos descabidos. Que alcancemos a capacidade de nos libertarmos como pessoas. Que passemos a ter idéias e valores próprios, sobre nós mesmos, sobre nossa pátria, sobre nosso devir. E assim que nosso riquíssimo país deixe de ser a eterna colônia, o eterno país do futuro, e alcance o status de grande nação do presente.
Que renasçam em nós os sonhos de felicidade e de dignidade, de soberania, de justiça para todos, não somente para uma casta seleta de presunçosos eleitos. Que nos preocupemos mais com o bem estar coletivo, e menos com os humores do volúvel mercado. E que, nesta era de informação, sejamos capazes de discernir o joio do trigo. Pois a informação é muito diversa, ora nos esclarece e nos ajuda a crescer, ora usa nossas reações instintivas, impensadas, para despertar em nós tudo aquilo que é contrário ao progresso humano, em favor da submissão àqueles que têm a pretensão de dominar o mundo.
Que tenhamos o discernimento para aprender com a boa informação, que nos faz seres humanos mais humanos. Que tenhamos firmeza para superar os atavismos históricos de nossa peculiar sociedade, e que ela definitivamente passe a ser inclusiva. E, neste ano de 2018, sobretudo que saibamos distinguir oportunistas de estadistas.
Fim de ano é a reafirmação dos valores cristãos, é a esperança do novo no ano que começa. Que nos renovemos junto com o calendário, que nos recriemos, que despertemos.
Que 2018 seja um ano de revelação, de emancipação.

Que 2018 seja um ano feliz.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O Todo Poderoso e as oportunidades

Publicado no Diário dos Campos em 08/12/17
 Estes dias, zapeando a TV, dei por acaso com a comédia A Volta do Todo Poderoso (2007), em que Morgan Freeman encarna Deus e Steve Carell seu moderno Noé, o atônito encarregado de construir uma arca num lugar impensável no interior dos EUA. Apesar de ser um despretensioso entretenimento, o filme tem uma passagem marcante: Deus conversa com Noé e lhe ensina que quando as pessoas lhe pedem algo com fervor, por exemplo a coragem, ele, o Todo Poderoso, não lhes concede propriamente a coragem, mas a oportunidade de praticar a coragem, e, assim, de tornar aquele crente suplicante mais corajoso, pela prática da coragem.

Ou seja, os céus não estariam para nos conceder facilidades, mas estariam sim para nos conceder as condições para que possamos fazer a escolha se queremos ou não conquistar algo que ainda nos faz falta. A coragem, o discernimento, o engajamento, a responsabilidade, a honestidade, a serenidade, a tolerância, a solidariedade, a sobriedade, a temperança, o caráter, a firmeza, a generosidade, a sabedoria, a compreensão, a lucidez, a liberdade, a idoneidade... estariam entre essas qualidades para as quais os céus nos concedem as circunstâncias para que possamos praticá-las, e, com nossa determinação, possamos conquistá-las, para o nosso ser e para o nosso mundo.

Que excepcional oportunidade os céus estão nos concedendo nos dias atuais de crescente iniquidade, no Brasil e na verdade no mundo todo! Se tivermos desprendimento e iniciativa suficientes e refletirmos sobre como vão indo estes nossos tempos, nos veremos diante de uma escolha crucial: ou fechamos os olhos para o que está se passando ou tomamos consciência de uma dura realidade cheia de oportunidades para que possamos conquistar qualidades que ainda estão nos fazendo muita falta para a evolução da humanidade.

Aí me lembro de outro filme, um dos que mais gosto: Contato (1997), baseado em livro de Carl Sagan, em que Jodie Foster encarna uma astrônoma descrente de Deus, que busca obstinadamente sinais de vida extraterrestre. Quando os encontra e candidata-se a ser a enviada para o contato com uma civilização inimaginavelmente mais evoluída que a nossa, questionam-na sobre o que ela perguntaria ao seu interlocutor celestial. Ao que ela responde:

— Perguntaria como foi que sobreviveram ao desvario da adolescência de sua civilização...


domingo, 26 de novembro de 2017

Homo sapiens ou homo erroris?



O livro A segunda guerra fria, do brasileiro radicado na Alemanha Luiz Alberto Moniz Bandeira (falecido no dia 10 de novembro último), nos alerta sobre o uso recente de uma estratégia milenar: iludir, dividir, para governar. Moniz Bandeira nos mostra com uma incomparável riqueza de fontes que, desde a queda da União Soviética, os candidatos a potência com total hegemonia do poder mundial (EUA) têm repetido um mesmo expediente para alastrar seu domínio sobre países estratégicos que tinham governos indesejáveis e/ou eram portadores de riquezas naturais indispensáveis para a dominação do mundo: Geórgia (2003), Ucrânia (2004) e Quirguistão (2005) na Ásia Central, a Primavera Árabe (2010-2012) que devastou os países do Norte Africano e Oriente Médio. Essas regiões são de altíssima relevância estratégica, por constituírem territórios com enormes reservas de recursos energéticos e minerais, e pela posição geopolítica.

As táticas de desestabilização de governos legítimos mas avessos à expansão estadunidense foram semelhantes: formação e financiamento de grupos de ativistas radicais e ONGs de oposição, financiamento de campanha de políticos oposicionistas, domínio da mídia e maciça campanha de desmoralização institucional e governamental, financiamento de “guerras psicológicas” operadas pela mídia visando desestabilizar governos e dividir a população dos países. Essas táticas visaram derrubar governos sem a necessidade de dispendiosas intervenções militares, como no caso do Afeganistão e do Iraque.

O livro de Moniz Bandeira foi concluído em 2013, e republicado no Brasil em 2017. Ele não chega a abordar os golpes em Honduras (2009) e no Paraguai (2012), que igualmente visaram substituir governos eleitos nacionalistas por governos mais simpáticos aos interesses estadunidenses. E muito menos aborda as transformações ocorridas no Brasil a partir de 2013.

