domingo, 29 de agosto de 2021

Comunismo e cristianismo

 

Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo) é autor de uma frase lapidar: “... todo verdadeiro comunista é um cristão, embora não o saiba, e todo verdadeiro cristão é um comunista, embora não o queira.” (Frei Betto no livro Aquário Negro, Editora Agir, 2009). Lembremo-nos, Frei Betto é um frade dominicano, um dos expoentes da Teologia da Libertação, premiado escritor de mais de uma centena de obras (ganhou, entre muitos outros prêmios, o Jabuti em 1982 e o Juca Pato em 1985 pela obra Batismo de Sangue, e de novo o Jabuti em 1985 pela obra Típicos Tipos – Perfis Literários). Por quais motivos o conceituado frei equipara comunistas e cristãos?

O comunismo verdadeiro, tal como formulado no século XIX por Marx e Engels, é o sistema socioeconômico baseado na distribuição equitativa das riquezas, o que seria garantido pela forte presença do Estado, que refrearia os onipresentes impulsos de ganhos vantajosos, ilícitos e privilegiados, inerentes à natureza humana. Sim, o comunismo é um sonho, talvez nunca alcançado de fato, nem em experiências efêmeras e localizadas. O Estado regulador é constituído por pessoas, e amiúde a cupidez das pessoas contamina e degenera o Estado. Por isso uma das formas de desqualificar o comunismo seja considerá-lo uma utopia, uma quimera inalcançável, delírio de sonhadores. Os detratores escondem que o primeiro passo para a transformação é sonhá-la.

E cristianismo? Cristo veio ensinar o despojamento, o amor, a solidariedade, a devoção a um Pai protetor e amoroso, que perdoa e ensina a praticar o bem, a fazer ao próximo aquilo que gostaríamos que fizessem a nós mesmos. Poucos seguiram, na época, os ensinamentos do Cristo. A multidão, com o beneplácito das autoridades, crucificou-o, com requintes de crueldade. Embora atualmente, dois mil anos depois, as religiões ditas cristãs reúnam o maior numero de fiéis no mundo, a cristandade ainda está muito longe dos ideais pregados por seu messias. Ao longo da história tem-se caluniado, queimado, crucificado, assassinado muitos verdadeiros cristãos, e tem-se santificado tiranos que usam a igreja para conquistar poder, glória e fortuna.

Há indisfarçáveis diferenças entre o comunismo e o cristianismo: hoje, o comunismo é largamente demonizado, o cristianismo continua sendo um ideal, almejado mas distante. A demonização do comunismo tem sua pérfida lógica: ele é incompatível com a exploração do homem pelo homem, com a concentração de riquezas e de privilégios, que são os alicerces que sustentam o sistema socioeconômico que vivemos, que endeusa o lucro. A elite rica ─ os privilegiados beneficiários do esbulho ─ usa todos os recursos ao seu alcance, incluindo a desinformação, a ignorância, o logro, a intimidação, o medo, o suborno, as falsas promessas, o aliciamento, para convencer a grande massa que só os aptos e meritosos vencem, e que o populacho explorado o é por incompetência, preguiça ou punição divina. A equidade do comunismo é um perigo capital para os privilegiados, por isso ele é tão difamado e combatido desde que foi formalizado.

E o cristianismo? Talvez entre os ditos cristãos, poucos o sejam verdadeiramente. Cristo condenou com veemência os vendilhões, mas as igrejas transformaram-se em instituições mercadoras de indulgências, acumuladoras de riqueza e poder. Deturparam os ideais cristãos e imiscuem-se no comércio e na política, respaldam até regimes facínoras, como foi com o nazismo; em nome de combater a expansão de um suposto regime ateu, o comunismo. Mas fiquemos alertas: o comunismo ateu é outro embuste dos que tentam difamá-lo. O comunismo não é ateu; ele condena o Estado confessional (não laico) e o uso que se faz da igreja e da fé para manter o trabalhador submisso dentro do arranjo de espoliação do trabalho. Religião, algo inerente ao ser humano, não é a mesma coisa que igreja: a religião agrega, liberta, transcende; a igreja desagrega, explora e oprime. O pensamento comunista teve a coragem de questionar o uso que a igreja faz da religião.

