domingo, 11 de fevereiro de 2024

Pau que nasce torto morre torto

 Publicado no Jornal da Manhã em 16/02/2024.

“Errei, quero uma chance pra recomeçar/ dizem que pau que nasce torto morre torto/ eu não sou pau, posso me regenerar” são versos da linda canção “Fraqueza”, sucesso de 1973 de Antônio Carlos e Jocafi. Nela, os compositores contestam poeticamente o ditado popular que afirma que o que começa mal nunca vai se consertar: o “pau que nasce torto morre torto”. Ou, traduzindo, que uma pessoa criada num meio sociocultural com certos conceitos, convicções e atitudes nunca vá ser capaz de modificá-los, ainda que eles se mostrem daninhos.

O ditado popular tem suas razões de existir: o ser humano tem notória dificuldade de admitir erros, e, mesmo que os reconheça, tem imensa dificuldade para mudar! E como erramos! Atualmente, os erros espontâneos, fruto de acidentes, equívocos ou do desconhecimento, são em número e importância muito menor que os erros plantados, aqueles para os quais somos induzidos, pela  manipulação e condicionamento.

O ser humano tem muita dificuldade de reconhecer o quanto ainda é um animal irracional, passível de ser adestrado, tal como um cão. Assim mostrou Pavlov com os estudos sobre o reflexo condicionado, este depois comprovado também no Homo sapiens. Mentiras repetidas podem convencer que são verdades. O erro da mentira passa a guiar o comportamento do indivíduo ludibriado pelo condicionamento. Ele reage ferozmente, com todo seu instinto animal, se ousam alertá-lo de seu erro.

Estamos naquela idade da adolescência da humanidade, em que nossa amoral racionalidade ultrapassou a compreensão, o bom senso e a ética. As engenhosas tecnologias para a manipulação e o condicionamento, seja para o consumo, a crença religiosa, as convicções políticas, a moral e valores, são muito mais poderosas que o discernimento humano. Não temos mais segurança de sabermos distinguir a mentira da verdade. Nunca antes as mentiras induziram tantos ao erro. A despeito de tudo o que nossa inteligência já nos comprovou, ainda são muitos os terraplanistas, os antivacinas, os céticos do aquecimento global, os que acreditam num deus dinheirista e segregacionista, ou que o especulativo mercado é capaz de uma justa gestão econômica, e que, entre as raças e culturas, há as superiores e as inferiores.

E, diante de evidências do equívoco e do erro, como a humanidade tem reagido? Diálogos francos em busca da compreensão e do acerto? Ao contrário! Reconhecer o erro seria suposto sinal de fraqueza, ignorância, inferioridade. Radicalizamos e blindamos a crença no erro. A convicção no erro passa a fazer parte da essência identitária do indivíduo, e mesmo de comunidades inteiras. Convicções acirradas, ainda que completamente equivocadas, enraízam-se, conduzem à segregação, ao ódio, à guerra.

Talvez a humanidade esteja só precisando ouvir mais canções, como aquelas de cinquenta anos atrás. Como as tais que, embora com outras palavras, diziam algo como: “Errei, quero uma chance pra recomeçar/ dizem que pau que nasce torto morre torto/ eu não sou pau, posso me regenerar”.

3 comentários:

  1. Um antigo ditado diz que só nos aprimoramos quando apuramos nossos gostos , sejam musicais ou outros .
    Estamos regredindo espetacularmente

    ResponderExcluir
  2. Alguém que está bitolado em crer numa mentira, se alertado do erro, não gasta nem um minuto para refletir, reage de forma a acabar com o assunto e segue com seus arraigados preceitos. A isso denomino extrema ignorância.

    ResponderExcluir
  3. Amei o texto! Disse tudo. Quando alguém fala que a Humanidade evoluiu, eu engulo a perguntinha: em quê? Não evoluímos em nada, já perdemos para todas as espécies, digamos, superiores, e ainda vamos perder até para a máquina! Isso sem falar dos micróbios, que são nossos predadores, e não damos conta deles. Podíamos ao menos ganhar de nós mesmos...

    ResponderExcluir

Aos leitores do blog que desejarem postar comentários, pedimos que se identifiquem. Poderão não ser postados comentários sem identificação.