sábado, 29 de fevereiro de 2020

Recado aos pobres de direita


Fugindo à regra, publicamos este marcante e oportuníssimo texto da Juíza Federal Raquel Domingues do Amaral do blog Pequenas Igrejas

Sabem do que são feitos os direitos, meus jovens?

Sentem o seu cheiro?

Os direitos são feitos de suor, de sangue, de carne humana apodrecida nos campos de batalha, queimada em fogueiras!

Quando abro a Constituição no artigo quinto, além dos signos, dos enunciados vertidos em linguagem jurídica, sinto cheiro de sangue velho!

Vejo cabeças rolando de guilhotinas, jovens mutilados, mulheres ardendo nas chamas das fogueiras!

Ouço o grito enlouquecido dos empalados.

Deparo-me com crianças famintas, enrijecidas por invernos rigorosos, falecidas às portas das fábricas com os estômagos vazios!

Sufoco-me nas chaminés dos Campos de concentração, expelindo cinzas humanas!

Vejo africanos convulsionando nos porões dos navios negreiros.

Ouço o gemido das mulheres indígenas violentadas.

Os direitos são feitos de fluido vital!

Pra se fazer o direito mais elementar, a liberdade,
gastou-se séculos e milhares de vidas foram tragadas, foram moídas na máquina de se fazer direitos, a revolução!

Tu achavas que os direitos foram feitos pelos janotas que têm assento nos parlamentos e tribunais?

Engana-te! O direito é feito com a carne do povo!

Quando se revoga um direito, desperdiça-se milhares de vidas …

Os governantes que usurpam direitos, como abutres, alimentam-se dos restos mortais de todos aqueles que morreram para se converterem em direitos!

Quando se concretiza um direito, meus jovens, eterniza-se essas milhares vidas!

Quando concretizamos direitos, damos um sentido à tragédia humana e à nossa própria existência!

O direito e a arte são as únicas evidências de que a odisseia terrena teve algum significado!”


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

O petróleo é nosso?



“O petróleo é nosso” foi o lema de uma das mais marcantes campanhas nacionalistas no Brasil, que culminou com a criação da Petrobras estatal e a nacionalização do petróleo em 1953. Não foi pouca coisa, foi necessário que nacionalistas insignes, tais como Monteiro Lobato, se engajassem na campanha que contagiou a população e moveu o governo a tomar decisões em prol do benefício do País e seu povo e não das corporações transnacionais. Naquela época já havia fortíssimo interesse das transnacionais em apossar-se dos hidrocarbonetos em território brasileiro.
Ainda não se sabia (mas já se especulava) sobre os gigantes campos petrolíferos na plataforma continental (no mar próximo à costa), mas já se sabia então do enorme potencial do Brasil em gás natural nas bacias do Paraná, do Amazonas e do Parnaíba. A exploração do gás foi colocada em segundo plano, priorizou-se a exploração dos mais rentáveis (por enquanto) campos petrolíferos das bacias de Campos e Santos, no mar.
A criação da Petrobras foi uma enorme conquista, à época em que o brasileiro ainda lutava para escapar do complexo de vira lata que nos acometia, sobretudo depois da humilhante derrota para os uruguaios na final da copa de 1950 no Maracanã. A Petrobras significou o reconhecimento de que acreditávamos que tínhamos em território nacional a principal fonte de energia que move o mundo, e estávamos dispostos a fazer com que a riqueza gerada por sua exploração revertesse em benefício do País, e não para enriquecer ainda mais as corporações transnacionais e seus prepostos.
A indústria do petróleo é a segunda maior indústria do planeta, só perde para a indústria da guerra. E a guerra é movida por e para o petróleo. O barril de pólvora que tem sido o Oriente Médio no último século, com constantes guerras, é por causa do petróleo. A guerra Irã-Iraque fomentada pelos EUA foi pelo petróleo. O assassinato do general iraniano no início deste ano foi pelo petróleo. O embargo econômico ao Irã e à Venezuela, as tentativas de desestabilização do governo desta última, são pelo petróleo.
E o que o governo brasileiro está fazendo no momento com nosso petróleo? Embora diga que não, aos poucos o está entregando às mesmas corporações transnacionais que na década de 1950 tentavam tomar posse do nosso ouro negro. As concessões de exploração dos campos estão sendo afrouxadas a ponto que as maiores beneficiadas sejam as transnacionais, não mais o Brasil. A industrialização, que produz os derivados (combustíveis, petroquímicos, fertilizantes), está sendo privatizada, submetendo o País a preços e interesses internacionais, quando poderíamos ser independentes. Agora que somos autossuficientes e exportamos petróleo, o preço do combustível na bomba do posto depende de fatores alienígenas, como a guerra na Síria, a crise no Irã ou na Venezuela. O preço sobe por motivos que interessam às transnacionais, não ao Brasil.
É por esses motivos que os petroleiros estão em greve desde o mês de janeiro. Ninguém melhor que eles tem a consciência da espoliação que significa a privatização da Petrobras, ninguém melhor que eles tem noção da luta que foi a criação da estatal e do monopólio de exploração. Mas a greve tem sido divulgada? Só o foi amplamente pela grande mídia quando a justiça declarou a greve ilegal. Para sabermos de que lado está a grande mídia.
Já sabemos de que lado está o governo atual. E de que lado está o povo brasileiro?