Mas talvez o que o comunismo e o cristianismo tenham de maior semelhança é que os dois estão hoje com seus significados degenerados: não sabemos mais o que seja o verdadeiro comunismo, nem o verdadeiro cristianismo. Esse é o sentido da frase de Frei Betto. Se acordássemos para entender o significado real das duas palavras, enxergaríamos que ambas nos apontam para o mesmo ideal de convívio solidário e amoroso. O oposto do mundo amesquinhado, segregacionista e beligerante que vivemos hoje.

domingo, 22 de agosto de 2021

O Talibã do Brasil

 Publicado no Jornal da Manhã em 24/08/2021.

Nesta última semana, após a retirada das forças ocidentais do Afeganistão e da retomada do país pelo Talibã, viralizaram na web charges compelindo os antidemocratas do Brasil a se mudarem para o país asiático. Em geral, as charges dizem assim: “Você não quer um país misógino, homofóbico, sem urnas eletrônicas, sem direitos humanos, sem STF, sem congresso, armado até os dentes e tudo em nome de Deus? Então vá para o Afeganistão do Talibã.”

Como fazem as boas charges, estas dizem com humor e picardia o que é do domínio popular. O Afeganistão dominado pelo Talibã retrata bem o que seria o Brasil dominado pelos apoiadores do desgoverno que atordoa o país com bravatas diárias sobre impedimento de ministros do STF, calúnias sobre urnas e eleições, armamento dos mais ensandecidos, desqualificação das mulheres, dos jornais, dos adversários políticos, da democracia, apologia a torturadores e à chacina de opositores, negação da gravidade da pandemia e dos protocolos de como enfrentá-la... Tudo isso em nome de Deus e da pátria.

Mas há uma despercebida diferença entre o Talibã e os radicais brasileiros. Com toda sua injustificável barbárie, os extremistas afegãos são patriotas; acreditam que lutam pela liberdade e emancipação de seu país. Nem isso temos no Brasil. Aqui, nosso dirigente máximo bateu continência para a listrada e estrelada Old Glory, lambeu as botas do ensandecido estadunidense Trump, que incitou à invasão do Capitólio e quase iniciou uma guerra civil nos EUA. E tudo que se faz hoje no Brasil de política econômica e social é voltado para perpetuar nosso país como servil colônia, exportadora de matérias primas baratas e importadora de produtos industrializados valorizados. E sempre mantendo um vasto contingente de desempregados; para desencorajar as lutas, dos que ainda têm emprego, por melhores salários e condições de trabalho.

Ou seja, nossos ultrarradicais de direita têm todos os defeitos do Talibã, mas não têm o que talvez seja sua única virtude: o sonho de liberdade, de autonomia, de pátria emancipada dos grilhões dos impérios que não hesitam em fazer a guerra, corromper governos, eleger e armar tiranos, invadir, destruir e desorganizar países e depois abandoná-los à sua própria sorte. Foi assim na Líbia, no Iraque, no Afeganistão. Foi assim na Coréia, que acabou dividida. Não foi assim no Vietnã, que escorraçou os invasores. Tem se tentado assim contra o Irã, Cuba, Venezuela, que resistem, a duras penas. Com o Brasil tem sido fácil, não foi necessário um contingente militar nem bloqueio econômico. Bastou um juiz ímprobo e um governo marionete, eleito graças às fake news e a uma duvidosa facada.

Que acerto das charges que convidam os ultrarradicais brasileiros a se mudarem para o Afeganistão do Talibã! Lá encontrariam campo fértil para extravasar seu insano fanatismo. Mas talvez tivessem que aprender algo que lhes falta: o verdadeiro apreço pela pátria, soberana, livre das garras dos impérios que nos exploram desde que viemos a ser denominados Brasil.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Bajulação

 

Bajular seria o mesmo que puxar o saco, jogar confete, inflar o ego, lamber as botas, alisar, “cumpadrar”, sorrabar, sabujar... São muitas traduções, algumas menos prosaicas: aliciar, subornar, subjugar, fazer demagogia, fazer proselitismo, praticar clientelismo... Estas traduções, mais cheias de ocultos interesses, também são muitas.

