segunda-feira, 25 de julho de 2022

Cultura da paz

Muito acertadamente, as vozes que estão se manifestando pela recuperação da democracia e da civilidade no Brasil estão falando em “cultura da paz”. Porque talvez nunca tenhamos tido no país um momento de tanta exaltação da violência e da barbárie.

Se o cidadão brasileiro ainda tem dúvidas sobre o significado do momento que estamos vivendo, é bom lembrar alguns dados: glorificação de torturadores; explícito apreço de criminosos milicianos; convite ao armamento dos “cidadãos de bem”, que são os ricos, brancos, caçadores, atiradores e colecionadores de arsenais; proposital negligência no enfrentamento da pandemia que ceifou já quase setecentas mil vidas; escárnio com as vítimas da pandemia e seus familiares; projetos de lei para isentar policiais de morte em ação; afirmação que dissidentes políticos e ideológicos devem ser exterminados; ofensas chulas a todos e tudo que não seja narcísico espelho; acordos espúrios com o que há de mais sórdido na política, o nefasto “centrão”, que é o balcão de venda de votos; orçamento secreto, sigilo de dados; malabarismos viciosos com o orçamento da União; escatologia; negacionismo; perseguição à cultura, às artes, à ciência; negligência com a saúde e a educação; explícito incentivo à violência; mentiras sobre o sistema eleitoral; agressões e mentiras sobre os poderes da República; manipulação eleitoreira da fé religiosa; benesses sociais temporárias em período eleitoral... Difícil entender quais são as razões de tal despropósito ainda não ter motivado o empenho das instituições em afastar do poder quem está pervertendo a jovem democracia brasileira, e ameaçando o futuro da nação. Com certeza não serão só as razões visíveis, que vão desde a inescrupulosa cupidez até o inconfessável rabo preso.

O Brasil, que já foi o destino de refugiados e perseguidos de todo o mundo, que aqui buscavam esperança de acolhimento, dignidade e prosperidade, hoje fermenta a cizânia entre antes amigos e irmãos. A violência, até o extremo do ensandecido assassinato pelas multiplicadas armas de fogo, deu lugar às inócuas pilhérias, que antes apaziguavam discussões ideológicas.

Nesse cenário, a cultura da paz parece ser essencial. Paz: o desarmar-se. Não só da arma de fogo real ou simbolizada com o gesto das mãos. Mas encarar o outro, o diverso, como alguém que tem os mesmos direitos, e não como o inimigo a ser combatido e exterminado. E procurar, através da interação e do diálogo, encontrar o equilíbrio justo de direitos e deveres. Diálogo baseado nos três princípios que há mais de dois séculos a humanidade já reconheceu: liberdade, igualdade, fraternidade. A única qualidade que não se deva tolerar talvez seja aquela da negação do direito do outro: a presunção da supremacia.

Cultura da paz! Muito apropriadamente foi dito: o poder pode mudar rapidamente; modos de produção e relações sociais demoram mais; cultura demora muito mais, pode exigir o tempo de gerações. Exemplos: a Revolução Francesa mudou o poder e mostrou-nos valores universais, mas ainda não aprendemos a praticar estes valores; a Lei Áurea libertou os escravos no Brasil, mas até hoje a escravidão não é só uma nódoa histórica, é um atavismo social e mental. Para não falar que Cristo é venerado há mais de dois mil anos! E ainda não compreendemos seus ensinamentos; pelo contrário, eles são cada vez mais deturpados.

A mudança cultural demanda perseverança, paciência, tempo. A cultura da paz, antídoto da cultura do ódio, demanda também fraternidade.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Diálogos infernais

─ Peçonha, que verborreia é essa que nossas escutas clandestinas estão arapongando lá dos quintos do céu?*

─ Nada pra se preocupar, Patrão. O pessoal de lá, o velho e seu ordenança, estão matraqueando sobre o tal planeta que é aquela pérola pra onde temos enviado todos os discípulos que doutrinamos noutros mundos. Selecionamos aqueles que se destacam no aprendizado das nossas malévolas ideias e práticas e mandamos pra lá.

─ Deixe de conversa fiada, filho de uma bruaca com um capiroto. O que é que estão tramando?

─ Estão preocupados com aquele país de tamanho continental, onde eles angelicalmente reuniram malditas maravilhas naturais sem fim: solos férteis, muita água boa, clima amistoso, florestas imensas e uma infinidade de seres vivos, mares piscosos, minérios, petróleo...