Quais transformações ocorreram no Brasil? A partir de 2013 movimentos populares que inicialmente protestavam contra a má qualidade e alta tarifa dos transportes urbanos nas metrópoles transformaram-se em protestos contra a corrupção, o gigantismo e a inoperância do Estado e de suas empresas, principalmente a Petrobras, e de grandes empreiteiras. A mídia produzia o massacre midiático da demonização do Partido dos Trabalhadores e seus governos e governantes, da pífia economia do país, da corrupção que estaria profundamente enraizada em todo o modus operandi nacional por culpa dos governos petistas. A presidenta eleita foi afastada acusada de praticar atos administrativos utilizados por todos seus antecessores, mas os congressistas que caçaram-lhe o mandato não tiveram coragem de negar-lhe direitos políticos, pois tiveram vergonha de condenar politicamente uma estadista com uma estatura ética muito superior à deles.

E no lugar da presidenta deposta assumiu seu vice. Que logo se mostrou a pessoa certa para ocupar o papel esperado por quem patrocinou, do exterior, o golpe sem guerra no Brasil. O “ajuste” das contas públicas está sendo realizado pelo viés da limitação de investimentos em infraestrutura e serviços básicos, reforma do ensino restringindo disciplinas reflexivas e críticas, modificações na legislação trabalhista em prejuízo do trabalhador, reforma da previdência em prejuízo da aposentadoria do cidadão comum, descapitalização da Petrobras e loteamento das imensas jazidas de petróleo do pré-sal, privatização de serviços estratégicos de energia e saneamento... Mas imprescindíveis ajustes na tributação dos rentistas e dos mais ricos, nas privilegiadas aposentadorias de políticos, juristas, militares e outros, nas leis que regulamentam as eleições e os políticos... estes estão fora da pauta de discussões.

Ou seja, no Brasil não nos comportamos de forma diferente dos outros países que, desde o início deste século, têm trocado governos nacionalistas e legitimamente eleitos por governos que estão loteando as riquezas nacionais e explorando seus trabalhadores. E, pior do que lotear as riquezas, estão nos dividindo, quando conseguem transformar diferenças ideológicas em motivo de violência e agressões. Devíamos estar mais atentos a quem são nossos verdadeiros adversários, que merecem nossa indignação e nossa condenação.

E, talvez ainda pior: como o povo de um país pode valorizar conduta ética e responsável, se de seus dirigentes vem um exemplo tão carregado de desmandos?

Está na hora de deixarmos de ser Homo erroris, e tornarmo-nos Homo sapiens.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Carta de repúdio ao General Mourão

 Texto escrito em resposta ao texto "Carta pública de apoio ao General Mourão", publicado em jornal de Ponta Grossa em 07/10/2017.
Quem assina esta não é um grupo de patrimonialistas entidades patronais, mas é um simples professor. Mas tenho convicção que esta carta representa o pensamento da grande maioria dos brasileiros,
A fala do General Mourão não usa estas palavras, mas ameaça com o estado de exceção em que se suprimem os direitos, o que entre nós ocorreu entre 1964 e 1985, durante a ditadura militar. E se hoje nossa jovem democracia está criticamente estremecida pela crise entre os poderes e iniquidades neles enraizadas, o estado de exceção em que os direitos são suprimidos é muito pior. A diferença é que na ditadura as iniquidades, os crimes contra o cidadão e o bem público, são ocultas a peso de chumbo e sangue, enquanto hoje temos certa liberdade, transparência e segurança para denunciar e apurar.
E não nos iludamos que as forças armadas signifiquem acerto nos rumos de uma nação. Se não bastassem os exemplos históricos da França de Napoleão, da Alemanha de Hitler, da Rússia de Stálin, do Chile de Pinochet, do Iraque de Saddam, lembremo-nos de que durante a ditadura militar brasileira o país contraiu a maior dívida externa de sua história, só saldada na última década. Para não falar na imensa dívida educacional, da dívida moral, da dívida dos valores civilizatórios que constroem uma sociedade justa e solidária.
Estas dívidas estamos pagando até hoje, por isso nossa jovem democracia ainda sofre esta crise que estamos vivendo. Mas crises são bem-vindas, elas nos mostram que o velho está morto, já não funciona, e o novo ainda não nasceu para substituí-lo.
O velho está morto. O Brasil do coronelismo, das abismais injustiças sociais, dos privilégios das elites e de suas escandalosas artimanhas para continuarem privilegiadas, está morto. A crise dos poderes que vivemos hoje, inclusive o poder da mídia e dos empresários que elegem a maioria dos políticos, não é fruto da falência dos princípios democráticos. Mas é fruto justamente das forças que se opõem aos princípios democráticos, que sabotam e corroem a democracia, que subvertem princípios e suprimem direitos, seja de forma explícita, como nas ditaduras, seja disfarçadamente, como nas sociedades em que os velhos privilégios e injustiças são implacavelmente defendidos.
O novo Brasil há de ser construído não somente sobre o pilar da verdadeira honestidade, mas também sobre o pilar da inclusão e da justiça social, o pilar da liberdade, o pilar da soberania nacional. É hora do Brasil avançar, e não retroceder de sua jovem, imperfeita mas promissora democracia.

Intervenção militar, ditadura, nunca mais!

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Pai nosso...


