quinta-feira, 26 de maio de 2016

Anatomia da crise

          Nunca se ouviu falar tanto de crise no Brasil. Talvez só na Alemanha nazista tenha sido tão colocado em prática o princípio de que uma inverdade incansavelmente repetida passa a ser percebida como uma verdade. Falava-se na crise do governo Dilma, agora fala-se no governo interino que vai tirar o país da crise. Será?

          O governo interino já vai mostrando a que veio: mudanças na aposentadoria, arrochando os direitos dos trabalhadores; aumento de impostos; desvinculação de orçamentos, ou seja, diminuição das verbas, para saúde, educação, moradia e outros setores básicos; o ato falho, depois remediado, de extinguir o Ministério da Cultura (acabar com a educação e a cultura é o caminho para manter as massas ignorantes e manipuláveis); a indicação de um ministro expoente do governo interino que é flagrado afirmando que é preciso acabar com as investigações contra a corrupção, e que diante das câmeras nega descaradamente suas afirmações; as declarações de intenção de privatização de setores estratégicos que, pelo menos em parte, ainda resistem estatais, como educação, saneamento, energia e petróleo; as afirmações sobre mudança de leis trabalhistas em prejuízo dos trabalhadores... Até onde vai esta lista de deslealdades com o país e seu povo?

          E o pior, o governo interino age de uma forma que não lhe cabe outra expressão que não golpe, ou, como dizem alguns, um monumental retrocesso. Alguns não querem que a palavra “golpe” seja utilizada. Mas como é possível que um vice-presidente que foi eleito com um programa de governo, ao ser alçado interinamente à presidência passa a praticar o programa de governo da ala que perdeu as eleições? Onde está o caráter desse vice-presidente, e de todos que o apóiam, ao contrariar o resultado das eleições aproveitando-se de um momento de governo interino que poderá deixar de existir em algumas semanas?

          E o que está por trás do golpe? Historiadores já têm insistido que o Brasil, país que por mais tempo manteve o regime escravocrata, ainda não conseguiu emergir do abismo social entre casa grande e senzala. A maior parte de nossas elites econômicas, sociais e culturais comporta-se como senhores de engenho que consideram o país sua propriedade, e não abrem mão do “direito” de explorar e oprimir aqueles que consideram pertencentes à senzala, ou seja, o povo. São elites atrasadas, que ainda não perceberam que as sociedades mais equitativas têm menos conflitos, menos crimes, mais harmonia e qualidade de vida, e nelas todos saem beneficiados.

          E a propalada crise? A crise é resultado de uma sabotagem também colossal. A começar pela grande mídia, que repete o bordão crise a todo instante, que manipula informações em favor de uma parcialidade assustadora. Não é exagero a expressão “massacre midiático” que se tornou comum nos últimos anos. E a elite econômica faz sua parte. Fiel ao seu apego à casa grande, não deseja ver a ascensão econômica e social da senzala. Não apóia o governo que age em nome dessa ascensão. Boicota investimentos produtivos, promove o desemprego, propicia a inflação e o retrocesso também no crescimento econômico do país.

          Criou-se a crise para justificar o golpe. E o golpe, onde nos levará?

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Decifrando a charada

          A data era 1973, estávamos no terceiro ano do curso de Geologia da USP. Na disciplina de Paleontologia fizemos uma excursão de estudos para Ponta Grossa, para coleta e análise de fósseis devonianos que são abundantes, e mundialmente famosos, nas rochas do subsolo da cidade.

          Quase nada me lembro daquela viagem. Lembro que, graças à presença de um professor que fora do exército, conseguimos pernoite e café da manhã num dos quartéis da cidade, já não me lembro qual. Dormimos num alojamento muito bem arrumado, as camas tinham grossos e verdes cobertores de algodão, apropriados para o frio que fez naquela noite. No café da manhã, iogurte natural e bolos, um dos colegas alunos comentou que aquilo era café da manhã de oficiais, estávamos tendo tratamento especial.

          À saída do quartel, após o café da manhã, nosso ônibus, com quarenta estudantes a bordo, foi barrado na guarita da portaria. Após inspeção, constatou-se que faltava um dos cobertores no dormitório. O ônibus não seguiria viagem enquanto o cobertor não aparecesse. E ele logo apareceu, tinha sido “esquecido” dentro da mochila de um dos colegas mais atrevidos. E seguimos viagem.

