sábado, 26 de junho de 2021

Grandes hipocrisias humanas

 

Diferentemente dos animais selvagens, que vivem um autêntico salve-se quem puder constante, imposto pela lei do mais forte e da seleção natural, os humanos têm artimanhas que tentam disfarçar quem devora quem, e como se dá essa antropofagia. A humanidade ainda não emergiu de fato da predação que impera no mundo animal, mas muito evoluiu nos engodos para iludir as domesticadas presas, às vezes fazendo-as crer que também são predadores do topo da cadeia alimentar, ou candidatos a chegar lá.

Uma destas grandes hipocrisias humanas é a existência dos paraísos fiscais e seus bancos, que acolhem contas secretas com correntistas anônimos. É nessas contas que vai parar todo o dinheiro sujo do mundo, de trambiques financeiros, tráfico de armas, drogas e pessoas, corrupção de homens públicos e privados, quadrilhas nacionais e internacionais, butins sangrentos de tiranos ferozes. A existências dessas contas secretas anula todo o esforço mundial em honestidade, justiça, segurança e legislação para controlar o crime. E elas são candidamente toleradas.

Outra grande hipocrisia, também com reflexos desde individuais até universalizados, é o suposto celibato de religiosos, imposto por certas igrejas. Esta hipocrisia é delicada, implica enveredar pelo mais recôndito da natureza humana, pois trata da sexualidade. Tema tão cheio de tabus e controvérsias, que preferimos manter proibido. Incompreensível como um filme que tenha cenas de amorosa sexualidade seja mais rigorosamente censurado que outro que escancara carnificinas e crueldades, às vezes antes impensadas pelos expectadores. O sexo é a segunda prioridade natural para a preservação da espécie ─ a primeira é a alimentação. No entanto, ainda hoje é assunto tão cheio de preconceitos e pudores que é transformado numa das principais causas de distúrbios emocionais-afetivos e de crimes sexuais. Os onipresentes escândalos envolvendo religiosos que praticam abusos, assédios e pedofilia mostram isso. Está mais que na hora de começarmos a ver o que há de sublime na sexualidade, e não de pecaminoso.

A igreja é outra grande hipocrisia. Não a religião, lembrando que “a igreja separa os homens, a religião une”. A igreja doutrina para dogmas que refletem a ambição de prelados carismáticos e poderosos. A religião busca despertar o “eu superior” existente em todo ser humano, seja ele de qual igreja for. Como regra geral, a igreja é aquela confraria que absolve e legitima, na hora da oração e da confissão, todos os pecados cometidos em todas as outras horas, passadas e futuras.

Não se pode falar de hipocrisia sem falar nas democracias representativas. Os eleitos teoricamente representam os eleitores. Então como é possível que nas decisões os parlamentares possam votar secreto? Como os eleitores vão saber se os seus eleitos estão sendo leais? Aliás, se fossem leais, se a representatividade não fosse um logro, as leis, os governos, os homens públicos seriam muito diferentes do que realmente são.

Outra grande hipocrisia, ou grande enganação, é a crença de que as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki tenham sido uma reação proporcional ao ataque surpresa a Pearl Harbor. Esta é outra grande e duradoura mentira que tem que ser desmascarada. Pearl Harbor era alvo militar; as duas cidades japonesas tinham população civil ─ lares, creches, hospitais, escolas, templos religiosos. O Japão não tinha declarado a guerra aos EUA, este já a havia declarado um século antes, obrigando a abertura comercial do país oriental com frota de naus de guerra e seus canhões na Baía de Tóquio. E as bombas atômicas não visaram intimidar os japoneses e abreviar a guerra; visaram aterrorizar o mundo. Foi o maior ato terrorista da História.

A humanidade tem muitas outras grandes hipocrisias, talvez até mais escandalosas que estas. É imperioso desmascará-las para progredirmos.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

O voto de papel

 Publicado no Jornal da Manhã em 07/08/2021.

Era o ano de 1985. Disputa acirradíssima para a prefeitura de São Paulo. As pesquisas de boca de urna indicavam vitória apertada, por uns poucos por cento, do candidato Fernando Henrique Cardoso, estrela da oposição à ditadura recém finda. Em segundo lugar, o meteórico político Jânio Quadros, o “varre, varre vassourinha” da década de 1960, cuja renúncia à presidência engendrou o golpe de 1964. FHC, confiante nas pesquisas, jactancioso chegou a sentar-se na cadeira de prefeito; a cena inundou o noticiário. No dia seguinte, Jânio, então surpreendentemente já confirmado o vencedor, jocosamente borrifou inseticida antes de sentar-se na mesma cadeira em que FHC prematuramente sentara-se na véspera.

