Conheci certa vez dois fidalgos oficiais de exército, um
francês, mais envelhecido e maduro, outro português, de meia idade.
Encontrávamo-nos num evento científico, eles já não eram mais militares da
ativa. Tivemos oportunidade de nos conhecer bem, fizemos juntos uma viagem de
estudos de vários dias pelo Maciço Central francês. Os dois eram ótimas
pessoas, tenho-os em alta conta, embora desde então, já lá se vão mais de três
décadas, nunca mais os tenha encontrado. Mas não esqueço até hoje o que aprendi
com eles.
Naquela viagem, conversa vai conversa vem, constatei que
o francês era um fervoroso defensor do militarismo. Ele alegava que só o regime
militar consegue garantir a disciplina, e com ela a ordem e o progresso. Segundo
ele só a hierarquia militar consegue fazer com que cada um cumpra suas
obrigações com eficiência e probidade.
Contestei, argumentei que disciplina, honestidade, comprometimento e
ordem podem ser alcançadas num ambiente de liberdade, responsabilidade, respeito
e justiça sem a necessidade da obediência cega que é a lei dentro da caserna,
onde as ordens superiores têm de ser cumpridas sem questionamento. O francês
não concordou comigo, mas notei que o português, embora calado, pareceu estar
do meu lado.
Mais tarde naquele mesmo dia, quando estávamos só eu e o
oficial português, ele me contou sua marcante história. Ele tinha se tornado
oficial muito jovem, vindo de família tradicional, na época em que todos os
jovens portugueses eram obrigatoriamente enviados pelo menos por um período
para as guerras de independência das colônias portuguesas na África. Ele fora
destacado para Moçambique, e de lá trazia uma experiência trágica. Obrigado a
seguir ordens superiores, ele conduzira um grupo de oitenta comandados a uma emboscada
de morte, já quase ao final da guerra. Embora ele suspeitasse da emboscada,
seus argumentos não tinham convencido os superiores, que, por certo, eles mesmos
não participaram da operação. O semblante e a voz do oficial português ao
contar-me essa história são inesquecíveis. Ele se considerava o culpado por
todas aquelas mortes.
Lembro também da canção de 1968 que se tornou hino dos
jovens inconformados que resistiam à ditadura militar no Brasil, a belíssima
“Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, que tem uma
estrofe que diz: “Há soldados armados, amados ou não/Quase todos perdidos de
armas na mão/Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição:/De morrer pela pátria
e viver sem razão”. O oficial português e seus comandados encarnaram bem o que
dissera anos antes a canção brasileira.
Quantas guerras, quantas ditaduras, quantas tiranias
ainda teremos que viver até aprender que é possível a justiça, a honestidade, o
respeito sem a necessidade da obediência cega às ordens que muitas vezes
equivocam-se, pois a hierarquia é feita de pessoas, e as pessoas ora equivocam-se
ora são servis a interesses inconfessáveis? Quantas agruras ainda teremos que
viver até compreender que é possível construir uma sociedade de cidadãos
conscientes, probos e engajados, em que instituições democráticas e sólidas
garantam que o nosso lado selvagem mantenha-se controlado pelo nosso lado
civilizado sem a aberração da obediência cega e do servilismo? Quantos
fracassos ainda teremos que amargar até compreender que é preferível o desassossego
da participação e do enfrentamento sadio de diferentes pontos de vista do que a
omissão, a submissão e o servilismo que advêm do conformismo e do totalitarismo?
Há filósofos e sociólogos atuais que afirmam que nossa civilização
está muito complexa, e as pessoas preferem delegar a responsabilidade por tudo
que acontece a “autoridades” do que assumirem elas mesmas a responsabilidade
por suas vidas e a vida da coletividade. Estaríamos nós renunciando à
liberdade? Desacreditamos da possibilidade de uma sociedade livre, democrática
e virtuosa? Estaríamos preferindo a obediência cega da hierarquia militar às
atribulações e desafios da construção de uma verdadeira e duradoura democracia?
Napoleão, Mussolini, Hitler, Idi Amin, Pinochet, Saddan
Hussein, entre tantos outros exemplos, parecem nos indicar que regimes
militares são desastrosos para os países e os povos que os adotam. A sociedade
é mais que seus militares. E eles, como regra, aprenderam que é preciso morrer
pela pátria e viver sem razão.
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