          Mas a recordação forte daquela viagem não foi o episódio do cobertor, nem os fósseis devonianos. Na noite em que pernoitamos na cidade, depois da janta e antes de nos recolhermos ao quartel, num grupo de uns vinte alunos saímos perambulando pelas desertas ruas próximas até encontrarmos um boteco ainda aberto, que servia a cerveja que estávamos a procurar. Depois de algumas cervejas e do emergir da alegria e descontração que um tal encontro desperta, o Saul inventou de organizar um jogo, um desafio para decifrar uma charada. E habilmente organizou os colegas em torno de uma mesa, sobre ela esparramou alguns palitos de fósforos e disse que eles representavam um número de zero a dez. Tínhamos que descobrir qual era o número.

          Após algumas tentativas alguém acertava ao acaso, e Saul ia rearranjando os palitos, até que alguém acertava de novo. Rearranjo após rearranjo, Saul revelava-se um artista. Ora aumentava ora diminuía o número de palitos, chegava a ter dezenas ou apenas dois ou três deles arranjados sobre a mesa, redirecionava os palitos, afastava-os, aproximava-os, girava-os, unia ou separava as cabeças inflamáveis, fazia parecer estar exercendo uma complicada arte de cálculo com muitas variáveis, para chegar ao número cifrado no arranjo dos palitos. E os números eram os mais inesperados! E ninguém conseguia descobrir a lógica, os acertos eram casuais, por tentativa e erro.

          Até que um dos colegas mais matreiros, o Kalu, descobriu! Saul pediu-lhe que fizesse segredo até que os demais fossem descobrindo, o que de fato foi acontecendo. A última a não decifrar o enigma foi a Cristina Mulata, uma das três meninas na turma onde dominavam os meninos. E isso foi motivo de regozijo geral. Logo ela, uma das mais cdf’s e queridas da turma, e uma menina, foi o alvo de todas as zombarias da noite. E a Mulata estava inconformada, tentara todas as possibilidades lógicas para decifrar o arranjo dos palitos, sem sucesso. Até que desistiu.

          O que ela não percebera, na sua honestidade e ingenuidade, é que os palitos eram só um engodo para distrair os desatentos. O número a ser descoberto era na verdade mostrado pelos dedos não recolhidos que as duas mãos do Saul discretamente colocadas sobre a borda da mesa exibiam. Uma maliciosa distração, que valeu-nos uma noite inesquecível naquele boteco que não consegui reencontrar vinte e três anos depois, quando o destino quis que eu viesse fixar residência em Ponta Grossa, então já pai de família e professor.

          Mas quando me lembro daquela espirituosa charada do saudoso Saul, não consigo deixar de pensar que, a todo momento, somos ludibriados por digressões menos inocentes. Praticadas pelos nada ingênuos dirigentes desta nossa distorcida sociedade.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Monotremos e utopistas

Os monotremos são nossos ancestrais mamíferos, que surgiram há cerca de 200 milhões de anos atrás, no tempo em que dominavam o planeta os répteis, alguns enormes e vorazes predadores. Os monotremos, por sua vez, eram pequenos, alguns com menos de uma grama de peso. Acredita-se que se alimentavam de insetos, nozes e frutas. Existem ainda espécies viventes até hoje de monotremos, a mais conhecida é o ornitorrinco australiano, que parece uma bizarra mistura de réptil, pássaro e mamífero.

No tempo dos primeiros monotremos, um viajante do espaço que observasse a primitiva vida na Terra talvez imaginasse que aqueles pequeninos seres não tinham chances de sobrevivência. Além de sua pequenez, os filhotes nasciam ainda totalmente despreparados para a vida, tinham de ser amamentados e cuidados por suas zelosas mães até que pudessem enfrentar por si sós as agruras da sobrevivência, àquela época muito mais cheia de armadilhas mortais que atualmente.

Mas, quem diria, os monotremos deram origem aos mamíferos, entre os quais nós, seres humanos. E costumamos dizer que somos a espécie dominante no planeta. Será?

Não há como deixar de comparar os monotremos com os utopistas, seres humanos assim chamados por defenderem utopias, ou seja, aquelas quimeras muito evoluídas para além da cruel realidade em que vivemos hoje. Tal como os monotremos, os utopistas ainda são uma discretíssima minoria, parecem frágeis, vítimas indefesas num mundo em que os evoluídos mamíferos, nós, seres humanos comuns, mais parecemos agir como os vorazes répteis do tempo dos monotremos.

Mas talvez, bem como os monotremos, os utopistas sejam a semente de uma linhagem evolutiva que vai gerar uma nova espécie destinada a prosperar, e quem sabe até dominar, este mundo em que vivemos. Ao longo da história, os utopistas, que pregam solidariedade, amor, reverência à natureza e ao próximo, desde Cristo até Chico Mendes, têm sido incompreendidos, discriminados, perseguidos e assassinados.

