sábado, 18 de maio de 2024

Rio Grande do Sul – a punição da incúria

 

A tragédia que acontece no Rio Grande do Sul é o resultado de uma equação com muitas variáveis: aquecimento global, El Niño, chuvas torrenciais, ocupação indevida de planícies de inundação dos rios, ineficazes sistemas de prevenção e combate de enchentes, impermeabilização dos solos agrícolas da bacia de captação, erosão dos solos e assoreamento do leito dos rios... Todas estas variáveis – e esta lista não está completa – têm uma única origem: a incúria humana com o planeta Terra que nos acolhe.

A civilização atual é singular: a população nunca foi tão numerosa, o consumo desenfreado é hiperestimulado, a queima de combustíveis fósseis é recorde, proliferam conflitos armados, arsenais armazenam armas que podem destruir o mundo, acumulamos riqueza e distribuímos pobreza, acirramos insegurança e conflitos sociais, extinguimos espécies, desequilibramos ecossistemas, engendramos a disseminação de pandemias, utilizamos avançada tecnologia de desinformação e manipulação, desencadeamos as guerras híbridas e cognitivas, nas quais os inimigos são invisíveis e insidiam-se dentro das mentes, alimentamos a desesperança, a segregação, o ódio, a soberba, a supremacia e a cupidez como lenitivos a que nos agarramos perante o caos e a descrença.

A tragédia no Rio Grande do Sul é só um sinal, como o têm sido o buraco na camada de ozônio, a covid-19, o aquecimento global, as secas inéditas, os incêndios florestais no Canadá, EUA, Austrália, Amazônia e Pantanal, as inundações, os furacões... Alguém já escreveu que Deus perdoa sempre, as pessoas às vezes, a natureza nunca! Ela está nos alertando de nossa incúria e suas consequências.

O planeta Terra é um milagre, que propiciou outro milagre: a vida. Que foi contemplada com a dádiva da inteligência. Só nos faltam os milagres do discernimento, da sensatez. Estes, que já se manifestam, mas ainda não aprendemos a vê-los e valorizá-los, nos trarão a compreensão, a solidariedade, a parcimônia e a paz. Então reconheceremos que temos o privilégio de estarmos vivendo no paraíso dos sonhos humanos. Não um paraíso inerte e sem propósito, mas um paraíso de generosidade infinita, que tudo nos concede. Entretanto, severo com nossos erros, que pune rigidamente, pacientemente nos mostrando qual o caminho certo a seguir: é a Mãe Terra dos povos originários, sábia, generosa e diligente.

A tragédia no Rio Grande do Sul é o fruto amargo de séculos em que a humanidade vem endeusando o mercado, exacerbando formas de exploração predatória da natureza e do homem pelo homem. O incentivo à competição, ao consumo desenfreado, ao ter mais importante que o ser, tudo desagua numa insana luta de classes, na revolta do ambiente e nos desastres que não são naturais, pois resultam do descuido humano. Estamos transformando o paraíso que é o planeta Terra num inferno. Ainda não compreendemos o significado da parábola de Adão e Eva, da serpente e da maçã, do pecado e da expulsão do paraíso. A serpente é a cupidez, a maçã é a jactância, o pecado é nossa incúria.

Mas, felizmente, não somos só pecadores, seduzidos pela cupidez. Já temos ideia de quais os erros que temos cometido, e como corrigi-los. A Mãe Terra tem-nos demonstrado. Urge passar das ideias às ações.

domingo, 12 de maio de 2024

O paraíso perdido

 

Naquela madrugada nos inefáveis ermos celestiais, Pedro percebeu uma réstia de luz acesa, vinda lá da sala de controle. Estranhou a luz em horas tão devolutas. Curioso, levantou-se, foi lá ver do que se tratava. Ainda à distância viu o Mestre, uma auréola de preocupação envolvendo sua aura, coluna encurvada, debruçado sobre seu monitor plasmático que visualizava o universo. Pedro percebeu que algum problema grave acontecia:

─ As bênçãos, Mestre. O que de tão sério o traz à sala de controle a estas horas?

─ As bênçãos, Pedro. Boa noite. Desculpe, não queria incomodá-lo. Não se preocupe. É que eu também, como você*, às vezes inquieto-me com o andamento dos rumos da criação.

─ Pois é, parece que isso é inevitável. Como já dissemos, a criação é como se fosse uma filha. Temos dificuldade de acatar o livre arbítrio. Sabemos que ela vai seguir seu próprio caminho, tem a liberdade de escolhê-lo, vai aprendendo com os erros. Mas estamos sempre querendo interferir, pra que tudo aconteça do jeito que julgamos ser o menos sofrido.

─ Esse é o problema. A criação nos surpreende. Subverte o que pensamos ser o caminho normal da evolução.

─ Mas o que foi desta vez, Mestre?

─ Ah, Pedro! De novo o planeta Terra. Acho que se lembra bem dele, né?

─ Claro Mestre! Como não lembrar? Ele é o paraíso. Que infelizmente às vezes parece não estar dando certo.

─ Como pode isso, Pedro? Há milênios temos inspirado missionários daquele povo da Terra! Desde a história de Adão e Eva, a tentação da serpente, o pecado e a expulsão do paraíso. A parábola não poderia ter sido mais evidente. Não entenderam ou não aprenderam nada?

