segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

"Sabemos que unidos valemos mais" - discurso de posse de David Choquehuanca, vice-presidente da Bolívia

 

Prezados, peço licença para publicar no blog um texto que não é de autoria do blogger. É o discurso de posse do vice-presidente boliviano David Choquehuanca proferido em 08/11/2020 (o vídeo pode ser visto em https://caixadeferramentas.org/2020/11/15/discurso-de-posse-de-david-choquehuanca-novo-vice-presidente-da-bolivia/). Creio que o discurso é uma declaração inspiradora para um momento de reflexão e de esperança, como usualmente o é a passagem de ano. E o final deste ano de 2020 não poderia ser momento melhor para tal mensagem.

 

“Com a permissão de nossos deuses, de nossos irmãos mais velhos e de nossa Pachamama, de nossos ancestrais, de nossos achachilas, com a permissão de nosso Patujú, de nosso arco-íris, de nossa folha sagrada de coca.

Com a permissão de nossos povos, com a permissão de todos os presentes e não presentes nesta Câmara.

Hoje quero compartilhar nossos pensamentos em alguns minutos.

É uma obrigação de comunicar, uma obrigação de dialogar, é um princípio de viver bem.

Os povos de culturas milenares, da cultura da vida, mantêm as nossas origens desde os primórdios da antiguidade.

Nós, crianças, herdamos uma cultura milenar que entende que tudo está interligado, que nada está dividido e que nada está fora.

‘Vamos juntos’

Por isso nos dizem que vamos todos juntos, que ninguém fica para trás, que todos têm tudo e nada falta a ninguém.

E o bem-estar de todos é o bem-estar de si mesmo, que ajudar é razão de crescer e ser feliz, que desistir pelo bem do outro nos fortalece, que nos unir e reconhecer em tudo é o caminho de ontem, hoje amanhã e sempre de onde nunca nos desviamos

O ayni, o minka, o tumpa, nosso colka e outros códigos de culturas antigas são a essência de nossa vida, de nosso ayllu.

Ayllu não é apenas uma organização da sociedade de seres humanos, ayllu é um sistema de organização da vida de todos os seres, de tudo que existe, de tudo que flui em equilíbrio em nosso planeta ou Mãe Terra.

Durante séculos os cânones civilizadores de Abya Yala ficaram desestruturados e muitos deles exterminados, o pensamento original foi sistematicamente submetido ao pensamento colonial.

Mas não podiam nos desligar, nós estamos vivos, somos de Tiwanaku, somos fortes, somos como pedra, somos cholke, somos sinchi, somos Rumy, somos Jenecherú, fogo que nunca apagou, somos de Samaipata, somos jaguar, somos Katari, somos Comanches Somos maias, somos guaranis, somos mapuches, mojeños, somos aimaras, somos quechuas, somos jokis e somos todos os povos da cultura da vida que despertam larama, iguais, rebeldes com a sabedoria.

‘Uma transição a cada 2.000 anos’

Hoje a Bolívia e o mundo vivem uma transição que se repete a cada 2.000 anos, no marco da ciclicidade do tempo, vamos de nenhum tempo em tempo, começando um novo amanhecer, um novo Pachakuti em nossa história

Um novo sol e uma nova expressão na linguagem da vida onde a empatia pelo outro ou pelo bem coletivo substitui o individualismo egoísta.

Onde os bolivianos se olham todos iguais e sabemos que unidos valemos mais, estamos em um tempo de ser Jiwasa de novo, não sou eu, somos nós.

Jiwasa é a morte do egocentrismo, Jiwasa é a morte do antropocentrismo e é a morte do teolocentrismo.

Estamos a tempo de voltar a ser Iyambae, é um código que os nossos irmãos Guarani têm protegido, e Iyambae é o mesmo que quem não tem dono, ninguém neste mundo tem que se sentir dono de ninguém e de nada.

Desde 2006 na Bolívia iniciamos um trabalho árduo para conectar nossas raízes individuais e coletivas, para voltar a ser nós mesmos, para retornar ao nosso centro, a taypi, a pacha, ao equilíbrio do qual a sabedoria das civilizações mais importantes de nosso planeta.

