quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Feliz 2019, Brasil!

Publicado no Jornal da Manhã em 27/12/2018 e no Diário dos Campos em 29/12/2018.

Brasil, que em 2019 você se dê conta de sua grandeza. Há cinco países que reúnem tamanho do território, população e valor da produção (PIB) que os credenciam para potências mundiais: EUA, China, Rússia, Índia e Brasil. Nós, talvez junto com a Índia, ainda não acordamos para a nossa grandeza. Que acordemos, e deixemos de estar deitados eternamente em berço esplêndido. Sim, nosso berço é esplêndido. Nosso território tem riquezas que nenhum outro tem: petróleo, minérios estratégicos, solos agricultáveis, rica biodiversidade, água boa e farta, abundante energia solar. E temos também vantagens humanas: conformidade de idioma, cultura, religião.
Que acordemos também para a dignidade. Se nossa história nos fez sempre colônia explorada, que tomemos a decisão de deixar de sê-lo. Hoje a dominação não mais se faz com canhões e fuzis, mas com a manipulação da informação, da economia, a corrupção de autoridades locais. Os assassinatos não são mais de pessoas, mas de economias, de nacionalidades, de identidades, de dignidades. Que tenhamos o amor próprio e o discernimento para enxergar quem são nossos verdadeiros inimigos, e não deixemos que eles nos roubem a honra, a probidade e os sonhos.
Que 2019 seja um ano de reconciliação. Que sejamos capazes de superar conflitos pela diferença de ser e pensar. Antes de tudo, uma sociedade tem de ser livre, inclusiva. Os ódios que têm sido cultivados entre nós não são úteis ao Brasil. São úteis àqueles que invejam nossas riquezas, e temem que nos emancipemos e delas desfrutemos nós mesmos. Esses ódios são estranhos a nós. Têm sido cultivados por interesses estrangeiros que não querem nos ver bem sucedidos. Que acordemos para a cobiça externa que quer ver nossa discórdia e fracasso.
Que compreendamos que reconciliação inclui aqueles que marginalizamos. A raiz do crime e da violência é a miséria, material e moral. A forma mais eficaz de combatê-la é a justiça e a inclusão social. Se lhe for dada a chance de ser um cidadão digno, a esmagadora maioria vai escolher a dignidade, não o crime. Que em 2019 saibamos fazer com que a escolha pela inclusão e dignidade vença a escolha pela exclusão e o crime.
Que em 2019 tenhamos consciência do maior valor do ser humano: a liberdade. Que compreendamos que o custo da defesa da liberdade, o engajamento, o enfrentamento, o desassossego, o desgaste, é irrisório se comparado ao custo de sua perda. A liberdade é o bem essencial para alcançarmos a dignidade, a identidade. E a liberdade começa com a de podermos viver de acordo com nossa natureza. É preciso respeitar as singularidades de um índio, um negro, um asiático, um europeu, um mestiço. A educação não pode abdicar de transmitir valores primordiais como verdade, justiça, soberania, honestidade. Nem pode deixar de perscrutar a História no resgate de aprendizados essenciais para o funcionamento das sociedades. Nem pode ser acusada de doutrinadora ao fazê-lo.
E o maior voto para o ano de 2019: que o imenso desejo de mudança do Brasil se concretize. Que a esperança de superar os desmandos das autoridades e a violência dos excluídos criminalizados gere uma energia de transformação irresistível. Que a probidade e a solidariedade do cidadão simples e honesto varra a desfaçatez enraizada nos poderosos. Que o ímpeto de emancipação debele a violência da intolerância e da miséria.
Se os brasileiros acreditarem no Brasil livre e grande, assim será o Brasil.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Militarismo e servilismo

 Publicado no Jornal da Manhã em 07/12/18.