... assim como nós perdoarmos a quem nos tem ofendido, não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos do mal, amém!
Pai, dai-me forças para que eu possa sempre ser arauto do teu amor, testemunho dos ensinamentos evangélicos...
Cacilda, mas que é que estou colocando nas minhas orações! Bestei? Será que não seria melhor pedir, sim, primeiramente perdão dos meus pecados, mas também dinheiro, celebridade e poder, que ninguém vive sem essas benesses essenciais?
Este nosso mundo não merece alcançar a justiça e a solidariedade que os evangelhos nos ensinam! Parece mais que este é mesmo um mundo de penas, de sofrimento. Aprendemos pelo sofrimento na própria carne, e não aquele vivido por outros. O homem torturado e pregado na cruz não consegue nos ensinar lições de amor e sacrifício. Temos nós mesmos que quebrar a cara pra aprender alguma coisa.
Pai, como será que você está se sentindo ao ver-nos em tantos descaminhos e iniquidades neste nosso planeta que já dá sinais de saturação e colapso? Escarnecemos que você anda com o dedo no botão de destruição de sua obra, arrependido do mundo que criou. Será que está mesmo arrependido?
Às vezes penso que entendemos mal. Sua intenção era essa mesmo. Este é um mundo de provas, uma escola austera, e não um mundo destinado à prosperidade, à fruição, à felicidade e à iluminação. Será que a avareza, a ambição, a crueldade, a competitividade, a soberba, a injustiça nunca vão diminuir no planeta Terra? São qualidades que nos colocam à prova, convivendo com elas aprendemos, ou não! Se aprendermos, então iremos para outros planetas, criados para serem melhores. Parece que o nosso, este decantado planeta azul, nunca vai evoluir. É a escola para os alunos renitentes, que têm dificuldade de aprender.
Será que é isso mesmo? Então minhas preces pedindo por um mundo melhor, por gente melhor neste mundo, são vãs? Melhor seria eu rezar para que o mal esteja cada vez mais fortalecido, e assim nos convença com mais veemência de que o bem é preferível? E rezar para que pelo menos eu, e meus próximos mais próximos, aprendamos, para podermos ter direito a mundos melhores?
Pai, se seu filho aparecesse hoje por aqui na Terra, seu destino não seria diferente do que aconteceu já lá se vão dois milênios. Você e seu filho são uma afronta ao mercado, à livre iniciativa, ao empreendedorismo, à competência e ao dinamismo. Hoje seu filho não seria crucificado, mas talvez virasse um indigente perambulando por este mundo de modernidades. Ou seria assassinado, como já foram vários de seus seguidores que ousaram pregar a paz e o amor.
Aliás, acho que aí é que está o fulcro da questão. Você é um deus que não conseguimos compreender. Enquanto a civilização atual é filha do deus mercado, esse sim presente em nossas vidas. Ele nos diz como viver, como ser felizes, que convicções e ideologias são corretas, como votar... Aliás, ele cria e supre nossos desejos, e também supre leis e governantes que primam por atender esses nossos construídos desejos. O deus mercado é muito eficiente. E você, pai, parece-nos muito ausente...
Bem, pai, isto que era pra ser uma oração, virou uma lamentação. Concordo que, olhando bem, o mundo que nos foi concedido, a Terra com todas suas benesses, parece o paraíso. Tão maravilhoso que concedeu-nos o milagre da vida. Mas por que motivo nós humanos fazemos de nossa passagem por aqui um inferno? Exagero meu? Mas guerras, miséria, injustiças, desigualdades, mesquinhez, desonestidade, crueldade e desumanidade são marcas deste nosso mundo, não são?
Só posso acreditar que esse era mesmo seu plano. Este nosso mundo é uma escola. Implacável. Quem passar de ano, vai pra outros mundos melhores. Este, nossa Terra, é pra ser assim mesmo. Um duro campo de provas. Não vai evoluir.

Será?

sábado, 5 de agosto de 2017

Quanto é suficiente? – o conceito de vida boa

Quanto é suficiente? – o amor pelo dinheiro e a defesa da vida boa é o título de um livro dos irmãos britânicos Robert Skidelsky (economista) e Edward Skidelsky (filósofo) publicado no Brasil em 2017. É leitura muito recomendável para quem tem intenção de manter algum discernimento e lucidez neste nosso conturbado mundo atual, em que o amor pelo dinheiro tem guiado a humanidade.
O livro começa por diagnosticar como anda a economia no mundo, comparando dados de renda per capita, distribuição de renda, qualidade de vida, satisfação com a vida e felicidade. Nesta primeira parte, o livro mostra dados que levam a concluir que a renda per capita no mundo todo é crescente, a renda encontra-se cada vez mais concentrada, os índices de qualidade de vida mostram melhoras, mas a satisfação e a felicidade pioram. É mencionada a insaciabilidade dos desejos humanos, que junto com a necessidade de ostentação e a competitividade levam ao equívoco de considerar que o possuir é a meta fundamental da vida.
Discute também a inescapável redução da necessidade de mão de obra, substituída pela tecnologia, nos processos produtivos atuais. E a importância de planejar a redução da carga horária de trabalho visando evitar o desemprego e o ócio nocivo.
O livro define “vida boa” como aquela que não é dedicada somente ao trabalho e ao consumo, mas aquela que é vivida com satisfação, e que desejamos viver. Ela nos propicia experiências estéticas, intelectuais, morais e éticas. Vida boa identifica-se com bem estar, no sentido amplo do ser: orgânico, emocional, mental, moral, espiritual.
Em seguida o livro trata dos chamados “bens básicos” para a vida boa: saúde (no sentido amplo da palavra), segurança (no trabalho, na integridade pessoal, na liberdade de pensamento, de credo, de deslocamento...), respeito (de etnia, de cultura, de origem, de ideologia, de classe social...), personalidade (que vem com a educação, e permite que cada um tenha plenas condições de avaliar com sabedoria e tomar partido nos muitos impasses com que a vida nos confronta), harmonia com a natureza (fala-se em “ecologia profunda”, aquela em que a compreensão utilitária da ecologia – o natural é para garantir-nos a vida presente e futura – evolui para a ecologia profunda – todo o planeta, toda a vida, tem um valor intrínseco que ultrapassa os interesses humanos, está no mesmo nível de valor da vida humana), amizade (incluindo-se aí os laços de família, mas indo muito além, para todas as relações que englobam intensidade e afetuosidade) e lazer (aquelas atividades que nos trazem relaxamento, repouso e crescimento que nos permitem refletir e aperfeiçoar nossa percepção do mundo e de nós mesmos, melhorando nossa auto-estima e nossa afetuosidade).
E o livro termina apontando saídas, pessoais e sociais, para a vida boa: normas gerais que inibam a insaciabilidade dos desejos humanos (acumulação e consumo exagerados); gestão responsável da substituição do trabalho pela tecnologia de modo a propiciar o lazer saudável; distribuição equitativa da renda; sistema educacional voltado para a formação de cidadãos conscientes e comprometidos com a satisfação humana, e não para a satisfação do mercado; produção voltada para necessidades locais, e não para o mercado mundial; sistema tributário incidente sobre o consumo e não sobre renda; tributação diferenciada de ganhos rentistas, altos salários, heranças e fortunas; controle da publicidade, de forma que o consumo atenda mais a reais necessidades e não a necessidades criadas pela propaganda.
A leitura do livro inevitavelmente nos faz refletir sobre o momento que passamos no Brasil: por aqui, a concentração de renda só faz aumentar, a tributação incide mais sobre o trabalhador pobre do que sobre o rico especulador, a educação forma para o mercado de trabalho, não para a vida cidadã. 
     E, principalmente, nos faz compreender que reformas necessárias para ajustar contas públicas devem objetivar prioritariamente o sistema de tributação, e não as leis trabalhistas e a aposentadoria.
Estamos muito longe do que o livro preconiza como caminhos para a vida boa. 