Mas a lei da evolução parece ser mesmo implacável. O novo pode surgir com ares de fracasso, mas basta-lhe a prova do tempo para mostrar a que veio. A evolução é paciente, perseverante, inexorável.

No caso dos monotremos, duas centenas de milhões de anos foram necessárias para que surgisse a complexa e pensante espécie que denominamos Homo sapiens. E no caso dos utopistas? Quanto tempo será necessário até evoluírem para se tornarem a espécie mais evoluída do planeta? Com certeza terá que ser muito menos tempo. Porque se não evoluírem logo, não restará mais planeta a ser habitado.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Que Brasil queremos?

Publicado no Diário dos Campos em 13/05/2016

         Nestes dias de uma propalada crise e de grave questionamento sobre os rumos do país, podemos contrapor dois modelos: o de um país de cooperação e solidariedade, com a preocupação da justiça, inclusão social e soberania de um lado, ou, por outro lado, um país de irrestritas oportunidades, de livre competição, mas com inevitáveis efeitos na concentração de riquezas, na pobreza alastrada e na subordinação a interesses internacionais.

          Se fosse para utilizar rótulos, seria o país socialista de um lado versus o país neoliberal do outro. Embora esta dicotomia traga implícita a artificialidade das tentativas de classificação de situações por demais complexas, ela é muito esclarecedora sobre o embate de ideologias e modelos de país que estão em discussão neste momento.

          Para refletir sobre os modelos de país, vamos de início desmascarar o problema: não se trata de identificar qual partido, qual ideologia ou quais homens públicos são os responsáveis pela corrupção que corrói a moral e as finanças do país. Infelizmente, a corrupção é um mal histórico, sistemicamente enraizado na sociedade brasileira. E o necessário enfrentamento da corrupção, se tem intenção de ter sucesso, não pode iniciar com a farsa de querer atribuí-la a somente um dos lados do embate político-ideológico em curso. O verdadeiro embate dá-se noutra esfera, que parece alcançar as profundezas da natureza humana: somos mais inclinados a uma sociedade de maior cooperação e solidariedade, para tanto aceitando limites de ganho pessoal, ou somos mais adeptos de uma sociedade de oportunidades ilimitadas, mas com as inevitáveis consequências da exacerbada competitividade e seus impactos ambientais e injustiça social?

          Apesar do inquestionável massacre midiático, a opção pelo país mais solidário, inclusivo e soberano ganhou as eleições de 2014, graças aos votos dos estados mais pobres e de parcela considerável da população dos estados mais ricos, que entende que a solução dos crescentes conflitos e crises sociais e ambientais que vivemos depende de um arranjo social mais justo e inclusivo.

          Mas os adeptos do modelo de livre oportunidade e competitividade não se conformam com a derrota nas urnas, e, como é natural para sua índole competitiva, não aceitam esperar pelas próximas eleições para tentar viabilizar nas urnas seu modelo de país. O que se observa hoje no Brasil é uma extraordinária sabotagem da governabilidade, da economia e da informação, com manipulação de boa parte da opinião pública.

          Nosso planeta encontra-se em profunda crise. Guerras, atrozes atos terroristas, correntes extremistas e segregacionistas só fazem crescer. Os esforços para frear a degradação ambiental e o aprofundamento das desigualdades sociais estão perdendo a batalha para a ambição irresponsável. O país autor do maior atentado terrorista da História, os genocídios de Hiroshima e Nagasaki, ainda é considerado o guardião dos direitos humanos e da liberdade no planeta! Enquanto comete os mais tenebrosos atos em prol da manutenção da sua hegemonia mundial conquistada na Segunda Guerra Mundial (ver o livro “Confissões de um assassino econômico”, de John Perkins, Cultrix, 2005).

        Diante deste preocupante quadro global, o Brasil é um país de imensas riquezas naturais e de diversidade racial e cultural que podem ser um diferencial sem igual para que este seja o país da solidariedade e da qualidade de vida. Mas para isso é necessário que os cidadãos sejam mais cooperativos e menos competitivos. Isto significaria estar sendo fiéis aos verdadeiros ideais cristãos, islâmicos, budistas, judeus, enfim todas as religiões que anseiam pelo ser humano emancipado. Significaria vencermos nossos instintos de sobrevivência herdados de animais acuados que já fomos e assumirmos responsabilidade de discernimento, cooperação e engajamento de seres verdadeiramente civilizados em que estamos nos tornando.