A bajulação tem variados propósitos: adoçar um superior almejando simpatia e benesses, distrair e desarmar um rival antes de dar-lhe uma rasteira, cooptar para o famoso “toma lá dá cá”, ou o “uma mão lava a outra”, ou ainda o “é dando que se recebe”, ou simplesmente fazer o bajulado sentir-se em dívida com o bajulador, a qual será cobrada no momento oportuno. A palavra bajulação traz embutida em seu significado a falsidade. A gentileza, o favor ou o elogio feito não é uma generosidade desinteressada nem um verdadeiro reconhecimento de atributos do bajulado, mas é uma estratégia calculada para superá-lo, submetê-lo ou cooptá-lo para causas que não seriam apoiadas por meios sinceros, transparentes.

A bajulação faz parte das difundidas estratégias do hipócrita convívio social que caracteriza a espécie humana. Animais em estado natural, crianças ou mesmo adultos que logram ser sinceros, não são dados a bajular. Emprega-se a bajulação com os superiores no trabalho, com os eleitores para conseguir votos, nas agremiações de qualquer natureza para conquistar apoiadores e alcançar posições de destaque, em qualquer grupo de pessoas para tentar ser mais aceito e evitar conflitos, perante autoridades para alcançar privilégios... Aqui também a lista seria infindável. Todos nós a conhecemos bem.

Os desdobramentos da bajulação têm consequências de muitas dimensões: podem eleger tiranos, psicopatas ou bandidos, podem perpetuar impérios colonialistas, podem cristalizar e absolver vícios sociais como a corrupção, o racismo, o machismo, todo tipo de segregação. Infelizmente, nossa sociedade é hipócrita, presta-se muito bem à bajulação. Uma frase capital, já repetida até em tirinhas de quadrinhos, diz: “A mentira desgasta relacionamentos; a verdade não, a verdade devasta”. É uma tradução de como somos falsos: sabemos conviver com a mentira, ainda que ela degenere os relacionamentos; mas a verdade, ela nos destrói.

E não somos só hipócritas, somos também ambiciosos e vaidosos. Que cena ontológica aquela do excelente thriller O advogado do diabo (EUA, 1997, direção de Taylor Hackford), quando o diabo, divinamente interpretado por Al Pacino, afirma: “Vaidade, meu pecado favorito.” E o diabo, fazendo uso da bajulação e manipulando a vaidade e a cobiça, vai fazendo diabruras ao longo do filme. As mesmas diabruras que vemos no mundo atual, quando assassinatos, massacres e genocídios passam impunes, países e povos são destroçados em nome da suposta caça a terroristas, destrói-se o delicado equilíbrio do ambiente que sustenta a vida na Terra em nome do lucro, poucos nababos locupletam-se às custas da pauperização de multidões.

Bajulação não é o mesmo que persuasão. A persuasão é veraz, transparente, um jogo de cartas abertas. Aos persuadidos de fazer suas escolhas, conscientes. A persuasão é a arma dos honestos. Na bajulação procura-se cooptar ocultando, sem declarar quais são as verdadeiras intenções. Ela é dirigida ao emocional, às sombras do ego, não à luz da razão. Mas para quem é bajulado, muitas vezes isso não faz diferença. Desde que o ego saia inflado, saciado. A bajulação é a arma dos pérfidos.

Caminhamos entre a bajulação e a persuasão. Que tenhamos siso!

sábado, 7 de agosto de 2021

Questão de fé

 

Certa vez, há muitos anos, conversava com um colega ateu sobre religião; ele me dizia que acreditar em Deus é uma questão de fé. Essa afirmação até hoje me faz refletir. No seu ceticismo, meu colega, alguém com boa formação teórica, estava tentando dizer-me que crer em Deus está no campo da irracionalidade, da crença sem evidências. Isto seria a fé. Ela não é racional. Mas desta opinião vêm as dúvidas que me fazem refletir: não há evidências de que exista algo tão excepcionalmente exato e harmonioso, além de nossa compreensão, que é o que poderíamos chamar de Deus? Ainda que nossa noção de Deus seja muito pessoal, talvez única, distante das concepções religiosas?

