sábado, 27 de junho de 2020

Trágicos erros involuntários


Marcam-me a memória dois trágicos e pungentes erros involuntários, tomei conhecimento deles pelo noticiário, já lá se vão décadas.
Um deles foi o de um pai que, durante as férias, foi encarregado pela mãe de, logo após o almoço, levar o filho de três anos à casa da avó. Nesse meio tempo, um colega de trabalho pediu-lhe uma ajuda inesperada. Ele, de carro, no caminho deu uma passada, era para ser rápida, pelo escritório. O filho adormecido na cadeirinha, não quis acordá-lo, resolveu deixá-lo ali no carro fechado, estacionado ao relento, enquanto rapidamente atendia ao pedido do colega. Envolveu-se na questão de trabalho, esqueceu do filho. Só lembrou quando recebeu o telefonema da preocupada avó. A criança não sobreviveu, nesse meio tempo o sol, antes oculto atrás de nuvens, aparecera inclemente.
O segundo trágico erro foi o da tripulação do avião de carreira levando passageiros de Marabá a Belém, à noite. Saindo de Marabá, o rumo do avião deveria ter sido fixado no azimute 27.0. Equivocadamente, foi fixado em 270. O erro só foi percebido tarde demais. O avião encontrava-se em meio à Floresta Amazônica, sem combustível. O resultado foi um pouso forçado em meio à selva, com o triste saldo de três dezenas de mortos ou gravemente feridos. Piloto e copiloto sobreviveram. O erro foi consequência de uma alteração na maneira de programar os instrumentos de bordo, implementada poucos meses antes do acidente.
Quando relembro estes dois casos, rezo para que os envolvidos tenham conseguido perdoar a si mesmos pelos involuntários trágicos erros dos quais foram protagonistas. Imagino que eu mesmo poderia ter cometido erro parecido. Seria capaz de perdoar-me?
Mas nos tempos atuais, não consigo deixar de comparar aqueles trágicos erros com o que estamos vivendo neste momento no Brasil. O país desgovernado frente à pandemia do Covid-19 já conta dezenas de milhares de perdas humanas, que poderiam ter sido evitadas. E ainda nem chegamos ao pico do contágio. E o erro não se limita à desfaçatez com a pandemia, a qual está ajudando a esconder outros erros, econômicos, sociais e diplomáticos. O Brasil tornou-se ameaça e piada internacional.
O erro neste caso teve muitos protagonistas. Todos aqueles que acreditaram na promessa de um governo sem os vícios de corrupção e da velha política clientelista são  os protagonistas deste erro. Involuntário? Para alguns sim, para outros não. Não é possível alegar desconhecimento do erro. O que esperar de quem escancaradamente defendia a tortura, exaltava milicianos criminosos e o armamentismo, vociferava descrença na democracia e na justiça? Ainda assim, confundidos pela mídia facciosa e pelas eficazes tecnologias de desinformação, muitos foram iludidos, e cometeram o erro involuntariamente. Por esses, rezo também para que perdoem a si mesmos, para que reconheçam o erro cometido, e ajudem a repará-lo e a remediar suas consequências.
Entretanto, muitos incorreram no erro intencionalmente, tendo plena consciência dele. Pelo fato de se identificarem com a violência e a insanidade nele contidas. É aquela estridente fração da população lacaia de Tânato, regida pelo segregacionismo nascido do medo e do egoísmo. Falta-lhe humanidade.
Estes não estão a carecer que lhes inspiremos perdão. Estes carecem de iluminação, de discernimento. E muitos, de internação.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Ódio: milenar estratégia de dominação

Publicado no Jornal da Manhã em 25/06/2020.

No último final de semana (30-31/05/2020) entristecedoras imagens viralizadas pela mídia digital escancararam-nos o ódio que está sendo cultivado, e que está prosperando, entre nós, no Brasil: os mascarados com tochas alusivas à criminosa supremacia branca da Ku Klux Klan em Brasília, a manifestante com o taco de beisebol em São Paulo, os confrontos com bombas e balas de efeito moral pelo país. Até nos EUA, a nação que contraditoriamente arroga-se ser a guardiã da democracia e das liberdades do mundo, reacende-se o violento ódio racial, após o estrangulamento do cidadão negro já rendido pelo policial branco.
Os acontecimentos nos mostram que, no Brasil e no mundo, ainda não aprendemos, com tantas lições ao longo da História, que o ódio é a arma dos conquistadores para governar. “Dividir para conquistar” tornou-se um preceito universal. Assim fizeram as nações imperialistas ao longo dos séculos, assim o fazem no presente. Assim agem todos aqueles sórdidos poderes entremeados na estrutura social onde quer que seja, com a finalidade de perpetuar os privilégios de uns poucos à custa da submissão e miséria de muitos. Oxalá nos servisse de exemplo e alerta o ódio genocida cultivado entre etnias, religiões, castas, tribos, na Índia, no mundo árabe, na África, entre os povos da América pré-colombiana...
A humanidade vive um momento inusitado, de penosa transição. Deste momento singular podemos evoluir para uma civilização mais solidária, harmoniosa, pacífica, copiosa. Ou podemos mergulhar num colapso e num retrocesso de imprevisíveis consequências, mas certamente catastrófico. Temos sofisticadas tecnologias de comunicação e de manipulação da opinião, acumulamos armas de destruição em massa que nos tornam muito perigosos,  para o planeta, para nós mesmos. Mas não alcançamos ainda o discernimento e a compaixão que nos esclareçam se caminhamos para a iluminação ou para a barbárie das trevas.
Talvez nunca antes tantos teólogos, antropólogos, sociólogos, psicólogos, neurocientistas, historiadores, filósogos tenham nos alertado tão inquietantemente a respeito da paradoxal “natureza humana”. Abrigamos anjos e demônios dentro de nós. Temos instintos selvagens e vislumbres celestiais. Nosso cérebro ora age como aquele de um réptil, primitivo e egoísta, ora como o de um selvagem mamífero a defender ferozmente a prole, ora como uma inteligência obstinada com o domínio do outro. Por vezes um desavisado laivo de compaixão nos revela que somos a espécie mais ameaçadora e ao mesmo tempo mais promissora do planeta.
Com a capacidade de disseminar ódio e de destruir que nossa engenhosidade já nos trouxe, está na hora de usar nossa inteligência para a compreensão de que já não somos mais um bando de feras cujo único ou primordial desígnio seja impor-se e sobreviver. No Século XXI tornamo-nos esta complexa sociedade que tanto pode destruir-se quanto emancipar-se para uma civilização de compartilhada prosperidade.
Qual caminho vamos escolher?