Estamos em processo de resgate de nossos conhecimentos, dos códigos da cultura da vida, dos cânones civilizadores de uma sociedade que viveu em íntima conexão com o cosmos, com o mundo, com a natureza e com a vida individual e coletiva. construir o nosso suma kamaña, a partir do nosso suma akalle, que é garantir o bem individual e o bem coletivo ou comunitário.

Chacha-warmi

Estamos em tempos de resgate da nossa identidade, das nossas raízes culturais, do nosso bem, temos raízes culturais, temos filosofia, temos história, temos tudo, somos gente e temos direitos.

Um dos cânones inabaláveis ​​da nossa civilização é a sabedoria herdada em torno da Pacha, garantir equilíbrio em todo o tempo e espaço é saber administrar todas as energias complementares, a cósmica que vem do céu com a terra que emerge de debaixo da terra.

Essas duas forças cósmicas telúricas interagem criando o que chamamos de vida como uma totalidade visível (Pachamama) e espiritual (Pachakama).

Ao entender a vida em termos de energia, temos a possibilidade de modificar nossa história, matéria e vida como a convergência da força chacha-warmi, quando nos referimos à complementaridade dos opostos.

O novo tempo que iniciamos será sustentado pela energia do ayllu, da comunidade, do consenso, da horizontalidade, dos equilíbrios complementares e do bem comum.

Historicamente, a revolução é entendida como um ato político para mudar a estrutura social, a fim de transformar a vida do indivíduo, nenhuma das revoluções conseguiu modificar a conservação do poder, para manter o controle sobre o povo.

‘Nossa revolução é a revolução das idéias’

Não foi possível mudar a natureza do poder, mas o poder conseguiu distorcer as mentes dos políticos, o poder pode corromper e é muito difícil modificar a força do poder e de suas instituições, mas é um desafio que assumiremos com a nossa sabedoria. povos. Nossa revolução é a revolução das idéias, é a revolução dos equilíbrios, porque estamos convencidos de que para transformar a sociedade, o governo, a burocracia e as leis e o sistema político devemos mudar como indivíduos.

Nossa verdade é muito simples, o condor só alça vôo quando sua asa direita está em perfeito equilíbrio com a esquerda, a tarefa de nos formarmos como indivíduos equilibrados foi brutalmente interrompida há séculos, não a concluímos e o tempo da era ayllu, comunidade, já está conosco.

Requer que sejamos indivíduos livres e equilibrados para construir relacionamentos harmoniosos com os outros e com o nosso meio ambiente, é urgente que sejamos capazes de manter o equilíbrio para nós mesmos e para a comunidade.

Estamos no tempo dos irmãos dos Apanaka Pachakuti, irmãos da mudança, onde a nossa luta não era só por nós, mas também por eles e não contra eles. Buscamos o mandato, não buscamos o confronto, buscamos a paz, não somos da cultura da guerra ou da dominação, nossa luta é contra todas as formas de submissão e contra o pensamento colonial único patriarcal, venha de onde vier.

A ideia do encontro entre o espírito e a matéria, o céu e a terra de Pachamama e Pachakama nos permite pensar que uma nova mulher e um novo homem serão capazes de curar a humanidade, o planeta e a bela vida que nele há e devolver o beleza para nossa mãe terra.

Defenderemos os tesouros sagrados de nossa cultura de todas as interferências, defenderemos nossos povos, nossos recursos naturais, nossas liberdades e nossos direitos.

‘Voltaremos a Qhapak Ñan’

Voltaremos ao nosso Qhapak Ñan, o nobre caminho da integração, o caminho da verdade, o caminho da fraternidade, o caminho da unidade, o caminho do respeito por nossas autoridades, nossas irmãs, o caminho do respeito pelo fogo, o caminho do respeito pela chuva, o caminho do respeito pelas nossas montanhas, o caminho do respeito pelos nossos rios, o caminho do respeito pela nossa mãe terra, o caminho do respeito pela soberania dos nossos povos.