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Juízo final

Publicado no blog de Carta Capital em 16/07/2017.

Risonho Sensalva de repente viu-se diante de um portal grandioso. Não havia nenhuma identificação, mas ele sabia: era a porta do fim da vida.
Ainda assustado, sem saber o que estava acontecendo, foi se aproximando. Esperava encontrar ou um velho de barba e batina branca, ou, tomara que não, um ente vermelho com chifres e rabo. Por um momento repassou os feitos de sua vida. Não achava que merecesse o inferno, mas mereceria o paraíso?
Outra surpresa! Quem apareceu foi um jovem vestido a executivo, habilmente manejando um ipad de última geração.
- Morri? Ou estou sonhando?
- Olá Risonho Sensalva. Não, isto não é bem um sonho. É um levantamento preliminar dos seus dados de vida, para o desenlace futuro. Você ainda não morreu, o que acontecerá num futuro incerto. Mas com o tamanho da população atual, temos que agilizar no processamento dos dados. Notou que não há fila por aqui? É graças a estas providências de planejamento.
- Quer dizer que ainda não morri, mas vou morrer em breve?
- Ainda não morreu. Quando vai morrer, se é em breve ou não, só Deus sabe.
- Mas não é ele quem dirige isto aqui?
- Não. Na verdade este é um serviço terceirizado. Atendemos a vários clientes.
- Mas se não sabe quando vou morrer, como é que pode fazer este levantamento?
- Não se preocupe, Risonho. Isto não é um sonho, mas é como se fosse. Quando você acordar pela manhã, não vai lembrar de nada disto. Sua vida vai continuar como sempre. A morte é certa, mas incerta na sua hora. Mas vamos ao que interessa. O que você tem a dizer sobre sua vida? O que lembra que poderia credenciá-lo para um ou outro caminho no fim de sua vida?
Risonho calou-se momentaneamente, pensativo. Então começou sua defesa.
- Bem, desde criança fui sempre um bom aluno...
- Ora, a importância da educação formal anda muito relativizada. Hoje se considera que qualidades como empreendedorismo, iniciativa, agressividade e malícia profissional são mais efetivas para o sucesso...
- Ah, sim, sim... Mas nos meus amores, desde jovem, fui sempre muito respeitoso e fiel...
- Ora, essas qualidades também andam em questionamento. Uma certa ousadia é essencial para apimentar os relacionamentos. E fidelidade... Ora, está provado que o ser humano é, definitivamente, um ser infiel. A plenitude dos relacionamentos depende da concorrência. Funciona como nos negócios.
- Fui um bom pai de família? (a esta altura Risonho já duvidava de seus feitos).
- Muitos acreditam que o núcleo familiar é a principal estrutura perpetuadora de vícios, preconceitos e atavismos...
Já se desesperando de perceber que o homem desqualificava tudo que pensava que tinham sido virtudes em sua vida, Risonho Sensalva começou a exasperar-se.
- Fui um profissional ético, que sempre procurou agir no interesse dos direitos daqueles a quem servi, da qualidade, da honestidade, da justiça e da verdade...
- Ora, estamos num novo tempo. Nem sempre o cliente tem a razão. Aliás, quase nunca tem a razão. Não sabem que decisão tomar de forma a fortalecer o mercado, que é quem mantém os empregos e a produção. Já qualidade, meu amigo, quer dizer durabilidade. E se algo dura, a fábrica fecha! E para onde vão os empregos? E honestidade, justiça e verdade! Ora, esses conceitos são muito relativos. O que pode ser honesto e justo para um indivíduo pode ser prejudicial para a sociedade. E vice versa. Verdade então! Existe uma verdade diferente para cada ser humano!
- Ah, sobre isto tenho minhas convicções. E não abro mão! Sempre procurei seguir os ensinamentos de minha religião. De que devemos agir com o próximo da mesma maneira que queremos que ajam conosco. Isto me faz crer no respeito, na solidariedade, na justiça e na inclusão social, no amor...
De repente, Risonho Sensalva despertou em seu quarto de dormir. Era uma manhã corriqueira. Ele tinha a sensação de que algo se passara, mas não conseguia se lembrar do que era.
Lá no portal do fim da vida, o executivo Rufinus Mercadante, pensativo, digitava em seu ipad:
- Esse é de outro tempo. Vai ter de reencarnar! E vai ter de renascer como, como...
Hesitou um pouco.

- ... palhaço! 

domingo, 25 de junho de 2017

Farinha do mesmo saco?

