domingo, 25 de fevereiro de 2024

Bando de narcisistas

 Publicado no Jornal da Manhã e no Diário dos Campos em 27/02/2024.

Uma querida amiga psicanalista explicou-me o verdadeiro sentido da palavra “narcisista”: não é, como eu pensava, só aquele que se apaixona pela sua imagem no espelho; é, sim, aquele que julga que sua imagem é a única aceitável, e que rejeita e condena todas as demais. Rejeitando o diferente, empenha-se em doutriná-lo e em transformá-lo na própria imagem; ou, se for o caso, simplesmente exterminá-lo.

O narcisismo é, portanto, algo muito mais destrutivo que o egocentrismo. Este é só um filho do narcisismo, irmão do egoísmo, indiferença, frivolidade, alheamento, vaidade, soberba, inveja, ciúme, ambição, negacionismo, agressividade, hipocrisia, clientelismo, fisiologismo... É o narcisismo que empurra os seres humanos a serem dominadores e violentos. É ele que move os tiranos e as tiranias às conquistas e às guerras. É ele que seduz para os desatinos de poder, de exploração, de concentração e acúmulo de riquezas  moléstias que estão a sacrificar a humanidade.

Cada ser humano, e, como resultado, toda a humanidade  que é a soma de todos nós  trava dentro de si a luta mortal entre o narcisismo e seu oposto, a solidariedade. O narcisismo nega, afasta, separa. A solidariedade compreende, une, agrega.

O surto de narcisismo que a civilização atual está vivendo, manifesto nas guerras, no segregacionismo, nas teologias da prosperidade e da dominação, na disseminada crença em mentiras rasas, parece ter uma finalidade evolutiva. Ao longo dos milênios, surtos de narcisismo sucederam-se: impérios expandiram-se, e depois sucumbiram, suplantados por novos arranjos civilizacionais mais lúcidos, inclusivos e equilibrados.

Esse talvez seja o lado transformador dos surtos de narcisismo, como este que ora vivemos: a doença engendra a sua própria cura. O narcisismo, no seu tresloucado desvario, acaba por despertar para a lucidez, o discernimento. Aquilo que era uma patologia latente, oculta, revela-se. E, revelada, pode ser melhor diagnosticada, compreendida, tratada e curada.

No passado já houve exemplos marcantes da consequência transformadora do narcisismo: o obscurantismo da Idade Média engendrou a luminosidade do Renascimento; o totalitarismo do fascismo e do nazismo engendrou o culto à democracia. Mas parece fazer parte do desígnio da evolução que os surtos de narcisismo e de discernimento se alternem indefinidamente. Até quando? O que ainda falta à humanidade para enfim reconhecermos os milagres da engenhosidade humana e da generosidade do planeta, que nos acolhe e supre nossas necessidades e sonhos?

Talvez o que falta seja que, na luta íntima que travamos entre o narcisismo e a solidariedade, nossa vontade coloque-se firmemente em favor desta última. Decerto assim agindo, algum dia ainda aprenderemos a respeitar o diferente. Compreenderemos, enfim, que a diferença enriquece e dá plenitude ao ser humano.

Urge que aprendamos essa lição! Antes de exterminarmos a espécie humana. A evolução está a nos testar, a verificar se somos viáveis e merecedores do milagre da vida. Ou se é necessário extinguir-nos para transferir a oportunidade para outra espécie mais qualificada. A natureza vem fazendo isso ao longo da história do planeta, desde muito antes de nós humanos. A diferença é que hoje somos capazes de exterminarmo-nos, e até de destruir o planeta.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Pau que nasce torto morre torto

 Publicado no Jornal da Manhã em 16/02/2024.

“Errei, quero uma chance pra recomeçar/ dizem que pau que nasce torto morre torto/ eu não sou pau, posso me regenerar” são versos da linda canção “Fraqueza”, sucesso de 1973 de Antônio Carlos e Jocafi. Nela, os compositores contestam poeticamente o ditado popular que afirma que o que começa mal nunca vai se consertar: o “pau que nasce torto morre torto”. Ou, traduzindo, que uma pessoa criada num meio sociocultural com certos conceitos, convicções e atitudes nunca vá ser capaz de modificá-los, ainda que eles se mostrem daninhos.

O ditado popular tem suas razões de existir: o ser humano tem notória dificuldade de admitir erros, e, mesmo que os reconheça, tem imensa dificuldade para mudar! E como erramos! Atualmente, os erros espontâneos, fruto de acidentes, equívocos ou do desconhecimento, são em número e importância muito menor que os erros plantados, aqueles para os quais somos induzidos, pela  manipulação e condicionamento.

O ser humano tem muita dificuldade de reconhecer o quanto ainda é um animal irracional, passível de ser adestrado, tal como um cão. Assim mostrou Pavlov com os estudos sobre o reflexo condicionado, este depois comprovado também no Homo sapiens. Mentiras repetidas podem convencer que são verdades. O erro da mentira passa a guiar o comportamento do indivíduo ludibriado pelo condicionamento. Ele reage ferozmente, com todo seu instinto animal, se ousam alertá-lo de seu erro.

Estamos naquela idade da adolescência da humanidade, em que nossa amoral racionalidade ultrapassou a compreensão, o bom senso e a ética. As engenhosas tecnologias para a manipulação e o condicionamento, seja para o consumo, a crença religiosa, as convicções políticas, a moral e valores, são muito mais poderosas que o discernimento humano. Não temos mais segurança de sabermos distinguir a mentira da verdade. Nunca antes as mentiras induziram tantos ao erro. A despeito de tudo o que nossa inteligência já nos comprovou, ainda são muitos os terraplanistas, os antivacinas, os céticos do aquecimento global, os que acreditam num deus dinheirista e segregacionista, ou que o especulativo mercado é capaz de uma justa gestão econômica, e que, entre as raças e culturas, há as superiores e as inferiores.

E, diante de evidências do equívoco e do erro, como a humanidade tem reagido? Diálogos francos em busca da compreensão e do acerto? Ao contrário! Reconhecer o erro seria suposto sinal de fraqueza, ignorância, inferioridade. Radicalizamos e blindamos a crença no erro. A convicção no erro passa a fazer parte da essência identitária do indivíduo, e mesmo de comunidades inteiras. Convicções acirradas, ainda que completamente equivocadas, enraízam-se, conduzem à segregação, ao ódio, à guerra.

Talvez a humanidade esteja só precisando ouvir mais canções, como aquelas de cinquenta anos atrás. Como as tais que, embora com outras palavras, diziam algo como: “Errei, quero uma chance pra recomeçar/ dizem que pau que nasce torto morre torto/ eu não sou pau, posso me regenerar”.