Estamos num frio invernal de temperaturas negativas; uma acha de lenha na lareira queima libertando o fogo que uma árvore armazenou, pacientemente, pouco a pouco acumulando a energia emanada pelo Sol. Na lareira de casa, reproduz-se um pequeno Sol, quente, luminoso, adormecido na madeira. E ele não só aquece e ilumina, também crepita vozes, o braseiro rubro e as chamas bruxuleantes arrebatam-nos o siso, hipnotizam, parecem transportar-nos para o turbilhão primordial incandescente que engendrou o existir de todas as coisas, e está imanente em tudo que se pode ver e tocar.

O fogo do Sol libertando-se na lareira parece-me um pequeno milagre, uma pequena manifestação de Deus. Mas a árvore que armazenou a energia do Sol, o planeta Terra que é povoado por árvores e animais, alimentados pela água, o ar, o solo fértil, os calculados arranjos astronômicos para que em nosso planeta sucedam-se perfeitamente a preamar e a baixa-mar que movem e renovam os oceanos, os dias e as noites, os verões e os invernos, os glaciais e os interglaciais, a atração da gravidade que nos apruma, a atmosfera que nos abraça e nos protege, todo esse emaranhado conspirando para gerar e fazer evoluir a vida, tudo isso não é um incrível milagre? De uma grandeza que escapa à compreensão e ao respeito dos humanos? Não enxergar que não é possível que tão calculados arranjos sejam casuais parece-me um negacionismo comparável a não aceitar que a Terra seja redonda. Negacionismo fruto de um desmesurado egocentrismo, ou antropocentrismo, ou androcentrismo.

Diante de tamanhas evidências de um poder organizador do Universo que nos acolhe, parece-me que acreditar em Deus não é uma questão de fé, mas é uma questão de humildade. É a soberba do ser humano, que engendra a cobiça, que faz que não enxerguemos o milagre da natureza e da vida. É a soberba que nos cega e nos faz devotos de igrejas que põem em guerras fratricidas seus seguidores, por discordarem de corrompidas concepções de Deus. É a soberba que faz que criaturas suponham-se superiores e degradem, explorem, escravizem outras criaturas e o ambiente que as nutre.

Vivemos um momento de alerta, com agudas crises, no meio ambiente, na ética, na política, na segurança, na saúde, na intolerância, no ódio, nas religiões, na espiritualidade, na pobreza das famílias e dos desamparados que não têm com quê se alimentar e viver com dignidade. Talvez a expressão mais contundente da crise seja a cegueira moral que acomete tantos da população mundial, que já não conseguem discernir entre verdade e embuste, necessidade e concupiscência, solidariedade e bajulação, líderes verdadeiros e tiranos ensandecidos, ilusão e esperança, seita e religião.

Tomara seja mesmo verdade a crença de que as crises são necessárias para a evolução. A crise atual que estamos vivendo estaria, assim, engendrando a humanidade evoluída, talvez liberta dos erros da cobiça, da soberba, da incredulidade, da desfaçatez.

Oxalá galguemos este degrau evolutivo; antes que a crise degenere num irreversível colapso.

domingo, 1 de agosto de 2021

Adeus à placidez da Placidina

 Postado no Portal ncg.news em 06/07/2021.


A Vila Placidina fica entre o centro de Ponta Grossa e a Vila Estrela; estão nela o Hospital da Criança, Chácara Margherita Masini, Polícia Federal, Regional de Saúde e UPA Santana. Muitas vezes ela é confundida com a Vila Estrela, que na verdade começa mais além. Ela já fez jus à placidez do nome, mas as mudanças chegaram.

Este incógnito bairro é cortado pela Rua Balduíno Taques, caminho para Curitiba, Palmeira e Vila Oficinas. Há 25 anos moramos em casa na Vila Placidina, a 30 metros da Balduíno. Quando a família aqui chegou, o silêncio reinava à noite, apesar da proximidade da via de saída da cidade. Era como se morássemos num bucólico vilarejo do interior. A calma do lugar nos animou a plantar árvores frutíferas no pequeno jardim em frente à casa. Nele, sabiás, sanhaços, bem-te-vis, guaxos, saís-azuis, às vezes até o tié-sangue, vêm bicar pitangas, acerolas e carambolas. Árvores generosas, amiúde carregadas. E pardais, canários, avoantes, chupins e rolinhas vêm também ciscar a quirera que lhes esparramamos. Tico-ticos desapareceram. Foram sumindo, ao mesmo tempo em que proliferaram os chupins. Decerto efeito das extremosas mães tico-tico, que, indulgentes, alimentam grandes filhotes de chupins. Logo os chupins não terão quem choque seus ovos. Um alerta aos humanos e seus parasitismos.