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A Terra é plana!


Nós humanos nos consideramos animais racionais. Afinal, temos o neocórtex maior que outros animais, é ele que nos faculta raciocinar, estabelecer relações de causa e efeito, encadear informações, fazer previsões, calcular. Embora muitas vezes animais pareçam ter mais juízo do que nós.
Esquecemo-nos que além do neocórtex maior temos ainda os cérebros reptiliano e límbico. Eles propiciaram que nossos ancestrais vencessem as barreiras impostas pela seleção natural, de agressividade e de cuidado parental para a sobrevivência. Ainda somos mais agressivos e emotivos do que racionais. Por isso tantas vezes ouvimos que antes de uma ação precipitada temos que contar até dez. É um tempo que damos para que a reação do neocórtex equilibre a reação do réptil e do símio dentro de nós.
Esta natureza tríplice, réptil, primata, humana, é muito manipulada por aqueles nossos congêneres que usam o raciocínio para explorar os semelhantes e para manter-se no topo da pirâmide de privilégios. Uma das ciências mais fomentadas é a que estuda o comportamento humano, sobretudo o comportamento reptiliano e límbico. Ao lograr estimular reflexos condicionados, é possível induzir ao consumo, às ideologias, à subserviência, à omissão.
Terra plana, criação do mundo em sete dias e do homem no sétimo, armas melhoram a segurança, diminuir salários, aposentadorias, investimentos melhora a economia, a educação forma subversivos, a censura no ensino, na cultura, nas artes soluciona impasses sociais, concentrar a renda para os privilegiados fortalece a sociedade, curvar-se ao jugo da grande águia do norte irá nos salvar, funcionários públicos (e professores!) são parasitas que debilitam o país... É um rol sem fim de absurdos tidos como verdadeiros por parte significativa da população e dos nossos dirigentes. Como é possível? O neocórtex não está discernindo?
O neocórtex deve estar funcionando, mas não discernindo. Há muita engenhosidade por trás do convencimento que é preciso ter um carro novo a cada ano, um celular novo a cada seis meses, roupas novas a cada mudança da moda. E ao mesmo tempo ocultar que o planeta está extenuado, já nos dá evidentes sinais de que não dá conta de neutralizar os impactos da presença humana.
Assim como há muita engenhosidade (ou manipulação?) para convencer-nos que pode ser bom um governo segregacionista, que estimula o ódio até entre irmãos, que acha que a natureza atrapalha a economia, que julga que é proveitoso submeter-se à potência imperialista que brada ─ Nós primeiro! ─ para melhorarmos, que entrega nossos ricos recursos naturais para transnacionais rapinantes, que louva o armamentismo, a tortura, a ignorância, o milicianismo...
Acreditar que a Terra é plana, ou querer convencer outros disso, é só um sintoma. De que a razão provida pelo neocórtex não está funcionando bem. Ou está ausente, então é a bestialidade dos animais, ou descolou-se do sentimento que pode ajudar-nos a ter empatia com nossos semelhantes humanos.