 Diante da chuva de denúncias de atos ilícitos envolvendo as maiores autoridades do país, de governantes, do legislativo e do judiciário, algumas dúvidas emergem: são todos iguais, farinha do mesmo saco? Não se pode mais confiar em ninguém? O que será do Brasil? O que podemos fazer por nós e pelo país? Não há mais esperança?
Perguntamo-nos se, seja qual for o partido, seja qual for a ideologia, seja qual for o cargo, seja qual for a origem e os eleitores, são todos ou corruptos de nascença, ou corruptíveis pelo sistema político degenerado que se instalou no país.
Há as chamadas pedaladas fiscais, o superfaturamento de obras, as propinas de empresas, o uso de verbas ilícitas nos caixas dois e três de campanhas eleitorais, o suborno de governantes, políticos e juízes para compra de decisões, a arapongagem (escuta ilegal), os desvios de verbas públicas... São muitos crimes! Há como distinguir quais os mais ou menos desprezíveis? Mas, por certo, todos são crimes, e todos têm que ser firmemente combatidos.
Mas talvez existam níveis de criminalidade mais nefastos. Entre eles, o de julgar que seres humanos não sejam iguais, que sempre haverá um grande rebanho de párias inferiores, que precisam ser sacrificados em nome da satisfação dos desejos dos privilegiados das castas nobres. Os praticantes deste crime são segregacionistas, intolerantes com diferenças de raça, religião, cultura, sexo, ideologia, classe social...
Ele confunde-se com o crime da soberba, com o próximo, com animais e plantas, com a nação, com o planeta. Este crime resulta da falta de percepção do mundo para além de si mesmo. Resulta de um exacerbado egocentrismo, que gera não só a ambição insaciável, mas também a falta de princípios éticos, a falta de fidelidade a um ideal, a um grupo ou família, a um programa de partido, a um país. Os praticantes deste tipo de crime são capazes de assaltar os cofres públicos, envenenar alimentos, sabotar a merenda escolar, falsificar medicamentos, enganar os eleitores e amigos, empobrecer os pobres e enriquecer os ricos, contaminar as águas e o ar, exaurir os solos, ameaçar a biodiversidade, lotear empresas, terras e o patrimônio natural do país.
Será que hoje em dia todas as autoridades têm cometido os mesmos tipos de crimes? Talvez uma maneira de discernir entre os tantos erros e crimes que têm sido cometidos é procurar enxergar quem tem cometido os crimes de discriminação social, de entrega dos bens e riquezas do país e de disseminação da desesperança.
Não pode haver crime pior do que o da desesperança. Há que cultivar a esperança para evoluir no sentido da justiça social, da soberania, da liberdade, da qualidade de vida, da solidariedade, da alegria de viver e do aprofundamento da cultura, da arte e da sensibilidade. É isto que têm pregado os profetas das religiões, que temos venerado ao longo dos milênios, mas cujos ensinamentos resistimos assimilar.
Entre os tantos crimes que têm sido cometidos nos tempos atuais, é imprescindível saber discernir. Há entre eles erros que são passíveis de correção. Errar é humano, e mais humano é reconhecer o erro e procurar corrigi-lo.
Mas a índole de semear desesperança e acomodação para amealhar proveito próprio, este é um crime que tem que ser vencido com firme luta. A luta pela esperança. Luta por mudança, que se alcança com discernimento e engajamento.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Esperança

Publicado no Diário dos Campos em 15/06/2017

O Brasil é um país singular, talvez por este motivo tenhamos tanta dificuldade de deixar de ser o país do futuro para nos tornarmos uma nação do presente, com justiça, qualidade de vida e soberania. Temos uma dimensão continental, um povo miscigenado, o que, se não chega a eliminar segregações, muito às reduz em comparação com outros países, somos riquíssimos do ponto de vista de recursos e maravilhas naturais, nosso povo fala uma única língua e tem índole alegre, amistosa, pacífica e otimista. 

Mas sabemos muito bem que virtudes despertam a cobiça e a inveja. Por isso, é preciso saber proteger as virtudes. É possível que em primeiro lugar, neste momento que vive o país, seja necessário proteger a índole amistosa, pacífica e otimista de nosso povo. Estas virtudes serão essenciais para que possamos defender as demais.

A índole amistosa e pacífica parece andar estremecida pela polarização em torno de escolhas ideológicas e partidárias. É antiga a máxima de que com amigos não devemos discutir religião, futebol e política. Mas agora diferenças de opinião sobre política resultam em inimizades e mesmo hostilidades e agressões. Se refletirmos desapaixonadamente, constatamos que erros e acertos existem nas várias tendências políticas e partidárias, mas como nunca antes lados opostos acusam-se mutuamente de corruptos, bandidos e entreguistas, ao mesmo tempo em que se consideram donos da verdade e da santidade. O que teria conduzido o povo amistoso e pacífico a essa agressividade? Estaríamos sendo vítimas da disseminação de uma planejada discórdia, atendendo ao aforismo “dividir para governar”? E, se assim for, quem quer nos governar?

A alegria e o otimismo do povo brasileiro parecem também estar em crise, junto com a índole amistosa e pacífica. Um dos indícios da falta de confiança no país tem sido demonstrado pelos jovens talentosos e idealistas, que se qualificam profissionalmente em nossas universidades. Assim que obtêm o diploma, cogitam obter colocação profissional em Portugal, no Canadá, na Inglaterra, na Austrália... Dizem que o Brasil não oferece bons postos de trabalho, e, principalmente, o país não oferece perspectivas de um futuro seguro no que concerne ao trabalho, à justiça, à dignidade, à liberdade... E assim preferem ir-se embora.

Já houve época, lá pelos anos 1960-70, que jovens talentosos e idealistas abandonavam o país. Naquele tempo, exilar-se era questão de sobrevivência. Se ficassem, não poderiam manifestar suas ideias, não poderiam nem conversar sobre elas, sob risco de serem tachados de terroristas subversivos, e serem presos, torturados e até “atropelados” ou “suicidados”. Até os dias atuais ainda pagamos tributo àqueles sombrios tempos, pois muitas das mentes mais brilhantes do país ou evadiram-se para não mais voltar, ou foram caladas, ou calaram-se sob o peso de traumas inimagináveis. E deixaram um vácuo de idealismo humanista e patriótico que influencia até hoje as novas gerações.

Agora as razões para a desesperança no país são outras. Não é possível acreditar na construção de uma nação com os poderes todos tão corrompidos. Se não encontrarmos um caminho para que a ética e a solidariedade voltem a orientar os brasileiros, povo e autoridades, em breve o país estará entregue a uma quadrilha enraizada no poder e seus vassalos.

terça-feira, 18 de abril de 2017

O equívoco do cidadão brasileiro – retrocesso não!