Na calçada na frente da casa, uma sibipiruna alterna épocas desfolhadas com verdes folhas jovens e floradas amarelas. Suas vagens se contorcem e rompem ao sol, arremessando as sementes. Projéteis que ricocheteiam ruidosos nas vidraças, anunciando a primavera. Outros pássaros frequentam a sibipiruna, mormente quando ela está florida: cambacicas, gaturamos, coleirinhos, beija-flores, saíras-preciosas. Isso tudo nos transporta a uma atmosfera campestre, a apenas mil metros da praça da matriz.

Mas a placidez da Vila Placidina não resistiu ao “progresso”. Carros e motos barulhentos, veículos policiais, ambulâncias e bombeiros com sirenes disparadas, vêm nos revelando que não estamos no vilarejo, mas sim na cidade que é agitado polo regional. E, nos últimos anos, uma novidade: alta madrugada, às vezes ouve-se o apito e o ronco dos motores a diesel de locomotivas. Com tanta nitidez que parece que estão correndo pela Balduíno. Por algum sobrenatural sortilégio, a diurna avenida viraria via férrea nas horas mais recônditas da noite?

Quando notamos os sons da ferrovia ao lado de casa no silêncio da madrugada, primeiro pensamos que fosse sonho ou ilusão. Não, não era! Seria assombração? Cheguei a sair para o quintal para perceber melhor de onde vinham aqueles desarrazoados ruídos. Eles eram bem reais, vinham mesmo da Balduíno. Mas por lá não passava nenhuma locomotiva a marcar com seus berros e sacolejos o trajeto percorrido. De onde vinham então aqueles estranhos sons?

Fantasiei que aparições de antigos trens deveriam estar assombrando o que antes fora a estrada de ferro que atravessava Ponta Grossa. Trens fantasmas! Teria sido esse o motivo do nome da torcida do time de futebol da cidade? Para compensar a fantasia, fui procurar nos mapas a ferrovia mais próxima. Ela está muito longe, lá para os lados do bairro da Nova Rússia. Viriam de lá os sons que ouvíamos no silêncio da noite?

Enfim reconhecemos que não eram só os sons da fantasmagórica ferrovia que tínhamos passado a escutar. Os raros veículos ruidosos que percorriam a Balduíno durante a noite também nos chegavam com uma intensidade que não conhecíamos. Será que antes eles não aconteciam? Ou algo na cidade estava fazendo que eles chegassem a nós com mais força?

Numa manhã de dia útil, ao sair de carro da garagem de casa, notamos mais um sinal das mudanças no bairro: a rua estava tão cheia de carros estacionados, que um descuidado motorista parou obstruindo parte da guia rebaixada em frente ao portão. Não chegava a impedir a saída, mas a dificultava muito. Distraidamente, pensei que era mais um efeito dos gigantes prédios de mais de 20 andares, recém-construídos bem no quarteirão do outro lado da Balduíno. Os carros eram de moradores ou de trabalhadores nos muitos apartamentos da urbe que cresce para o alto, enquanto o espaço no chão parece encolher.

De repente caiu a ficha: os prédios! Eram eles os responsáveis pelos sons noturnos! Não eram trens fantasmas! Decerto sobretudo em noites com ventos favoráveis, os sons da ferrovia, bem audíveis lá na distante Nova Rússia, são trazidos pelo ar até os enormes anteparos de concreto e vidro, e refletem-se na vizinhança como se de fato os trens estivessem ali.

E os colossais blocos de concreto não só nos trouxeram as locomotivas à Balduíno. Eles são imensos tapumes. Retalham o que antes era o nosso vasto azul do dia ou o borrão de estrelas das noites sem névoa. Roubam-nos o horizonte, o sol, o céu onde passeávamos nosso senso de vastidão. Um fenômeno de propagação e reflexão do som nos monólitos que brotam incontíveis e, ao mesmo tempo, de invasão da janela do firmamento por onde divagávamos nossas cismas.

O “progresso” vem confinando às lembranças o tempo da plácida Vila Placidina.