─ Parece que ainda não, Mestre. Não perceberam que o paraíso é o planeta onde vivem. Que reúne todas as maravilhas que suportam e encantam a vida. E não perceberam que a inteligência, a engenhosidade humana, é o milagre que complementa e dá sentido às dádivas daquele mundo. Inventaram a fantasia de um paraíso noutro lugar, após o desencarne. Não se dão conta de que já estão nele.

─ O que mais me entristece é que estão destruindo o éden, que criamos com tanto carinho e dedicação.

─ Isso porque estão usando mal o segundo milagre que lhes foi atribuído: a inteligência e a criatividade.

─ É bem isso, Pedro!

─ Parecem estar possuídos pela ânsia de dominar, de possuir, de sobressair. A serpente da parábola, que não conseguem entender. Estão acumulando riquezas e disseminando pobreza, fazendo guerras insanas, amontoando armas de destruição em massa, cultivando o ódio, espalhando mentiras, contaminando a água e o ar, aquecendo o planeta, ensejando epidemias, exaurindo os solos, exterminando matas e bichos... É muita incúria! Estão transformando a Terra no inferno. A solidariedade, o despojamento, o discernimento e a humildade, que eram atributos originais, estão esquecidos.

─ Essa é a razão da minha inquietação, Pedro. A cobiça e a insensatez também estão destruindo o clima. O que era pra ser aquele sistema de purificação da água do mar e a distribuição fraterna sobre os continentes, agora tá virando catástrofe: enchentes destruidoras, epidemias, falta da água em outros lugares, secas, incêndios...

─ Sei bem como é, Mestre. Também me entristeço com tudo isso. Mas temos de respeitar o livre arbítrio.

─ Sim. Vamos continuar torcendo pra que eles acordem antes que seja tarde demais.


* Ver os textos “Diálogos infernais” (19/07/2022), “Diálogos celestiais” (29/01/2022), “Pandemia: Deus escreve certo por linhas tortas” (04/04/2020), “Livre arbítrio” (06/12/2018), “Diálogos celestiais também falam de futebol” (08/06/2018), “Pesquisa celestial” (01/01/2018), “Juízo final” (13/07/2017), “Vinganças divinas II” (20/04/2016), “Vinganças divinas” (04/02/2016) e “Estória da criação” (26/11/2015), neste blog.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

O despertar do universo consciente

 Publicado no Jornal da Manhã em 14/05/2024.

O despertar do universo consciente – um manifesto para o futuro da humanidade” (Editora Record, 2024) é o título do inspirado e inspirador livro do internacionalmente renomado físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser. Nele o autor historia nossa ideia de mundo desde a Antiguidade até os dias atuais, passando pela Terra como centro do universo, depois o heliocentrismo, até a consciência de um sistema solar periférico de uma galáxia entre incontáveis outras, cada uma delas com incontáveis estrelas e planetas.

A consciência de que não somos o centro do mundo teria dessacralizado o planeta que acolhe o mistério da vida, da qual somos, talvez, a manifestação mais evoluída. E dessacralizou-se também a espécie humana, a partir de então encarada como a reles população de um ordinário corpo celeste orbitando uma vulgar estrela de quinta grandeza. De acordo com Gleiser, a Terra teria começado a perder seu encantamento no Século XVI, com o modelo heliocêntrico de Nicolau Copérnico. A novidade revoltou a Inquisição, crente do geocentrismo e do ser humano como a criação divina à imagem do criador, situada no centro do universo.

O livro nos conduz ao longo da evolução do conhecimento do universo, da Terra, da proliferação da vida em nosso planeta e da, até agora, nossa solidão cósmica. Estaremos de fato sozinhos nessa imensidão de mundos? Contrapondo-se à decepção da igreja com a revelação científica de que não somos o centro do mundo, Gleiser nos alerta da singularidade de nosso planeta, e do inusitado da vida que aqui grassa.

Nas palavras do autor, um planeta que abriga a vida é um planeta sagrado. Mas o conhecimento, a ciência e a tecnologia parecem ter-nos conduzido a uma falência moral. A civilização atual dessacralizou a natureza, subvertendo o sublime e o místico que os povos originários atribuem à criação do mundo que sustenta a vida. Em sua religiosidade, o mundo e os seres vivos interagem como um organismo único, são a manifestação de fenômenos sagrados.

Atualmente monetarizamos tudo, colocamos preço na natureza e na vida: a terra, o bucólico, o ar puro, a água, o alimento, a liberdade, o conhecimento, a saúde, a alegria, o lazer, a arte, o amor, o sexo, a criatividade, a paz, a religião... Escolhemos trilhar um caminho que arrisca conduzir-nos à extinção de nossa espécie. Talvez até mesmo de toda a vida no planeta. De toda a vida no universo?

Após nos sensibilizar mostrando-nos como a Terra é única no cosmo que conhecemos, e como a vida é um inexplicável e fantástico mistério, o autor nos convoca para o reencontro com o sagrado que se manifesta no mundo e nos organismos vivos. Para as pessoas por demais urbanizadas, sugere, para iniciar esse reencontro, ações bem simples: cultivar um jardim e árvores, frequentar parques com lagos e bosques, caminhar ao longo de rios e das praias, observar os pássaros, os animais, o próximo, o céu, as estrelas...

Não somos superiores à natureza e à vida, mas somos um fenômeno único no universo. Nas palavras de Marcelo Gleiser, “precisamos ressacralizar o mundo”.