Irmãos, para concluir, os bolivianos devem superar a divisão, o ódio, o racismo, a discriminação entre os compatriotas, o fim da perseguição à liberdade de expressão, o fim da judicialização da política.

Chega de abuso de poder, o poder tem que ajudar, o poder tem que circular, o poder, assim como a economia, tem que ser redistribuído, tem que circular, tem que fluir, assim como o sangue corre em nosso corpo, chega de impunidade, irmãos de justiça.

Mas a justiça tem que ser verdadeiramente independente, vamos acabar com a intolerância à humilhação dos direitos humanos e de nossa mãe terra.

O novo tempo significa ouvir a mensagem dos nossos povos que vem do fundo do coração, significa curar feridas, olhar para nós com respeito, recuperar a pátria, sonhar juntos, construir fraternidade, harmonia, integração, esperança para garantir a paz e a felicidade dos novas gerações.

Só então podemos conseguir viver bem e governar a nós mesmos."

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

“Nunca deixe de lembrar” – há muito o que não esquecer!

  

“Nunca deixe de lembrar” é o nome do filme dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck (Alemanha, 2018) que vi casualmente na TV há cerca de dois meses, e revi estes dias com a família. Se tiverem como, não deixem de vê-lo, ainda está passando em vários canais fechados. Vale demais cada minuto das pouco mais de três horas de duração. Apesar de longo, é envolvente, riquíssimo de conteúdo, temas que se entrelaçam e nos prendem, nos arrebatam, nos comovem e nos fazem refletir sobre o momento atual que vivemos no Brasil e no mundo.

O tema central é a trajetória de um artista alemão em busca do sentido da arte, personagem inspirado na história real do pintor Gerhard Richter. A trama se inicia durante o clímax do nazismo, na segunda metade da década de 1930, e vai até a consagração do ainda jovem pintor, mais de trinta anos depois, a Alemanha então dividida, o Muro de Berlim materialização mor da divisão.

O tema central da busca do sentido da arte não é ofuscado pelo vigor das muitas tramas entremeadas que se desenrolam: o nazismo e suas vítimas, a hipocrisia dos tiranos, as razões pessoais que implicam decisões de alcance social, a “banalidade do mal” legalizado sob um regime desumano, a recuperação da Alemanha destruída e dividida, o poder de transformação e cura do amor verdadeiro de um jovem casal penalizado pelas atrocidades do nazismo e da guerra...

O que mais impressiona é que a trama mostrada no filme encontra nítido paralelo com os dias atuais. Um dos personagens principais é um médico responsável por enviar para os campos de extermínio nazistas as pessoas consideradas “defeituosas”, em nome da purificação da raça. Entre os “defeituosos”, os artistas que tinham tido a revelação da transcendente dimensão da arte, e por tal epifania foram considerados anomalias a serem exterminadas. O médico exterminador esconde suas atrocidades atrás de uma máscara de falsa respeitabilidade, a qual não conseguimos deixar de ver também em muitos dos líderes atuais no mundo, principalmente no Brasil.

Talvez os maiores méritos do filme sejam mesmo estes: o entremear de temas tão subjetivos quanto a arte e o amor e tão concretos quanto os regimes de governo atrozes e os monstros que os lideram; a essencialidade de lembrar, preservar a memória racional e a afetiva, elas têm um espantoso (e temido) poder de criação e de transformação.

É um filme que humaniza, algo que precisamos muito nestes tempos bicudos em que, como na Alemanha nazista de 1935, a loucura, a crueldade e a ignorância vêm disfarçadas de esperançosa novidade.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Geologia do petróleo e o efeito dominó

 

Corria o ano de 1992. As prioridades de exploração de petróleo no Brasil já eram as bacias da Plataforma Continental, mas o pré-sal ainda era desconhecido. O saudoso Professor Armando Márcio Coimbra, do curso de Geologia da USP, conduzia uma excursão com alunos de graduação e alguns orientandos pós-graduandos ao Recôncavo Baiano. Visitamos muitos afloramentos que mostravam rochas sedimentares e estruturas geológicas, poços de petróleo em perfuração ou em produção, laboratórios, gabinetes e depósitos da Petrobras.

