sábado, 29 de janeiro de 2022

Diálogos celestiais

─ Estimado Pedro, tenho notado que você anda macambúzio, deprimido. O que está acontecendo?

─ Ah Mestre, não ligue não. Acho que sou eu que sou perfeccionista demais. Diante do maravilhoso universo que vem se diferenciando desde o Big Bang, já lá vão mais de quatorze bilhões de anos, o que é um probleminha à toa? Veja as galáxias, as nebulosas, os fenômenos celestes fantásticos, os mundos habitados e suas profusões de formas de vida! A criação é empolgante. O universo é de uma beleza comovente!

─ Acho que trabalhamos bem, Pedro. E a natureza vem dando conta de sua parte com primor. O melhor de tudo é que criamos e as criaturas adquirem existência própria. Libertam-se. Surpreendem-nos trilhando caminhos que nem tínhamos imaginado antes. O livre arbítrio foi uma grande sacada! Mas... então, qual a razão de sua apreensão?

─ Mestre, devo penitenciar-me. Peço seu perdão, e o perdão da divina providência. Eu é que ainda não me desapeguei do desejo que a criação siga certos caminhos que imaginamos. Ainda não aprendi que a natureza escreve certo por caminhos tortos.

─ Pedro, essas palavras, dizem, são dirigidas a nós, não à natureza...

─ Mas nós sabemos bem a quem deveriam ser dirigidas. Estamos aqui só dando conta da missão que nos foi confiada. O pontapé inicial.

─ Deixe de conversa fiada. Afinal, qual o motivo de sua apoquentação?

─ Lembra-se daquele planeta miraculoso, com atmosfera que o abraça, protege e cinge de azul, oceanos imensos, sucessão de dias e noites, verões e invernos, solos férteis, riquíssimas jazidas de recursos naturais e energéticos, onde a água naturalmente é purificada e distribuída sobre os continentes, vitalizando-os? Atributos que fazem dele a moradia de uma miríade de formas de vida, que coexistem, interagem, evoluem?

─ Lembro sim. Não é aquele terceiro planeta de um sistema solar na periferia de uma bela e luminosa galáxia espiral, uma preciosidade única entre as infindáveis preciosidades do universo?

─ Isso. Chamam-na Via Láctea. Os nativos chamam o planeta de Terra. É um planeta singular. Ainda jovem, comparado com a idade do universo. Só tem pouco mais de quatro bilhões de anos. Está bilhões de anos atrasado em comparação a outros mundos. E as formas de vida que lá evoluíram também são muito jovens. Estão no início das tentativas de consolidar uma civilização que perdure.

─ Você quer dizer, que sobreviva...

─ Isso! Sabemos bem como funciona, não é? Quando as civilizações prosperam em engenhosidade e conquistas, se a sabedoria, a ética e a solidariedade não evoluem junto, a cupidez supera o bom senso; é a perdição. Já vimos acontecer em outros mundos que temos criado. Já aconteceu mesmo lá na Terra: povos que aprenderam a cultivar alimentos, e esgotaram os solos; aprenderam a guerrear e a conquistar, e amealharam mais inimigos do que podiam combater; aprenderam a construir navios, e destruíram florestas e seus solos...

─ Mas Pedro, sabemos que esses desacertos fazem parte do processo de aprendizado e evolução. É com os erros, e o risco de extermínios catastróficos, que se aprende, e que a sabedoria e a ética vão sendo edificadas. Pouco a pouco, uma pedra a cada vez nos alicerces da temperança e sensatez. É preciso chegar à beira do abismo para enxergar que se tomou o caminho equivocado, e que é preciso encontrar outro caminho. Não é assim?

─ Sim, sim... é assim! Eu já deveria estar vendo este roteiro com mais compreensão.

─ Então, por que esses sobrolhos abespinhados?

─ Mestre, por isso lhe peço perdão. Não consigo evitar a preocupação com a espécie de nativos da Terra que se considera a mais evoluída do planeta. Nutro-lhes uma afeição que nem sei explicar. Eles parecem estar indo desembestados para o abismo. Dá a impressão que não vão saber enxergar o perigo e parar a tempo de evitar o desastre, e de escolher outro caminho.

─ Por que você diz isso? O que acontece lá que é diferente dos outros dilemas evolutivos que já presenciamos?

─ Ah, muita coisa diferente está acontecendo lá, Mestre. A soberba, a voracidade e o desvario dos nativos dominantes parecem não ter fim. Neles o instinto selvagem dos répteis supera o instinto amoroso dos mamíferos. Manifesta-se na ânsia de guerras de dominação, no empenho em engendrar armas cada vez mais destrutivas, no afã de acumular riquezas e bens supérfluos, na sofreguidão de sobressair-se dentre os semelhantes, ainda que por razões ilusórias e meios ignóbeis... Enganar, e enganar-se, está passando a ser a especialidade daquela civilização. Que, desgraçadamente, alcançou progresso tecnológico prodigioso, vilmente utilizado para promover o caos, e não o esclarecimento...

