terça-feira, 27 de outubro de 2020

A execução do líder do MST Ênio Pasqualin

 Publicado no Jornal da Manhã em 28/10/2020.

Foi noticiada na noite deste domingo (25 de outubro) a execução do dirigente estadual do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – Ênio Pasqualin, assassinado em Rio Bonito do Iguaçu, sudoeste do Paraná. Ele foi sequestrado em casa, diante da família, e executado a tiros numa estrada rural. O crime teria tido motivação política.

Esta notícia está em veículos alternativos (Brasil 247, Revista Fórum, etc.). Como ela será tratada nos jornalões do Brasil? Vale ver o documentário “Nossa bandeira jamais será vermelha” (direção de Pablo López Guelli, 2019). Ele mostra como meia dúzia de grandes grupos de mídia carteliza a informação no país, manipulando as notícias de modo que a população reaja como um rebanho que acaba negando seus próprios direitos e apoia os privilégios da elite econômica.

Ênio Pasqualin era dirigente do MST, cuja bandeira principal é a reforma agrária. O documentário mostra como isto é traduzido pelos jornalões, que transformam tudo o que tem a ver com o MST em perigo à suposta ordem instituída. Mas, numa visão realista, o MST é um movimento legítimo, popular, que busca resistir ao sequestro dos direitos, da identidade e da liberdade do camponês. A bandeira pela reforma agrária não é pela desordem no campo, mas sim pela distribuição da terra de latifúndios improdutivos ou ilegais para camponeses que nelas desejam trabalhar.

Sendo um movimento popular, contrário ao interesse do latifundiário, o MST tem sido demonizado, junto com todos os movimentos, partidos, políticos, mídias, pessoas, etc., que se colocam ao lado dos explorados contra os exploradores. Quem vê o MST como uma ameaça à economia e à sociedade deveria procurar conhecê-lo melhor. Ele na verdade luta por uma sociedade mais justa, uma produção agrícola voltada para as necessidades das populações locais, a defesa das sementes crioulas livres dos grilhões corporativos e da obrigação do uso de agrotóxicos, o cooperativismo e campanhas solidárias, a educação sem medo de abordar temas sobre soberania, consciência de classe e militância política. Por isso o MST é temido: ele é um risco à perpetuação dos privilégios da elite econômica que ainda trata o Brasil como uma monarquia escravocrata.

A execução de Ênio Pasqualin às vésperas das eleições municipais é um recado da truculência do poder econômico. Se as manipulações não bastarem para calar seus opositores, não hesitarão em chegar às vias de fato. E não temem as consequências de seus crimes. Têm a confiança de que exercem suficiente influência sobre os órgãos policiais e judiciais para que os crimes resultem impunes.

A truculência dos assassinos de Ênio Pasqualin não se limita ao extermínio de líderes rurais. É a mesma que domina a grande mídia, mente nas redes sociais e elege prepostos que mandam na política. No quadro atual, há um modo de barrar tal truculência: é eleger políticos que representem de fato a classe trabalhadora.

Estamos próximos das eleições municipais. Que a população tome consciência de sua condição social, e enfim saiba eleger quem vai representá-la.

sábado, 24 de outubro de 2020

Pandemias e o cemitério de elefantes

 

Seu Vitorino matutava sobre as pandemias. Já era a terceira a assolar a humanidade num intervalo de cinco anos. A primeira, diziam ter começado num inextricável mercado popular do interior da China, graças a hábitos alimentares bizarros, incluindo o consumo de morcegos. Espalhou-se pelo planeta em poucos meses, graças às viagens aéreas. Ceifou alguns poucos milhões de vidas, desde o primeiro até o terceiro mundo. Mas em qualquer dos mundos, tinha suas vítimas preferidas: os mais vulneráveis, aqueles com a saúde mais debilitada, os mais pobres, os que dependiam do trabalho diário para o sustento.

Depois de dois anos de seu início, já existiam vacinas, os hábitos já adaptados a uma convivência mais responsável, veio o segundo vírus. Este surgiu na Europa, veio dos consagrados escargots. Ainda mais rápido que a primeira praga, espalhou-se pelo mundo, valendo-se da mesma forma de contágio: as viagens aéreas dos abastados. Disseminação acelerada, fez algumas dezenas de milhões de vítimas antes de ser controlada. Mas ainda era relativamente mansa, acometia os mais vulneráveis ou os mais negacionistas e negligentes. Tal como na primeira, desenvolveu-se uma vacina, aprendeu-se a viver com o novo infortúnio.

