domingo, 24 de abril de 2022

“A arapuca estadunidense – uma Lava Jato mundial”

“A arapuca estadunidense – uma Lava Jato mundial” é o título da tradução brasileira (Kotter Editorial, 2021) do livro no original em francês “Le piège américain” (A armadilha americana, 2019), de Frédéric Pierucci e Matthieu Aron. A tradução do título é muito apropriada: “arapuca” traduz melhor que “armadilha” o esquema da lawfare estadunidense que visa angariar bilhões de dólares em multas e absorver ou destruir grandes empresas pelo mundo afora, aquelas que ameacem a hegemonia das empresas do Tio Sam. E o subtítulo no Brasil também é muito oportuno: embora o livro pouco mencione nosso país, o esquema que vitimou o autor Frédéric e a multinacional francesa na qual trabalhava, a Alstom, é o mesmo que vitimou Lula e outros políticos progressistas no Brasil, bem como a Petrobras, a Odebrecht, a Embraer e outras grandes empresas brasileiras, que estavam vencendo concorrências internacionais.

A Alstom era uma multinacional francesa ─ hoje absorvida pela General Electric estadunidense ─ que atuava nas áreas de energia e transportes, fabricando, instalando e mantendo centrais elétricas (desde termelétricas até nucleares) e modernas redes de trens rápidos. Frédéric ─ ou Fred ─ em 2002 era alto funcionário executivo da Alstom, instalando uma central elétrica na Indonésia. Em 2013, quando fazia viagem entre Singapura e Paris, Fred desembarcou no aeroporto JFK em Nova Iorque, para conexão. Foi preso pelo FBI, acusado de participar de esquema de corrupção da Alstom em 2002, que subornou autoridades indonésias para ganhar aquela concorrência. Começava então o périplo cuja sordidez só mesmo a leitura do livro pode descrever a contento.

Fred ficou preso por dois anos em prisões de segurança máxima nos EUA, depois de um longo e tortuoso julgamento orquestrado pelo Departamento de Justiça com base na legislação extraterritorial ─ aplicável fora dos EUA ─ Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA na sigla em inglês). A lei, em teoria, destina-se a coibir a corrupção internacional, sempre que ela seja considerada danosa aos interesses dos EUA e suas empresas. São os tribunais estadunidenses que julgam os casos de corrupção, os considerados culpados são condenados à prisão e a pagar custosas multas.

O relato de Frédéric Pierucci revela que a realidade é bem diferente da teoria. Ele alegou em sua defesa que, embora soubesse do pagamento das propinas ─ uma prática quase obrigatória nas concorrências internacionais de grande monta ─, não tinha nenhum conhecimento de detalhes das transações feitas com os “consultores” indonésios, nem nunca recebera nenhum benefício adicional pessoal pela concorrência ganha. Ademais, o alegado delito já estaria prescrito. Mas seus argumentos eram criminosamente ignorados pela justiça estadunidense.

Aos poucos, Fred foi entendendo o esquema em que tinha sido enredado. Ele era um refém escolhido para pressionar a Alstom a reconhecer culpa perante a lei estadunidense, e assim pagar pesadas multas, que chegaram a 772 milhões de dólares. Muito mais que isso, Fred foi o bode expiatório para ameaçar os dirigentes maiores da Alstom ─ verdadeiros culpados pelos subornos praticados pela multinacional francesa ─ e assim obrigá-los a facilitarem sua venda para a concorrente estadunidense General Electric. Na descrição dos julgamentos e negociações, Fred revela como os EUA anulam a possibilidade de defesa dos acusados, que, chantageados, acabam capitulando e assumindo as culpas que lhes são imputadas. Fred foi multado, mantido condenado e preso, enquanto o dirigente sênior da Alstom foi preservado impune para que, sob a ameaça de penas ainda maiores, atuasse em prol da transferência da Alstom para a GE, objetivo final de toda a trama. A lei estadunidense na verdade quer as empresas estrangeiras, e não a justiça e o combate à corrupção.

Outras revelações são feitas no livro: se o esquema lawfare não der resultado, as empresas, os governos e os funcionários são pressionados via punições econômicas: embargos, multas, discriminações, etc. E os estadunidenses detêm o domínio da espionagem eletrônica internacional de dados, sempre têm vantagem sobre suas vítimas. A supremacia estadunidense torna os EUA capazes de qualquer extorsão.