Conheci certa vez dois fidalgos oficiais de exército, um francês, mais envelhecido e maduro, outro português, de meia idade. Encontrávamo-nos num evento científico, eles já não eram mais militares da ativa. Tivemos oportunidade de nos conhecer bem, fizemos juntos uma viagem de estudos de vários dias pelo Maciço Central francês. Os dois eram ótimas pessoas, tenho-os em alta conta, embora desde então, já lá se vão mais de três décadas, nunca mais os tenha encontrado. Mas não esqueço até hoje o que aprendi com eles.
Naquela viagem, conversa vai conversa vem, constatei que o francês era um fervoroso defensor do militarismo. Ele alegava que só o regime militar consegue garantir a disciplina, e com ela a ordem e o progresso. Segundo ele só a hierarquia militar consegue fazer com que cada um cumpra suas obrigações com eficiência e probidade.  Contestei, argumentei que disciplina, honestidade, comprometimento e ordem podem ser alcançadas num ambiente de liberdade, responsabilidade, respeito e justiça sem a necessidade da obediência cega que é a lei dentro da caserna, onde as ordens superiores têm de ser cumpridas sem questionamento. O francês não concordou comigo, mas notei que o português, embora calado, pareceu estar do meu lado.
Mais tarde naquele mesmo dia, quando estávamos só eu e o oficial português, ele me contou sua marcante história. Ele tinha se tornado oficial muito jovem, vindo de família tradicional, na época em que todos os jovens portugueses eram obrigatoriamente enviados pelo menos por um período para as guerras de independência das colônias portuguesas na África. Ele fora destacado para Moçambique, e de lá trazia uma experiência trágica. Obrigado a seguir ordens superiores, ele conduzira um grupo de oitenta comandados a uma emboscada de morte, já quase ao final da guerra. Embora ele suspeitasse da emboscada, seus argumentos não tinham convencido os superiores, que, por certo, eles mesmos não participaram da operação. O semblante e a voz do oficial português ao contar-me essa história são inesquecíveis. Ele se considerava o culpado por todas aquelas mortes.
Lembro também da canção de 1968 que se tornou hino dos jovens inconformados que resistiam à ditadura militar no Brasil, a belíssima “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, que tem uma estrofe que diz: “Há soldados armados, amados ou não/Quase todos perdidos de armas na mão/Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição:/De morrer pela pátria e viver sem razão”. O oficial português e seus comandados encarnaram bem o que dissera anos antes a canção brasileira.
Quantas guerras, quantas ditaduras, quantas tiranias ainda teremos que viver até aprender que é possível a justiça, a honestidade, o respeito sem a necessidade da obediência cega às ordens que muitas vezes equivocam-se, pois a hierarquia é feita de pessoas, e as pessoas ora equivocam-se ora são servis a interesses inconfessáveis? Quantas agruras ainda teremos que viver até compreender que é possível construir uma sociedade de cidadãos conscientes, probos e engajados, em que instituições democráticas e sólidas garantam que o nosso lado selvagem mantenha-se controlado pelo nosso lado civilizado sem a aberração da obediência cega e do servilismo? Quantos fracassos ainda teremos que amargar até compreender que é preferível o desassossego da participação e do enfrentamento sadio de diferentes pontos de vista do que a omissão, a submissão e o servilismo que advêm do conformismo e do totalitarismo?
Há filósofos e sociólogos atuais que afirmam que nossa civilização está muito complexa, e as pessoas preferem delegar a responsabilidade por tudo que acontece a “autoridades” do que assumirem elas mesmas a responsabilidade por suas vidas e a vida da coletividade. Estaríamos nós renunciando à liberdade? Desacreditamos da possibilidade de uma sociedade livre, democrática e virtuosa? Estaríamos preferindo a obediência cega da hierarquia militar às atribulações e desafios da construção de uma verdadeira e duradoura democracia?
Napoleão, Mussolini, Hitler, Idi Amin, Pinochet, Saddan Hussein, entre tantos outros exemplos, parecem nos indicar que regimes militares são desastrosos para os países e os povos que os adotam. A sociedade é mais que seus militares. E eles, como regra, aprenderam que é preciso morrer pela pátria e viver sem razão.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Livre arbítrio