Este texto foi escrito como réplica a texto exaltando as medidas implementadas pelo governo atual, publicado no espaço do leitor de jornal da cidade de Ponta Grossa, no qual o autor identificava-se como um "cidadão brasileiro". Embora enviada mais de uma vez para publicação no mesmo espaço do jornal, esta réplica não foi publicada.

O cidadão brasileiro médio constrói sua opinião na televisão. O Jornal Nacional e o Fantástico são o lastro de suas informações. Então sai às ruas de verde e amarelo, ou engaja-se em estrondosos panelaços, clamando pela derrubada do governo democraticamente eleito. Não se dá conta, mas a chamada grande mídia, a televisão e também jornalões e seus portais na web, replicados numa incompreensível enxurrada de disparates nas redes sociais, vão alimentando no cidadão brasileiro aversão raivosa que chega ao ódio de tudo que possa significar a ideologia do partido do governo deposto. Esquecem que é um partido surgido de lutas sindicais e que de fato é dos trabalhadores.

Não satisfeito, o cidadão brasileiro apóia as reformas em curso pelo novo governo. Quais têm sido estas reformas? A PEC do teto, que congela investimentos em infraestrutura e serviços sociais a pretexto de saldar o enorme déficit público. A reforma do ensino que prioriza disciplinas cognitivas em relação a disciplinas reflexivas, a pretexto de melhorar o nível da educação. A “escola sem partido”, que impede professores de emitirem opinião própria, a pretexto de um ensino imparcial. A reforma trabalhista, que suprime direitos do trabalhador frente aos patrões, a pretexto de legalizar situações já praticadas. A reforma da previdência, que pretende reduzir benefícios e aumentar a contribuição, a pretexto de saldar um alegado insaldável rombo. A defesa de projetos de lei como a anistia à caixa dois nas campanhas, a pretexto da governabilidade.

Mas precisamos questionar a lógica que produz tal opinião construída pelo massacre midiático. A começar do ódio que está sendo nutrido em relação ao Partido dos Trabalhadores e seus governantes. Sim, cometeram erros e frustraram muitos brasileiros que sonham com o Brasil que deixe de ser o país do futuro e se torne a grande nação que nosso rico território e nosso solidário povo mestiço nos destinam a ser. Reconhecer estes erros e corrigi-los é imprescindível. Mas não vamos jogar no lixo os acertos que sempre são acompanhados por erros. Um governo que priorizou os direitos dos trabalhadores, a população pobre, e que procurou tornar o Brasil um país soberano frente a uma rapinagem local e internacional cada vez mais voraz, não pode ser julgado somente pelos erros de não ter tido a capacidade de quebrar seculares estruturas corruptas e interesses espúrios enraizados no poder econômico e na política do país e do mundo. O cidadão deve perguntar-se: qual o motivo da demonização das ideologias que se colocam em prol das classes trabalhadoras e da soberania do país? A quem esta demonização interessa?

Outros questionamentos que precisam ser feitos. Qual o real motivo do imenso déficit público utilizado como pretexto para a PEC do teto? Seriam despesas justas ou seriam os juros escorchantes, que são a maior rubrica de despesas do país, pagos a uma elite financeira que a cada ano que passa fica mais rica, e o povo mais pobre?

E os indicadores que mostram que a cada ano estamos piores em educação, e que são o pretexto da reforma do ensino? Estamos piores porque não sabemos matemática e português, ou porque as disciplinas reflexivas, que formam jovens críticos e questionadores, têm sido propositalmente negligenciadas? O que, junto com a conjuntura caótica, tem desmotivado nossos jovens a se tornarem profissionais bem sucedidos pelo caminho da sólida formação profissional? E qual a finalidade da “escola sem partido”, a não ser o empobrecimento do debate franco que ajuda a fortalecer a cidadania e o engajamento?

E a reforma trabalhista, que privilegia interesses de patrões em detrimento do direito do trabalhador, este sempre a parte mais vulnerável nas negociações? E o alegado rombo da previdência, mas que juristas e economistas alertam que se trata de um rombo forjado, pois a Constituição Cidadã de 1988 estabelece como fontes de recurso do sistema previdenciário arrecadações que nos são cobradas que têm sido sistematicamente desviadas para outros setores do governo?

Para não nos equivocarmos, precisamos refletir. E não sermos presas do reflexo condicionado, que nos faz reagir irracionalmente a estímulos que nos manipulam. Este é o princípio utilizado pelos que só pensam nos próprios ganhos e tentam frear a caminhada do país ao futuro.

sexta-feira, 17 de março de 2017

APA da Escarpa Devoniana – uma lição de vida

Publicado no Diário dos Campos em 18/03/2017.