Então veio a terceira. Surgiu em inúmeros locais do planeta quase ao mesmo tempo, logo pareceu ser a praga apocalíptica definitiva. Não se sabia se provinha dos camarões, lagostas, ostras, mariscos, lulas, peixes, ou de todos eles ao mesmo tempo. Ou de um mero banho de mar. Uma coisa era certa: viu-se que os focos iniciais sempre coincidiam com promíscuas aglomerações humanas à beira-mar, fossem na Ásia, na África, na Europa, nas Américas ou mesmo na insulada Oceania. Os mares pareciam insurgir-se contra a desfaçatez humana. Das cidades costeiras espalhou-se continentes adentro com a rapidez do vento. Sua mortalidade, muito maior que nas anteriores, parecia ter uma seletividade diferente. Não eram só os mais vulneráveis ou incrédulos que sucumbiam. Parecia estar ligada a uma certa imunidade natural, ou à falta dela, distribuída imparcialmente entre os seres humanos, independente de raça, idade, local de moradia, hábitos alimentares, estado de saúde, classe socioeconômica e mesmo religião, partido político, time de futebol, sexo ou opção sexual. As vítimas fatais distribuíam-se equitativamente. Após o primeiro ano os óbitos já ultrapassavam em muito os números das duas pragas anteriores.

Seu Vitorino, setenta e cinco anos, morador de uma cidade pequena a média no interior do Brasil, já tinha vencido as duas primeiras batalhas. Aposentado, não era forçado a ir à rua com frequência para as obrigações da sobrevivência. Conseguira manter protocolos de isolamento dentro e fora da família, até que as vacinas fossem disponibilizadas. Idoso, ele fora considerado grupo de risco, um dos primeiros a ser vacinado. Mas agora as coisas pareciam estar mudando. Um implacável e desumano pragmatismo estava prevalecendo sobre a precedente solidariedade. Embora as vacinas fossem eficazes, sua produção estava muito mais onerosa e reduzida. Cada vez tinham-se menos doses. E as vítimas não eram mais principalmente os vulneráveis, espalhavam-se por toda a população. Outros critérios teriam de ser adotados para estabelecer quem seria vacinado primeiro. Não demorou, constatou-se que aqueles que não eram prioridade restariam à própria sorte ou azar, fossem ou não imunes ao novo fatídico vírus.

Seu Vitorino permanecia conectado ao mundo, via as notícias pelo celular e o velho mas fiel laptop. Julgava que os repetidos flagelos não eram fortuitos: tinham motivos óbvios, tinhosamente negaceados ao longo de décadas. Acompanhava os números diários de novas infecções, óbitos, casos recuperados, vacinados e quantidade de vacinas disponíveis. Todo dia eram informados os locais de vacinação, e os grupos que estavam sendo imunizados. Ele estava no grupo dos septuagenários aposentados. Esse grupo nunca era chamado, parecia até ter sido esquecido. As chamadas tinham ido até os sexagenários ativos, mas não alcançaram nem os sessentões aposentados. Que dirá os setentões?

O velho Vitorino procurava adaptar-se àquela sombria realidade. Esperava. E cismava. Parecia-lhe que a natureza estava a dar um jeito de igualar a espécie humana aos demais viventes do planeta. Em qual outra espécie um incapaz e improdutivo é tolerado e sobrevive? Afinal, qual a diferença entre um idoso e um elefante que já não é capaz de acompanhar a manada nas obrigatórias migrações?

Seu Vitorino chegava a pensar que esse era o dilema a ser resolvido pela humanidade: qual a diferença entre o homem e o elefante? A saída de tal dilema selaria o devir.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

O rio que subiu para o alto da colina

 

O compadre Lurdinha e eu fazíamos o mapeamento geológico do baixo Ribeira de Iguape, proximidades de Registro, o sul florestal do Estado de São Paulo. Uma região rebaixada colinosa, cercada por montanhas da Serra de Paranapiacaba. Fruto do trabalho erosivo do grande rio ao longo do tempo geológico. Tempo que é impensável para o homem comum. Este causo que o diga.

Estávamos justamente mapeando os remanescentes de depósitos fluviais, principalmente cascalhos, encontradiços em diversos níveis da paisagem regional. Os níveis testemunham fases de evolução do rio, há muito tempo, milhões de anos. Naquelas épocas o rio ainda não tinha escavado seu leito de hoje, corria num fundo de vale à altura do alto das colinas atuais, onde são encontrados os cascalhos que evidenciam que um dia o rio andou por ali.

Certa manhã estávamos analisando um barranco cavoucado bem no alto de uma dessas colinas, situada algumas poucas dezenas de metros acima do leito atual do rio e a uns dois quilômetros de distância do belo caudal, que tem suas nascentes nos distantes planaltos paranaenses e paulistas. No barranco apareciam os típicos cascalhos fluviais: os seixos arredondados, alongados e imbricados, indicando o sentido da corrente d’água que os depositara.