─ Você está sendo incrédulo, Pedro. Depois do caos vem a bonança...

─ Se sobreviverem ao caos. Juntaram tanto poder destrutivo em armas sofisticadas, tanta capacidade de fomentar a confusão com a tecnologia de informação, tanta cupidez insaciável e negligência com o planeta e os outros seres vivos, que me pergunto se vão conseguir despertar a tempo de evitar uma catástrofe definitiva, sem retorno.

─ Calma, Pedro. Vejo que você de fato apegou-se àqueles nativos. Entendo o motivo. Eles são como se fossem nossos filhos, os mais preocupantes, e os mais promissores. Temos dificuldade de deixá-los escolher o próprio destino. Queremos que aprendam, e evoluam. Que enxerguem que para além das conquistas frívolas que disputam hoje, há maravilhas de que ainda mal suspeitam. Elas estão no fundo dos mares, nas profundezas do cosmo, nos rincões dos poderes da mente e da consciência, nas conexões das formas de vida, na descoberta da completude da solidariedade, do amor, da paz edificante, do bem viver...

─ Sim, por isso me penitencio. A dúvida nasceu no meu ser, e eu a transfiro para aquela civilização, ainda muito jovem. Eles são mesmo muito imaturos! Talvez possamos dizer que estão na pré-adolescência da civilidade.

─ Estão mesmo. São crianças, deslumbradas com brinquedos novos. Ainda não perceberam as ameaças escondidas nesses miraculosos, mas perigosos, brinquedos. Já vimos isso antes, nas tantas outras civilizações pelo universo que são muito mais antigas...

─ O que mais me preocupa é que lá na Terra associaram-se algumas condições potencialmente calamitosas: os enormes arsenais de armas de destruição em massa, a desfaçatez com a natureza do planeta que é a razão da profusão de vida por lá ─ veja só, estão comprometendo até o clima que distribui a água purificada pelos continentes ─, a mesma desfaçatez com a verdade ─ manipulam para o consumo alucinado de coisas e ideias ─, o deslumbramento com as tecnologias e a falta de sobriedade para saber usá-las bem, o cultivo da cupidez e do ter em detrimento do despojamento e do ser, a desigualdade na distribuição das benesses do planeta...

─ Pedro, você está ficando velho e impressionável. Já vimos isso tudo muitas vezes. Já sabemos o que deve acontecer. De fato, ainda nem alcançaram a adolescência da civilidade.

─ A pré-adolescência é uma fase de muita presunção, insegurança e riscos...

─ Sim! Ou vão aprender e ultrapassar seus dilemas, evoluindo para um novo estágio com valores mais compatíveis e solidários, ou vão perecer. Como já pereceram outras espécies que surgiram no universo. E que eram promissoras, mas não souberam vencer a soberba, a ganância, o apetite. Foram substituídas por outras espécies, mais viáveis. Como foi quando os mamíferos, de onde surgiu a espécie que o preocupa, substituíram os enormes répteis. Tudo vai dar certo, acalme-se.

─ Vou tentar, vou tentar... E vou rezar por aquele lindo planeta e seus encantadores nativos.

 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Leonardo Boff: "A humanidade na encruzilhada: a sepultura ou…"

Texto de autoria de Leonardo Boff, publicado em 13/01/2022 em 
https://leonardoboff.org/2022/01/13/a-humanidade-na-encruzilhada-a-sepultura-ou/ 
 

O Covid-19, ao afetar todos os humanos, deu-nos um sinal que cabe interpretar. Na  natureza nada é fortuito. É superada a visão mecanicista de que a natureza e a Terra não têm propósito. Sendo vivos, são portadores de sentido e se inserem no quadro geral do processo cosmogênico que já possui 13,7 bilhões de anos. Se todos os elementos não se tivessem sutilmente articulado, durante bilhões de anos, não estaríamos aqui para escrever sobre estas coisas.

Qual o sentido mais imediato que a natureza nos está revelando com a intrusão do coronavírus? O sentido nos vem em forma de pergunta:

”Parem com o assalto sistemático e depravador dos ecossistemas, das florestas, dos solos, das aguas, da biodiversidade; as suas megacorporações industrialistas e extrativistas, as mineradoras, o agronegócio empresarial em parceria  com a indústria de agrotóxicos, os ejetores de giga-toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera, os causadores da erosão da biodiversidade, vocês estão destruindo as bases que sustentam a sua própria vida; estão cavando a própria sepultura no quadro de um tempo previsível; não os camponeses familiares, os pobres da terra, mas vocês estão destruindo os habitats de milhares de vírus presentes nos animais; buscando sobreviver, encontraram nos humanos um hospedeiro para a sua sobrevida à custa da vida de vocês mesmos; o falso projeto de crescimento/desenvolvimento ilimitado de sua cultura consumista, já não é suportado pela natureza e pela Terra, planeta velho e limitado em bens e serviços; como reação à violência contra mim – a natureza e a Mãe Terra –  já lhes enviei vários vírus que os atacaram; mas não viram neles um sinal;  não aprenderam a lê-lo, nem tiraram a lição contida neles; vocês só pensam na volta à velha e perversa normalidade; digo-lhes: ou vocês mudam de relação para com a natureza e para com a Mãe Terra, relação de cuidado, de respeito a seus limites, de autolimitação da voracidade de vocês, sentindo-se efetivamente parte da natureza e não seus pretensos donos, ou serão assolados por vírus ainda mais letais;  advirto: um deles pode ser tão resistente que mostraria a total ineficácia das vacinas atuais e grande parte da humanidade seria consumida pelo Next Big One, o derradeiro e o fatal. A Terra e a vida nela, especialmente, a microscópica, não perecerão. A Terra viva continuará a girar ao redor do Sol e a se regenerar, mas sem vocês. Portanto, cuidem-se, pois, os tempos estão em contagem regressiva. A natureza é uma escola, mas vocês não quiseram se matricular nela e por isso, irracionalmente, estão sedimentando o caminho que os levará à própria autodestruição. E mais não digo”.

A pandemia afetou, de forma global, a humanidade. Já que a forma é global, obviamente, a solução deveria ser também global: discutida e decidida globalmente. Onde está um centro plural e global para pensar e encaminhar soluções para os problemas globais? A ONU não cumpre seus objetivos fundacionais, pois, se transformou numa agência que defende os interesses das nações poderosas que possuem direito de veto, particularmente no organismo maior que é o Conselho de Segurança. Somos reféns da obsoleta visão de soberania nacional, que ainda não se deu conta da nova fase da história humana, a planetização que faz com que todas  as nações estejam interconectadas e que o conjunto delas possui um mesmo destino comum. Estamos todos dentro do mesmo barco: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva, advertiu o Papa Francisco. Esse é verdadeiro sentido da globalização  ou da planetização. O tempo das nações passou. Temos que construir a Casa Comum dentro da qual cabem as várias nações culturais, sempre entrelaçadas formando a única Casa Comum, incluída a natureza.

A pandemia deixou claro o quanto desumanos e cruéis podemos ser: os ricos aproveitaram a situação e se enriquecem muito mais enquanto os pobres ficaram muito mais pobres. A cultura vigente é competitiva e muito pouco cooperativa. O lucro conta mais que a vida. As vacinas foram desigualmente distribuídas, ficando os pobres expostos à contaminação e à morte. Um continente inteiro, com mais de um bilhão de pessoas, a África, foi esquecida. Apenas 10% de sua população foi vacinada. A morte campeia especialmente  entre crianças devido à insensibilidade e desumanidade de nossa civilização mundializada. É o império da barbárie que nega qualquer sentido de civilização humana. Com razão, analistas, especialmente biólogos, se perguntam: temos direito ainda de viver sobre este planeta? Nossos modos de ser, de produzir e de consumir ameaçam todas as demais espécies. Inauguramos uma nova era geológica, o antropoceno e até o necroceno, vale dizer: a grande ameaça mortal à vida no planeta não vem de um meteoro rasante mas do ser humano barbarizado, especialmente, entre os estratos mais opulentos da população. Entre os pobres e marginalizados se conserva ainda humanidade, solidariedade, mútua ajuda, cuidado das coisas comuns como se tem comprovado durante este tempo sombrio de pandemia mundial.

A intrusão do Covid-19 representa um convite à reflexão: por que chegamos até ao atual ponto, ameaçados por um vírus invisível que pôs de joelhos as potências militaristas e seu fantasioso impulso imperial? Para onde vamos? Que mudanças devemos operar se quisermos garantir um futuro para nós e para nossos descendentes? Os trilhardários globais (0.1% da humanidade) sonham com uma radicalização total da ordem do capital, impondo a todos um despotismo cibernético que vigiará e reprimirá todos os opositores e que garantiria suas fortunas. O estômago da Mãe Terra não digerirá tal monstruosidade. Junto com a resistência humana, indispensável, anulará suas pretensões, negando-lhes as bases ecológicas, incontroláveis por eles, para esse perverso projeto.

Como nunca antes na história o destino de nossas vidas depende das decisões que coletivamente devemos tomar. Caso contrário, conheceremos o caminho já percorrido pelos dinossauros. Não queremos isso. Mas estamos numa encruzilhada

Leonardo Boff escreveu Cuidar da Terra – proteger a vida como escapar do fim do mundo,Record, Rio de Janeiro 2010; com J.Moltmann, Há esperança para a criação ameacada? Vozes, Petrópolis 2013.