Na sexta-feira dia 10 de março, tivemos no Cine Teatro Ópera em Ponta Grossa uma reunião histórica. Por iniciativa de deputados da Assembleia Legislativa do Paraná, foi convocada audiência pública para discussão de nefasto projeto de lei que reduz drasticamente a APA – Área de Proteção Ambiental – da Escarpa Devoniana.
O teatro ficou lotado, e fora dele, impedidos de entrar, centenas de pessoas protestaram, ao longo de toda aquela manhã, pois queriam ter também direito de participação e manifestação na audiência. A maioria destes que ficaram para fora era de alunos e professores de universidades e escolas de ensino básico da cidade. A maioria daqueles que estavam dentro do teatro era de proprietários rurais e seus funcionários, que chegaram bem cedo de Jaguariaíva, Piraí do Sul, Itaiacoca e outros locais, trazidos por ônibus fretados para tal finalidade, e logo ocuparam as dependências do teatro.
Resumindo, os que estavam dentro na sua maioria apoiavam a redução da APA, os que estavam fora em sua maioria refutavam a redução. E os alunos gritavam este repúdio, e pediam nova audiência, o que era escutado lá dentro até mesmo pelos que estavam na mesa de direção dos trabalhos. Demonstravam inconformismo não só com o despropósito do projeto de lei, mas também com as estratégias que foram empregadas justamente com a finalidade de deixar de fora os que eram contrários a ele.
Nada de novo, estas são as usuais estratégias do patrimonialismo que não mede esforços para fazer prevalecer seus interesses: mobilização de logística para trazer os trabalhadores rurais num horário muito cedo; escolha de um local para ser preenchido por esses trabalhadores, excluindo outros interessados; direção da audiência por um deputado parcial, nitidamente identificado com os interesses dos ruralistas; implacável segurança para facilitar que o teatro pudesse ser ocupado pelos que tiveram condições de chegar muito mais cedo, excluindo da audiência os contrários à redução da APA; encerramento da reunião muito antes do previsto, de modo que o público não pôde fazer perguntas ou questionamentos. Por muitos a reunião não foi considerada uma verdadeira audiência, pois não permitiu o debate.
Mas nada disso impediu que o encontro fosse histórico. Pelo número de pessoas que reuniu, dentro e fora do teatro, pelos gritos de inconformismo, pela repercussão na mídia. Hoje muito mais gente sabe o que é a APA, uma área protegida mantenedora das condições de sustentação da vida saudável na região, e qual sua finalidade, ambiental, social e econômica. E muito mais gente sabe quem é quem, e quais comportamentos os proprietários rurais se permitem para alcançar seus interesses.
Mas nesta lição de vida que foi a audiência, há que se destacar algo notável: a infeliz declaração de um deputado, justamente quem presidia a audiência. Ele pronunciou-se na mesa e nos órgãos de comunicação afirmando que quem estava reivindicando voz na parte de fora do teatro eram alunos baderneiros, e que eles deveriam estar em sala de aula nas escolas e não gazeando e bagunçando na audiência no teatro.
Que tacanha concepção do que seja o ensino! E que triste manifestação de um membro do legislativo! Se bem que todos saibam qual é o setor da sociedade que este deputado está representando. E por isso mesmo, se vivêssemos uma sociedade democrática, ele nunca deveria ter sido o indicado para presidir a audiência.
Será que só os professores entendem que a melhor aula de sustentabilidade, civismo e cidadania que nossos jovens poderiam ter seria justamente a participação numa audiência como aquela, uma oportunidade rara?
Mas com sua atitude, o deputado deu uma significativa contribuição para demonstrar como pensam e agem alguns de nossos legisladores. Talvez tenhamos que agradecê-lo, pois ele nos esclarece como deveremos utilizar nossos votos na próxima eleição.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Araucaria angustifolia – generosa soberana

Desde meus tempos de criança, quando morava próximo à Serra da Cantareira na zona norte de São Paulo, aprendi a admirar e estimar o pinheiro araucária. Meu pai levava-nos caminhar por um bosque de árvores situado próximo à casa de meus avós, e durante o passeio falava-nos que aqueles pinheiros, que me pareciam gigantes incomensuráveis, eram as mais genuínas árvores brasileiras, e que o país ainda haveria de ser grande como elas. Hoje ainda existem por lá algumas árvores remanescentes, num clube que leva por nome Pinheiral.

Durante minha alfabetização, a instigante estória das gralhas a enterrar sementes e expandir os pinheirais incentivou-me a aprender a ler e povoou-me a imaginação com mitos que carrego ainda hoje. Depois ainda aprofundei minha admiração e apreço por aquelas altivas e elegantes árvores, em andanças por altos ermos da Mantiqueira e da Bocaina, durante levantamentos geológicos do Vale do Paraíba e regiões vizinhas.

Mas foi quando vim para o Paraná, já lá se vão mais de vinte anos, que em minhas andanças pelas matas da Escarpa Devoniana a minha estima e admiração pelas esbeltas árvores transformou-se também num profundo respeito. Não só pelo fato dela ser a árvore símbolo do Paraná e por um ramo seu aparecer na bandeira do estado. E não só pelo fato de que agora, já um maduro adulto, tenha voltado a sentir-me uma criança diante de um incomensurável gigante quando fui conhecer uma árvore já secular, poupada da sanha e da serra dos madeireiros lá pelos anos 1960 e 1970 pelo fato de situar-se à beira de um abismo, se tivesse sido abatida nunca poderia ter sido resgatada.

Com uma professora de botânica minha colega aprendi que a presença da araucária significa que uma mata está em seu clímax evolutivo, o ápice dos estágios sucessionais. Isto é, aquela mata está em sua evolução ecológica máxima, o que só é alcançado depois de muitas décadas de desenvolvimento sem degradações ou crises fortes. Ou seja, se a araucária está presente numa mata, esta já passou por muitas fases de evolução, quando primeiro se desenvolveram muitas outras espécies, vegetais e animais, que constituem a complexa comunidade de vida necessária para que haja condições de crescimento e sobrevivência da soberana dos bosques: a araucária.

Aprendi também que, se sua existência é exigente, por outro lado a araucária retribui com muita generosidade o sub-bosque que a propiciou. Ela oferece o pinhão, alimento de ratos, cutias, pacas, macacos, tuins, papagaios, maritacas, gralhas e muitos outros bichos, que por sua vez vão alimentar lobos e felinos. Estes últimos não são só predadores, mas são dispersores de sementes e reguladores das populações, ou seja, têm também seu papel na complexa trama ecológica dos bosques mais exuberantes, que vai desde o solo e seus microorganismos até os maiores mamíferos e as imponentes araucárias.

E os humanos então! Embora o pinhão não consiga conquistar meu paladar, tenho de reconhecer, um dia, após uma extenuante caminhada, quando me deparei com um caldeirão com pinhões cozidos, eles me pareceram a mais saborosa iguaria que existe. Talvez só não mais saborosos que o pinhão sapecado no fogo da grimpa, em torno do qual o povo simples do campo conta e reconta os deliciosos causos da mata e da noite.