O resultado apurou que Jânio venceu por estreitíssima margem, os mesmos poucos por cento que a boca de urna erroneamente havia atribuído de vantagem a FHC. Os analistas puseram-se a tentar entender o que acontecera. Especialistas em eleições e seus resultados notaram que a histórica cifra de cerca de dez por cento de votos brancos, naquela eleição tinha caído para um por cento! Acharam então uma explicação para a inesperada vitória de Jânio: os votos em branco tinham sido preenchidos durante a apuração, pelos próprios apuradores, grande parte deles fanáticos seguidores do conservador ex-presidente renunciado, ferrenhos opositores dos críticos da ditadura. Como o era FHC.

Nos rincões do interior do Brasil e das periferias das grandes cidades, o voto de papel era prevaricado de outra engenhosa maneira. Cédulas em branco, obtidas ilegalmente, iam parar na mão de prepostos “cabos eleitorais”, cúmplices de políticos criminosos. Nas filas nas portas das seções eleitorais, sob os olhos conluiados de supostos fiscais, o “cabo eleitoral” entregava uma cédula já preenchida ao eleitor, que era a cédula que ele deveria depositar na urna. A cédula em branco que ele recebia dos mesários deveria ser entregue, à saída, ao mesmo “cabo eleitoral”, em troca de uns níqueis para um lanche, ou a promessa de um emprego ou algum privilégio para si ou para a família. O “cabo eleitoral” preenchia então a cédula em branco e a passava para o próximo eleitor da fila. Os políticos inescrupulosos eram eleitos por esse esquema, mas as promessas eram esquecidas. As fraudes também eram esquecidas pelos eleitores, na eleição seguinte continuavam a dar resultados.

Esses e outros trambiques que se podem fazer com o voto de papel, num país tão complexo e sujeito à corrupção como é o Brasil, fizeram que aqui, mais que em qualquer outro lugar do planeta, se buscasse um meio considerado imune à fraude. Chegou-se então às urnas eletrônicas, testadas incansavelmente, consideradas invioláveis. Uma façanha elogiada em todo o mundo, inclusive Europa e EUA.

Retornar ao voto de papel seria retornar à fraude eleitoral. Quem proclama que tal retorno seria o contrário é quem quer que o Brasil volte ao tempo em que as eleições eram a época de arrebanhar os currais eleitorais para eleger políticos ímprobos e corruptos. E quem quer ver o Brasil perpetuar-se como o país do futuro, a eterna colônia explorada do presente.

sábado, 12 de junho de 2021

Questão de gênero

 

Não sou estudioso das questões de gênero, perdoem-me os especialistas se vou parecer aqui demasiado leigo ou repetitivo de reflexões já manifestadas alhures. Sou geólogo, graduei-me e amadureci profissionalmente lidando com questões afeitas à Geologia; uma ciência natural, não há muito tempo dissociada da Biologia. Ainda há muito que une estas duas ciências naturais. Evolução das Espécies e Paleontologia ainda são disciplinas pertencentes aos currículos das duas graduações.

Como geólogo, aprendi muito com a natureza; principalmente que ela é sábia e parcimoniosa. Os fenômenos e processos naturais têm firmes razões de ser, têm propósito. A natureza é muito mais consequente naquilo que faz do que os arroubos do ego humano. E é mais do que sabido que vivemos a civilização do egocentrismo, do antropocentrismo, do androcentrismo, em que a descabida cobiça humana está comprometendo o equilíbrio natural no planeta. A natureza já nos dá mostras de que está desencadeando processos novos em resposta à nossa insensatez. E o ineditismo destes processos põe em risco a própria sobrevivência humana. Não seria a primeira vez na história do planeta que a natureza promoveria extinções em massa, em nome da evolução do milagre da vida.

Respaldado nestas lidas com a natureza do planeta, ouso opinar sobre a natureza humana. O gênero é um construto social e cultural, ou é um atributo natural? Deve-se defender a liberdade do indivíduo, seja qual for seu sexo, de escolher sua identidade de gênero? Deve-se orientar para a aceitação do gênero que a natureza lhe atribuiu?

Acredito que o sexo com o qual nascemos não é um acaso, ele resulta de alguma talvez desconhecida razão, que vem acrescentar desafios a este aprendizado na escola da vida. Creio sim que a todos nós é dada a liberdade de escolher se aceitamos ou não o sexo que a natureza nos atribuiu. Creio que todos, em algum momento da vida, enfrentamos o dilema da difícil escolha da nossa afirmação sexual. Ainda que tal dilema tenha se refugiado no mais íntimo e secreto da nossa consciência. Não é fácil aceitar a feminilidade num mundo machista e misógino. Não é fácil aceitar a masculinidade num mundo em que a sensibilidade e a delicadeza são tidas como fraquezas ou atributos exclusivos do outro sexo.