─ Chega, cão do diabo! Quanta lambeção! Mas me lembro que compensamos essas toleimas todas com algumas mefistofélicas diabruras, não foi?

─ Foi, foi, Patrão. Conseguimos colocar lá aqueles nossos rebentos mais encapetados. Mas eles são só uma parcela menor da população. Apostamos que eles vão conseguir dominar os demais; ou vão seduzi-los, ludibriá-los e aliciá-los ou vão exterminá-los.

─ Diga lá Peçonha, o que temos feito pra apoiar esses nossos arautos da cizânia no seu maléfico intento?

─ Ah, primeiro cuidamos da educação do povo. Décadas de educação insidiosa e odienta pra reverter os resquícios de solidariedade de gente degredada e refugiada de todo o mundo, que lá naquele país encontrava acolhimento e camaradagem.  Repetimos e repetimos que ideias de cooperação, justiça social e solidariedade são ou uma utopia inalcançável ou um engodo de falsos idealistas que vão tirar até as casas dos citadinos e as terras dos campesinos. Estão malignamente doutrinados, convencidos daquilo que queríamos. Que é preciso odiar os tais falsos idealistas, e exterminá-los a bala. Essa foi uma grande conquista nossa.

─ Como acreditaram nisso?

─ Ah, acreditaram! Toda a grande mídia está do nosso lado. Pertence aos nossos comparsas. E a mídia demoniza aqueles basbaques utópicos, desmoraliza-os.

─ Que mais fizemos?

─ Manobramos pra transformar revoltas populares espontâneas contra o aumento da tarifa de ônibus em revoltas contra o governo eleito de uma mulher. Foi fácil, com a mídia do nosso lado e o apoio dos nossos comparsas donos do dinheiro, dos jornais e das tevês, das empresas e dos latifúndios. E era uma mulher! Outra grande vitória. Nos apropriamos de uma revolta que no início ameaçou ser legítima indignação do povão. Manipulamos pra que a ira popular enfim derrubasse o governo eleito e desacreditasse a política e a democracia.

─ Desacreditar a democracia? Que danação é essa? Desacreditar o demo?

─ Não, não, Patrão. Democracia não é o governo do demo. É o governo do povo.

─ Malditas palavras que só servem pra tapear.

─ É isso mesmo, Patrão. Temos usado bastante o poder que as palavras têm pra tapear. Aqueles nossos missionários da doutrina da prosperidade estão engambelando o povo simples e pobre com as palavras. Juntam família, liberdade e fé, eles acreditam, nem suspeitam que estão empenhando as almas na nossa causa.

─ Isso tem sido suficiente?

─ Tem sido um bom começo. A mulher presidenta foi deposta, por uma razão diabólica: pedaladas fiscais. Todos os governos anteriores tinham pedalado, os posteriores voltaram a pedalar. Mas só ela foi deposta. Eficácia de nossos comparsas. Agiram muito bem. E os nossos missionários da prosperidade têm conseguido que o povo vote nos nossos devotos, que têm disseminado o ódio e a violência.

─ Decerto não ficou por aí?

─ Nããããão! Tratamos de prender um líder populista sindicalista que estava alimentando esperança no povão. Ele e seus principais aliados, todos pro xilindró. Nem foi preciso apresentar provas. Foi um tal de “ato de ofício indeterminado”, ou seja, inexistente. Foram denúncias não comprovadas, dentro de delações premiadas de bodes expiatórios que delatavam qualquer coisa pra se verem livres de seus próprios malfeitos. Uma façanha dos nossos comparsas juízes, que foram treinados pelos agentes daquele outro país mais ao norte. Que é quem de fato manda naquele mundo todo.

─ E isso bastou?

─ Por segurança, demos um jeito de eleger um pupilo muito especial. Patrão, cuidado com ele. Pode um dia querer vir desafiá-lo por aqui. Também não foi difícil idolatrar e eleger esse catecúmeno. Bastou disseminar mentiras e providenciar uma suposta facada. O povo acredita em tudo. Votou nesse nosso messias, de boa fé. E o caborteiro vem cumprindo muito bem a tarefa que esperamos dele: converter para a malevolência o povo daquele país que ainda acreditava nas coisas da nossa concorrência lá do alto. Veja só, um país de paz, que recebeu refugiados do mundo todo, que escapavam de guerras, perseguições e miséria que inspirávamos em seus países de origem, está virando uma terra de caos, sem lei nem porvir, em que vizinhos agridem vizinhos, familiares e antigos amigos brigam entre si, odeiam-se até a morte. E tratamos de armar os nossos, pra que de fato cheguem à morte. Estamos por aqui já recebendo várias almas que se perderam nesta nossa bem sucedida campanha de trevas, ódio e armamentismo.