Concentrados nas observações e anotações, nem percebemos a aproximação do morador local, um roceiro já entrado pela velhice, pele acobreada, magro, baixo, barbas brancas por fazer, roupas, botina e chapéu muito surrados, palheiro de fumo picado no canto da boca. Vinha com semblante que denotava contrariedade e descrença, o mesmo de muitos moradores quando nos viam naquelas inexplicáveis bisbilhotices. Obviamente dois estranhos vindos da cidade, remexendo os barrancos perto de sua propriedade. Cumprimentou-nos:

─ Diiiaaa...

Subitamente arrancados de nosso aparente deslumbramento com aqueles ordinários cascalhos, respondemos de modo que o homem deve ter ficado ainda mais desconfiado:

─ Bom diiaaa...

Tentamos dar prosseguimento ao que fazíamos. Ficamos um tanto constrangidos com ele, acocorado enquanto tragava o palheiro, fixamente a observar nosso indiscutível interesse naqueles cascalhos, que para ele serviam para remediar os barreiros dos caminhos mais usados. Depois de alguma mudez, resolvi puxar conversa, o que fiz com muita presunção:

─ O senhor sabe de onde vêm estes cascalhos?

Ele ainda pensou por uns instantes, olhou para os lados como se a confirmar que tudo estava como ele sempre vira até a véspera:

─ Ói moço, tô aqui tem mais de cinquenta anos com minha família, e meu pai e avô mais que isso antes de mim. Essas pedra sempre tiveram aí. Não vieram de lugar nenhum, não.

─ Mas são pedras de rio. Um dia o rio passou por aqui onde estamos.

O semblante do roceiro encheu-se de confiança, sabedoria, certeza, galhofa e malícia. Ele riu para dentro, em respeito, creio, ao fato de sermos desconhecidos e de estarmos fazendo anotações escritas em cadernetas, tirando fotos e colhendo amostras. Tudo aquilo deve ter-lhe parecido que se tratava de um trabalho sério, e não de um desatino qualquer. Após refletir por algum tempo, respondeu:

─ Um dia um rio passou por aqui! ─ Cuspiu de lado. ─ Lhe digo, moço, nunca ninguém viu isso. E se tivesse visto, nem diria, avexado. Decerto iam dizer que tava maluco. Aí vem ôceis da cidade, escrevem isso, ôtros vão lê, nunca vieram aqui. Vão pensá que é verdade. Num é mais fácil dizê que tão percurando oro? Ói, já passaram por aqui os homi da companhia, carregaram amostra, analisaram. Mas não acharam nada não, viu?

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A vaca olhando a lua

 

Já viram uma vaca olhando a lua? Não? Acho que também não vi! Ou, se vi, não percebi. Melhor assim. Podemos então divagar com mais liberdade idealizando esta bela imagem. Mas imagino a cena: durante a noite, a vaca com as patas dobradas e o peso do corpanzil placidamente apoiado no relvado macio, o pescoção elegantemente contorcido para trás, ela encantada com o enorme disco de prata alteando-se no horizonte, pulverizando a paisagem campestre com aquele luminoso polvilho argento.

Uma cena cheia de significados. O início de noite enluarado no campo já é algo a inspirar armistício e devaneio. A vaca, um bicho pacífico, herbívoro, sereno, símbolo sagrado de paz e fertilidade no Oriente. Um dia, num futuro imprevisível, ainda nos penitenciaremos por incluirmos em nossa dieta alimentos que não sejam os vegetais e grãos que a natureza tão generosamente nos oferece. Ainda haveremos de compreender que a mesma superfície de terreno que usamos para apascentar umas poucas reses poderia nos conceder uma quantidade imensamente maior de alimento vegetal, mais saudável e com menor corrosão do solo e da alma.

A vaca repousada sobre o terreno, mansa na sua animalidade, com o pescoção sem nenhum excesso vigorosamente contorcido e o olhar embevecido observando nosso indecifrável satélite, deve inspirar-nos poesia e desafetação. Mesmo a rês, tida por nós como ignara, enleva-se fitando a grandeza e a beleza do firmamento. A lua está além de nosso planeta, de nossa realidade terrena, de nossa tacanha avareza mundana. A lua é parte do céu, o início do infindável. Como fica a natureza bovina perante tal grandeza? E quem somos nós, pretensiosos seres humanos, perante a grandeza da lua, do universo, o despojamento da vaca?

Um dos exercícios da prática chinesa do Tai-Chi Chuan tem justamente o nome de “a vaca olhando a lua”. Outro nome para o mesmo exercício é “olhando para trás e deixando para trás”. Deixando o quê para trás? Dizem que as preocupações, as angústias, os rancores, a tristeza, os arrependimentos, a ansiedade, a inveja, a raiva... Tudo aquilo que não nos ajuda em nossa caminhada, ao contrário, só faz sobrecarregar-nos de pesos, totalmente inúteis, desnecessários.