Talvez o determinante na hora da escolha de nossa identidade de gênero seja o arbítrio de nosso ego. Ele pode ou não submeter-se à prévia escolha da natureza, que não nos perguntou com qual sexo gostaríamos de nascer. Talvez o aprender a lidar com nosso ego seja o principal desafio da vida, em todas as dimensões de nossa existência, não somente nas questões de gênero. Então talvez o ego que se recusa a aceitar seu sexo corpóreo, e decida enfrentar todo o preconceito contra os “transviados sexuais”, já esteja sendo submetido à sua mais árdua lição na vida. E a natureza tenha tido o capricho de atribuir-lhe justamente o sexo capaz de desencadear o conflito libertador. Sim, o desígnio da natureza é libertar. Desde o Big Bang ela expande, transforma, diferencia, cria toda a diversidade que conhecemos hoje, e que continua recriando-se. Esta diversificação é outra grande lição da natureza.

Então, como lidar com as questões de gênero? Repressão ao “diferente”? Estímulo à identidade sexo-gênero? Liberdade e respeito incondicional? Ou trata-se ainda de assunto muito pouco estudado e compreendido?

Acho que ainda temos muito que aprender a respeito.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Rinhas no asfalto

 Publicado no Jornal da Manhã em 16/06/2021.

Os cães são adestráveis. Podemos fazê-los dóceis cães-guia e cães de companhia ou ferozes e assassinos cães de guarda e cães-policiais. Ou podemos treiná-los para tarefas e respostas programadas, como os farejadores, os de circo e os de laboratórios pavlovianos. Moldamos o comportamento e as reações dos cães, basta adestrá-los com suficiente insistência. Os exemplos mais extremos talvez sejam os cães de rinha: odeiam-se sem se conhecerem, e, confrontados, engalfinham-se até a morte.

E os seres humanos? São assim também tão adestráveis? Se aos cães falta-lhes capacidade de reflexão e autodeterminação para escaparem da sina que lhes é impingida, parece que os humanos não são muito diferentes. O aforismo “dividir para dominar”, aplicado pelos impérios para conquistar suas colônias, mostra a força do condicionamento que faz irmãos se odiarem e se matarem, abrindo livre caminho para os invasores. Tem sido assim em todos os impérios coloniais, na Ásia, na África, na América Latina. Até na Europa e América do Norte conhecem-se as históricas manipulações que incitaram o ódio entre religiões, raças e castas, atiçando guerras, perseguições, fanatismos e atentados.

Nós, seres humanos, não somos tão racionais quanto julgamos. Desdenhamos a irracionalidade que nos faz reagir como cães raivosos. E os adestradores de humanos, usando recursos sofisticados, fazem de nós o que bem querem: ou nos amansam submissos, ou nos fazem odiar até nossos irmãos, compadres e vizinhos.

Vejo isso no Brasil hoje. O ódio está sendo fomentado e as pessoas não têm discernimento suficiente para perceber que estão sendo treinadas para reações violentas, descabidas: o velho conservador odeia a jovem progressista; o policial odeia a professora grevista; o cristão católico odeia o cristão evangélico; o branco da zona sul odeia o negro do morro; a dona de casa de verde e amarelo odeia o pai de família de vermelho; o taxista odeia o uberista; o porteiro do prédio passa a odiar o antes amado compositor popular; os torcedores dos times rivais sempre se hostilizaram, mas agora se odeiam; a professora grevista também odeia o policial; a jovem progressista também odeia o velho conservador; até um adesivo no vidro do carro com opinião desperta ódio irrefreável.

Entre os humanos, sempre houve aquela parcela mais próxima dos cães, que é mais fácil de adestrar e de incitar ao ódio, para semear o ambiente de rinha. Tanta raiva ainda não conseguiu fazer que despertássemos para o fato que estamos sendo doutrinados para o ódio, para nos debilitarmos e autodestruirmos. Uma guerra ideológica que só interessa a quem quer ver-nos sempre como o país do futuro, a colônia do passado e do eterno presente.

Mas, felizmente, se por um lado desdenhamos nossa canina herança irracional e manipulável, por outro já temos sim alguma racionalidade. É o “eu superior” que já viceja em nós. Já somos capazes de refletir, de compreender e de escolher por nós mesmos quem somos: se cobaias controladas pelos reflexos condicionados, ou se indivíduos lúcidos e livres.

Não é tarefa fácil libertar-se do condicionamento que nos domina no dia a dia, pela TV, rádio, jornais, revistas, cinema e agora as poderosas mídias sociais. Mas se não formos capazes de exercer nossa racionalidade, e nossos sentimentos e solidariedade, para neutralizarmos o perverso adestramento que nos é imposto, logo estaremos banalizando nas ruas a mesma sangrenta violência das rinhas, que hipocritamente declaramos foras da lei.