A tradução brasileira do livro tem o mérito de adicionar notas de rodapé que procuram fazer a relação entre o caso da Alstom e a Lava Jato no Brasil. O livro apresenta dados que mostram que só Odebrecht, Embraer e Petrobras pagaram aos cofres estadunidenses mais de 667 milhões de dólares em multas entre 2016 e 2018. Anos da Lava Jato, que utilizou os mesmos expedientes das delações premiadas, em que os denunciados são pressionados a fazer afirmações sem prova que são consideradas verdadeiras, para incriminar inimigos no lawfare.

Um trecho do posfácio do livro, de autoria de Allain Juillet, ex-presidente da Academia de Inteligência Econômica da França: “─ Diante dessa lógica imperial baseada no poderio militar, no sistema judicial e na capacidade digital, o oponente não tem escolha: deve se submeter, colaborar ou desaparecer”.

 

sábado, 2 de abril de 2022

A falácia da excelência do saneamento em Ponta Grossa

Publicado no Jornal da Manhã em 10/05/2022.

Ponta Grossa tem sido insistentemente alardeada, pela Sanepar e pela mídia, como uma das cidades melhor saneadas do país. Nos últimos anos os jornais da cidade não se cansam de repetir essa notícia. Mas um breve exame revela o quanto essa afirmação falta com a verdade.

Em 2015 a Câmara Técnica do Comitê de Bacia do Tibagi, da qual faz parte a Sanepar, propôs a reclassificação de vários rios com base nos critérios de qualidade das águas de resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama. As reclassificações propostas foram todas no sentido de reconhecer que os rios estavam mais poluídos que na classificação anterior. Entre os rios rebaixados estavam o Pitangui, os arroios Gertrudes e Olarias, todos rios urbanos de Ponta Grossa. Para eles foi então proposta a classe 4 do Conama, aquela que qualifica os rios mais poluídos. Esta proposta de reclassificação de 2015 era um reconhecimento de que a poluição dos rios urbanos de Ponta Grossa estava fora de controle.

Em 2017, durante os trabalhos de implantação do Lago de Olarias, parque urbano de Ponta Grossa, análises da qualidade da água realizadas pela UEPG a pedido da prefeitura, mostraram poluição elevada. Os dados foram considerados sigilosos, e não foram divulgados.

Hoje não é necessário realizar análises: basta visitar as cabeceiras dos arroios urbanos que divergem dos espigões centrais da cidade para constatar que todos estão muito poluídos. São esgotos a céu aberto.

Então, como é possível que a Sanepar alardeie que Ponta Grossa é uma das cidades melhor saneadas do país? As outras estão afogadas em esgoto? A explicação é outra. É possível que Ponta Grossa seja sim uma das cidades com maior cobertura das redes de água potável e esgoto. Mas só isso não garante que o saneamento esteja funcionando. E quem sofre são os rios, que na verdade recebem uma carga de esgotos não contabilizada.

Ponta Grossa é uma cidade muito antiga, principalmente nas edificações ao longo dos espigões centrais. Trata-se de um sítio urbano singular: o centro e as principais radiais situam-se em altos topográficos, deles divergem as cabeceiras dos rios da região, todos da bacia do Tibagi. Antigamente, com a população muito menor, os esgotos eram ligados diretamente à rede pluvial, que se destina a captar a água das chuvas, que vai para os rios. E não à rede própria para os efluentes, que é direcionada para as estações de tratamento de esgotos. Mesmo que a rede de esgoto passe na porta da edificação antiga, a descarga continua sendo feita na rede pluvial. Assim, quem acaba recebendo os esgotos dessas instalações antigas e inadequadas são os arroios urbanos, e não as estações de tratamento. Por esse motivo todos os rios urbanos da cidade continuam poluídos, apesar do crescimento da rede de esgotos.

A remediação do problema é viável, mas demandaria um detalhado e paciente trabalho de verificação, edificação por edificação, do correto despejo dos esgotos produzidos na rede apropriada, e não na rede pluvial que leva aos arroios. Um trabalho demorado, custoso, impopular, que por certo não traria votos nem prestígio. Mas deveria, ao final, alcançar a limpeza dos rios de Ponta Grossa e de toda a bacia do Rio Tibagi, devolvendo à população águas limpas, permitindo aos moradores reintegrá-las ao seu salutar dia a dia e à sua identidade.