Nos afloramentos aprendíamos sedimentologia, faciologia, estratigrafia, geologia estrutural, tudo voltado às condições de acumulação do petróleo: as rochas produtoras, os reservatórios, as estruturas confinantes. O Armando Muzambinho, com seu inesquecível jeito de mineiro matreiro, já naquele tempo nos dava aulas que nos ensinavam os encadeamentos dos fatores responsáveis pela formação dos indícios que conseguíamos observar, e de como podíamos utilizá-los para interpretações e previsões. Ressaltava que tudo era um efeito dominó, uma circunstância influenciava outra, cada uma com seus respectivos produtos: as rochas, fósseis, estruturas que podíamos ver. Iniciava-nos no holismo da interdisciplinaridade.

Nos poços em perfuração ou em produção, pudemos conhecer, além da Geologia de poço, um pouco de algo que estava além: os equipamentos, a Engenharia, a logística, o pessoal técnico. Um encadeamento de operações e funções que o professor não cansava de lembrar: ─ É tudo um efeito dominó, uma etapa depende da outra. ─ E por lá vimos também o óleo cru, o ouro negro que movimenta a intrincada e insensata civilização atual.

Nos laboratórios e gabinetes da Petrobras mostravam-nos como a tecnologia, já naquele tempo, auxiliava na integração dos dados de superfície e dos poços com a finalidade de interpretar possíveis acumulações de hidrocarbonetos e orientar novas perfurações. Eram sofisticados programas computacionais onde os dados eram compilados em 3D e modelagens indicavam a localização de novos alvos a serem prospectados. Ali também o Muzambinho nos alertava que era tudo um efeito dominó: os dados compilados um a um produziam os resultados esperados.

Mas talvez a melhor demonstração da importância que o Armando tentava nos revelar do tal efeito dominó tenha acontecido mesmo é na última etapa daquela excursão. Fomos visitar um depósito da Petrobras na Cidade Baixa em Salvador, era como se fosse um museu com amostras de afloramento e de subsuperfície de rochas das unidades estratigráficas da Bacia do Recôncavo e de outras bacias continentais e costeiras do Brasil. Num amplo barracão-depósito encontravam-se muitas amostras, em bancadas acompanhando as laterais e numa grande bancada centralizada. Uma longa prateleira a meia altura ocupava três das paredes do barracão. Nela, estavam cuidadosamente colocadas em pé, lado a lado, diagonalmente para quem olhava para a parede, placas retangulares de amostras de rochas obtidas pelo cuidadoso e uniforme corte de testemunhos de sondagem. Uma belíssima coleção, impecavelmente arranjada.

Um dos orientandos do Armando, justamente o mais curioso, não se contentou de observar essas amostras perigosamente dispostas: teve de tocá-las. Não deu outra: uma das placas tombou, desencadeou um inesquecível efeito dominó, que rapidamente propagou-se pelas três prateleiras. Azar maior: a amostra tombada era justamente uma das primeiras de uma das pontas da prateleira. O orientando, quando se deu conta do desastre, chegou a sair correndo atrás das amostras que tombavam disparadas, tentando detê-las. Elas correram mais rápidas. Ele não as alcançou.

Concluída num instante a derrubada das amostras, o prejuízo não foi pouco. Muitas caíram no chão, partiram-se. O silêncio e o estarrecimento dominavam o ambiente, todos se entreolhavam, imóveis miravam o embasbacado orientando, o professor, a paralisada geóloga da Petrobras que estava a nos guiar. Ela, superado o estupor momentâneo, procurou abrandar a situação: ─ Não foi nada não, temos cópia das amostras; um estagiário vai recolocá-las no lugar.

O Muzambinho não perdeu a ocasião: ─ Tudo bem, mas viram agora a importância do efeito dominó?