A vaca olhando a lua parece estar encarnando bem isso: a leveza da despreocupação, da confiança, a temperança da humildade e da bondade, o firme pé no chão que para os chineses é representado pelo elemento terra, aliás, o mesmo que, no horóscopo ocidental, corresponde ao signo de Touro. Alguém já viu uma vaca disputando com outra uma touceira de capim? Nunca vi. Mas já vi muitos homens brigando por alguma inutilidade, ou por algo cujo valor só existe nas fantasias e ilusões das artificiais convenções que nos deleitamos em inventar.

Tão humano que sou, invejo a vaca olhando a lua. Ela se basta, e, no entanto, sonha com o universo.


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Livros na fogueira

  Publicado no Jornal da Manhã em 03/10/2020.

Não faz muito que uso celular. Não gosto do exagero com que se abusa das ditas mídias sociais, procuro usá-las o menos possível. Ainda assim, recebo muita coisa que me faz pensar que estamos regredindo na capacidade de nos comunicarmos, de forma inversa ao prodigioso avanço na tecnologia de comunicação. Ou seria tecnologia de doutrinação?

Recebi um vídeo no qual uma encanecida senhorinha, com ares de uma bondosa avozinha, junto com o senhorinho queimavam livros de Paulo Coelho na churrasqueira. Ela não estava para as ternuras das vovós. Estava enraivecida. Com palavrões indizíveis diante de netos ofendia o autor dos livros, acusando-o de canalha, comunista, petista que fala mal do Brasil e pede para boicotarem os produtos do país. A furiosa avozinha dizia ter lido já dez livros do Bruxo, enquanto, arrancando as páginas de um deles, ia jogando-as sobre as labaredas e desfiando seu rosário de imprecações. E finaliza esconjurando o autor para o inferno.

Nunca curti Paulo Coelho. Li o primeiro livro, para não encompridar motivos, digo que não gostei do estilo, não gosto do gênero. Como diria uma estimada e saudosa amiga ─ Gosto não se discute; se lamenta! ─ Não vi o que ele andou falando para enfurecer tanto a senhorinha, mas suspeito que se o Capiroto tiver que escolher entre o autor e o casal de incendiários avós para ter a seu lado lá nas profundezas, não vai ter dúvida. Pobres avós, parece que chegaram à velhice sem que a vida tenha-lhes acrescentado sabedoria e bondade. E suspeito que na verdade o Bruxo não falou mal do Brasil, nem dos brasileiros. Deve, sim, ter dito diabruras do irresponsável desgoverno que anda arruinando o país.

Mas que vídeo intrigante, incita à reflexão! O que teria feito o casal de velhinhos passar a odiar tanto o antes apreciado escritor? Paulo Coelho não é a primeira celebridade brasileira fustigada pela ira de antes supostos pacíficos cidadãos. Junto com ele estão Chico Buarque, Paulo Freire, Marilena Chauí e tantos outros. O que anda acontecendo? A senhorinha do vídeo incendiário diz ter lido dez livros do Bruxo. Por certo viu algo de proveitoso. O que a teria feito mudar de opinião tão radicalmente?

É possível que nossa opinião nunca antes tenha estado tão à mercê da tecnologia de informação que sabidamente nos manipula, nos doutrina. Se alguém ainda duvida disso, veja o documentário “O dilema das redes” (2020, direção de Jeff Orlowski), que revela como nossas escolhas têm sido governadas pelos onipresentes sistemas de controle da informação. Deixamos de ser usuários ou consumidores, passamos a ser o produto que é oferecido aos verdadeiros consumidores: os fazedores de opinião.

O casal incendiário gostava do Paulo Coelho, leu dez livros dele. Mas o autor passou a receber deles os qualificativos de canalha, f.d.p. e outras baixarias. E, no dizer dos idosos, é um comunista, petista, que deveria mudar-se para Cuba, Venezuela ou a China, e não viver no bem-bom da Suíça.

Trata-se de uma revisão de entendimentos, que vem com a acrescentada sabedoria da velhice? Não me parece. O que tem mudado nas últimas décadas é o poder de manipulação das tecnologias midiáticas. Até idosos com gostos consolidados mudam suas convicções, e queimam na fogueira as referências anteriores. Talvez não tenham aprendido nada com elas? Queimar livros é um histórico símbolo de incompreensão e retrocesso obscurantista.

O que mais preocupa é constatar como somos vulneráveis à manipulação. Não soubemos controlar as tecnologias de informação. Então estamos sendo controlados por elas.