E não só o pinhão é uma benesse que nos oferece a elegante árvore. Ela se deixa desdobrar nas tábuas que foram a matéria prima das vivendas dos colonizadores, onde nos fogões o nó de pinho aquecia, e aquece, no inverno gelado dos planaltos do sul. Nós de pinho que além de aquecer, com seus anéis de crescimento nos revelam a idade das árvores. Os livros dizem que elas podem alcançar até 350 anos, mas há relatos de que no Estado de Santa Catarina, em Jaraguá do Sul, num museu há um nó de pinho antigo com mais de mil anéis. As árvores teriam então, além da altivez e da elegância, a sabedoria que o tempo traz. Além disso, os nós de pinho preservam-se intactos por milhares de anos soterrados em sedimentos ao longo dos rios, e podem então contar-nos também a história de climas passados antes que por suas matas existissem seres humanos.

Que lição a vida nos dá. A existência da imponente araucária depende de todo um complexo sistema de vida e de fatores ambientais, mas a árvore soberana reina generosa retribuindo a bênção de sua existência com a semente que vai realimentar a terra, com a madeira e o nó de pinho.

Pudera nós humanos aprendêssemos com a natureza como governar com generosidade e sabedoria. Parece que entre nós como regra geral os líderes não têm muita noção da importância que tem toda a tessitura social para a sobrevivência e a prosperidade de toda a comunidade. Parece mais que agimos como supostas altivas árvores que, ao alcançarem o dossel das matas, os níveis mais elevados da escala social, desprezam e deixam minguar todo o sub-bosque que lhes deu vida, sem aperceber-se que assim estão também condenando a si próprias.

domingo, 22 de janeiro de 2017

O espectro da total dominação

O espectro da total dominação é o subtítulo do livro A desordem mundial (Editora Civilização Brasileira, 2016), de autoria do cientista político brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, que em 2015 foi indicado pela União Brasileira de Escritores para o Prêmio Nobel de Literatura.
O livro não pode deixar de ser lido por aqueles que tenham a intenção de procurar situar-se dentre os interesses que movem este nosso conflituoso momento atual no planeta, a “desordem mundial” mencionada pelo autor. Ao final do livro, embasado em vasta documentação que inclui arquivos oficiais, depoimentos, notícias, livros, artigos científicos, mensagens eletrônicas e outros, tem-se a convicção que a teoria da conspiração não é só uma teoria, e que a desordem não é algo fora de controle. Na verdade, tudo o que vemos de conflituoso no mundo convergiria para um propósito único muito bem planejado e estruturado: nas palavras do autor, “o espectro da total dominação”.
O livro relata os interesses por trás das guerras que têm se sucedido desde a queda do Muro de Berlim em 1989 (Afeganistão, ex-Iugoslávia, Iraque, Líbia e a “primavera árabe”, Ucrânia, Síria, Israel e Palestina...) e o suposto fim da guerra fria, com a dissolução da União Soviética. Não só os interesses, mas as estratégias utilizadas por esses interesses, que parecem bastante complexas, mas são muito bem articuladas por atores obstinados no seu propósito: a hegemonia do poder mundial.
A qual poder está-se referindo? O militar? O econômico? O do controle dos recursos energéticos e das matérias primas estratégicas? O da ferrenha defesa do dólar como moeda de troca mundial? O do controle dos meios de comunicação? O poder do consenso ideológico construído por todos esses outros poderes?
No entender do cientista político, o agente principal que procura consolidar e estender seu poder até os rincões mais remotos e tradicionais do mundo é personificado pelas corporações que de Wall Street controlam o selvagem sistema capitalista que está a assolar as terras e os povos do planeta. E este agente, embora enraizado na maior cidade da mais poderosa potência do mundo atual, tem suas ramificações disseminadas em todos os centros de poder menores espalhados pela Terra. Não há lugar em que pessoas e instituições não estejam a serviço dos interesses alienígenas do grande propósito da total dominação. E tais serviçais são treinados e apoiados para parecer que sua submissão a anseios egoístas tais como posse e poder pessoal sejam confundidos pelo povo ignaro com liderança alternativa a regimes locais contaminados pela corrupção e totalitarismos. Os serviçais espoliadores são tidos como libertadores.
O livro mostra que tem sido assim ao longo da História recente: estruturas corruptas e ditaduras primeiro são cultivadas no seio de países que sejam alvo de interesses, depois, quando ameaçam fugir do controle de seus criadores, têm que ser drasticamente eliminadas, às vezes ao custo da total destruição de um mínimo de autoridade e infraestrutura local, e da identidade, da cultura, da História de povos milenares. Está-se vivendo uma época de barbárie, estão-se cometendo crimes em nome do combate ao terrorismo muito piores, e numa proporção enormemente maior, que os crimes daqueles que podem ser considerados de fato extremados terroristas.
O livro, publicado em julho de 2016, não chega a analisar os sinais contundentes da guinada mundial para posicionamentos conservadores mais radicais, como o Brexit na Comunidade Europeia, a eleição de um presidente neoliberal na Argentina, o impedimento da presidenta democraticamente eleita no Brasil, a eleição de Trump nos EUA...Também não analisa como esta guinada está afetando a América Latina como um todo, na qual a Venezuela é, ainda mais que o Brasil, o exemplo mais contundente do que pode acontecer a um país detentor de recursos energéticos estratégicos cujo governo eleito não se curva aos interesses dos agentes da desordem mundial vigente.
Pudera o livro de Moniz Bandeira fosse lido e compreendido por todos aqueles no mundo para quem liberdade e identidade (igual a soberania), justiça social e responsabilidade sobre o Planeta Terra sejam valores acima das nefastas ambições pessoais de posse e poder. Desta compreensão depende a possibilidade dos povos não serem rebanhos tangidos por consensos construídos por poderosos meios de comunicação que estão a serviço da total dominação. Povos arrebanhados só fazem sustentar os golpes e os oportunistas de plantão que submetem e destroem nações.
E vida longa a Moniz Bandeira. Que sua inquestionável capacidade de acessar e integrar fontes documentais ainda nos brinde com um volume destinado à América Latina e ao Brasil.