Nos inalcançáveis firmamentos celestiais, o Mestre, circunspecto, inspecionava sua grande bola de cristal (ou seria uma nuvem de plasma suavemente manipulada?). Do outro lado, Pedro, seu fiel imediato, verificava painéis e planilhas luminosas que pareciam flutuar no ar. O Mestre pareceu intrigado, e, como sempre, apelou para Pedro:
─ Pedro, o que está acontecendo lá naquela joia única no universo, que reúne todas as improváveis condições para dar suporte à vida, a Terra? No meu monitor aparece uma frequência vibratória indicativa de instabilidade...
─ De fato Mestre, a Terra vem passando por um período de desequilíbrio. Um retrocesso civilizatório. Mas isso é normal, é assim que a humanidade evolui, lembra-se? Aquela espécie experimental que colocamos por lá? Pois eles no começo eram bandos errantes, depois agruparam-se e protegeram-se em cavernas. Com o tempo, começaram a cultivar e ter reservas de alimentos para os invernos ou secas mais rigorosos. Juntaram-se em cidades, desenvolveram linguagens e meios de comunicação, aprenderam a transmitir conhecimentos. Evoluíram muito, das cavernas hoje estão em cidades sofisticadas, têm surpreendentes e compactos equipamentos e tecnologias de comunicação que carregam no bolso...
─ Mas, com tanta evolução, por que você fala em retrocesso?
─ Bem, eles evoluíram muito na tecnologia, mas ainda pouco em ética, em sentimentos, em espiritualidade, em discernimento. São ainda bastante parecidos com os primatas de onde vieram. Dentro deles ainda existe o réptil, o primata ancestral, mas já desperta também o ser humano já quase divino. O que está acontecendo nestes tempos ditos de retrocesso é que o réptil e o primata primitivo estão sendo muito estimulados por tudo o que anda acontecendo por lá. Agressividade, competitividade, truculência, desonestidade, mentira têm sido muito mais valorizados que pacifismo, cooperação e urbanidade.
─ Como pode ser isto? Se já foram melhores, como é possível regredirem?
─ A história do planeta, e da humanidade, tem sido uma sucessão de progressos e retrocessos. Felizmente, no final das contas sempre o progresso é maior que o retrocesso, e continuam evoluindo. Veja por exemplo o caso do Brasil, lembra? Aquele país especial onde o Mestre colocou benesses incomparáveis mas um povo recalcitrante que tinha ainda muito o que aprender?
─ Lembro, lembro, claro. É nossa esperança que aquela mistura de índoles, de raças, de credos, de nacionalidades conduza aquele povo a uma percepção da riqueza da diferença e da tolerância. O que anda se passando por lá? Eles têm aprendido a respeitar-se e a compreender-se?
─ Então, as coisas por lá andam bem complicadas. Ainda não conseguimos avaliar bem o que significam...
─ Como assim? Perdemos o controle?
─ Mestre, como sabes, nosso controle é relativo. Procuramos influenciar para a evolução, mas sempre deixamos que eles decidam seu destino. É o princípio do livre arbítrio que não podemos nunca transgredir.
─ E o que anda acontecendo por lá?
─ Pois depois de mais de vinte anos de um regime em que os militares mandavam, a justiça não valia para quem pensava diferente deles, o congresso não tinha liberdade de decisão, em que muitos crimes contra os direitos humanos foram cometidos, a pressão da sociedade enfim resgatou um regime democrático. Elaboraram uma nova constituição e viveram uma fase de relativa liberdade que durou trinta anos. Mas não souberam superar a corrupção e a sanha dos outros países, invejosos das muitas benesses que colocamos lá, e que não vacilam em cooptar vassalos entreguistas dentro do próprio país. Os políticos, juízes, dirigentes caíram em descrédito. Aí apareceu um novo líder dizendo-se a salvação contra a corrupção e a insegurança. Exalta a violência das armas e os torturadores, menospreza o meio ambiente, a educação, os trabalhadores, as minorias. E o povo, confuso pela enxurrada de informações mentirosas e amedrontado com a desfaçatez dos poderosos votou nele em massa. Um fenômeno. Mas até agora não se sabe bem se ele é a solução dos problemas, ou se é um fantoche manipulado pelos invejosos que querem saquear as riquezas do país. Tanto seres humanos de índole violenta, que viram nesse fenômeno um comparsa, como gente de bem e pacíficas mães de família votaram nele na sincera esperança de uma mudança que signifique principalmente o resgate da honestidade e segurança.
─ Mas isso é um anseio nobre e justo! Não é, Pedro?
─ Sim, parece que sim. Vamos ver. Mas é possível que honestidade e segurança sejam ilusões, engodos que estão sendo imputados ao povo. Na verdade, o fenômeno pode vir a ser o fantoche que vai entregar o país aos interesses estrangeiros. Ele tem declarado que vai privatizar empresas nacionais estratégicas. E demonstra incompreensão das causas ambientais, causas indígenas, inserção social de imigrantes e minorias. Está no sentido contrário da tolerância que pretendíamos. E tem uma ideia de educação que ultraja o que pensam verdadeiros educadores. Confunde liberdade de pensamento, de expressão e debate com doutrinação. E acaba defendendo a censura, o cerceamento de ideias.
─ Mas Pedro, todos sabem que não damos asas a cobras. Será que seria o caso de interferência do nosso Departamento de Inspirações Civilizatórias?
─ Já fizemos isso. Estão sendo enviadas as vibrações para inspirar povo e dirigentes para que o enorme impulso para mudança seja no sentido da solidariedade, nosso principal valor. E da inclusão social e tolerância do diferente e também para a soberania do país frente à rapinagem internacional. Mas, sabe como é. Na verdade depende deles. Nossa influência é limitada. O livre arbítrio, a vontade deles, é mais forte do que o que podemos influenciar.
─ Por isso detecto a instabilidade por lá no meu monitor plasmático! Tomara que as inspirações que temos enviado surtam efeito. Tomara que percebam que muita coisa que acontece por lá visa fazer o país regredir e entregar suas riquezas para a cobiça internacional. E que isso divide e povo e acende rancores e preconceitos. Tomara que aquele povo e seus dirigentes despertem, percebam que têm tudo para ser um exemplo para o mundo.
─ É, mas primeiro têm que ser capazes de pensar com a própria cabeça. Têm que deixar de ser deslumbrados e condicionados pelas fabulosas tecnologias de comunicação e manipulação que inventaram e que estão fascinando-os...