─ É, parece que a situação está sob controle. Para o nosso lado.

─ Estamos fazendo a nossa parte. A concorrência lá de cima está tentando reverter nossas conquistas. Mas vai ser difícil pra eles. Além dos nossos cúmplices infiltrados na população, boa parte do povo encanta-se mais com nossas promessas que com aquelas da concorrência. Nossa doutrinação está dando diabólicos resultados.

* Ver o texto Diálogos celestiais, postado neste blog em 29/01/2022.

 

sexta-feira, 1 de julho de 2022

“Contato” – um retrato da civilização atual

O filme Contato (EUA, 1997, direção de Robert Zemeckis, com Jodie Foster e Matthew McConaughey nos papeis principais) é uma daquelas ficções científicas que têm o dom de fazer, através do ainda não sucedido, o real futuro e presente parecer mais evidente. É um prodigioso retrato da sociedade atual. O filme baseia-se no livro homônimo (1985) do célebre astrônomo e escritor Carl Sagan, que foi extremamente sagaz em perceber e descrever com maestria as reações da humanidade frente a acontecimento inusitado: o contato com inteligência extraterrestre.

Ellie (Eleanor), a protagonista principal, é uma jovem, talentosa e, sobretudo, perseverante e aguerrida astrônoma, que desde cedo torna-se obstinada em procurar contactar interlocutores distantes. Na infância dialoga com radioamadores, como uma angustiada tentativa de conectar com a mãe que ela não conhecera, morta durante o parto. Adulta, notável astrônoma, Ellie renuncia a atraentes convites acadêmicos para dedicar-se incansavelmente à sua paixão, renegada pelo meio científico. Traços marcantes de sua forte personalidade: brilho, rigor científico e ceticismo religioso.

A compreensão que Carl Sagan demonstra da natureza humana aparece no caráter dos personagens principais e nos eventos que se sucedem após o que pode ser um contato. O autor nos revela toda a vilania da sociedade estadunidense, desmascarando o falso glamour que nos é incutido por Hollywood. Cientistas e políticos roubam o mérito das descobertas, e mesmo encobrem-nas, para promoção de suas próprias carreiras. Relegam Ellie a um papel secundário na aventura da humanidade que se segue. Para desqualificá-la, não poupam apelar para o fato dela se declarar adepta da ciência, e não da fé religiosa. O livro e o filme têm preciosos debates entre Ellie e o teólogo Palmer Joss, com o qual ela chegou a ter um efêmero envolvimento. Não sem algumas discretas pitadas de questões de opção de gênero. Os dois questionam-se sobre acreditar ou não naquilo de que não se tem evidência, seja na ciência, seja na fé religiosa.

As reações coletivas às descobertas de Ellie também parecem ser uma reveladora visão do comportamento social: imensas romarias de fanáticos, programas televisivos contraditórios sobre a natureza e a credibilidade das revelações, criação de novas crenças religiosas, oportunismos e mercantilismos de toda espécie, radicalismos terroristas. E, principalmente, o negacionismo, o repúdio extremado à ciência que afronta a segurança do senso comum e de tudo o que já se conhece, ou que se julga conhecer.

Há várias preciosidades ao longo do filme. Uma delas é a resposta de Ellie à questão do que ela perguntaria a um extraterrestre supostamente muito mais evoluído que nós: “Perguntaria como foi que sobreviveram à adolescência de sua civilização”. Uma referência ao desvario da adolescência de nossa própria civilização, e aos temores de que não sobrevivamos a ela.  Outra é a afirmação de que a humanidade é uma espécie interessante: “capaz de sonhos tão maravilhosos, e de pesadelos tão pavorosos”.

A trama tem ainda o grande mérito de um clímax que não abandona os seus principais temas: o contato, a ciência, a tecnologia versus fé; a apropriação que é feita pelos detentores do poder de tudo aquilo que subverte o conhecimento e o consenso.

Contato é uma história imperdível. Atualíssima, apesar de estar completando seu jubileu de prata no cinema. Convincente transposição para a tela do ótimo livro de Carl Sagan.