domingo, 25 de outubro de 2015

Psicanálise da sociedade brasileira


Publicado no Diário dos Campos em 26/04/2015

          Quando era ainda bem jovem, li o livro Psicanálise da sociedade contemporânea, de Erich Fromm. Lembro que o livro me marcou profundamente, fez-me rever toda a visão de mundo e de mim mesmo que tinha à época. Mas, confesso, salvo que ele promoveu essas grandes transformações pessoais, pouco me lembro com precisão do conteúdo do livro.

          Mas atualmente ocorre-me a urgência de pensarmos a psicanálise da sociedade brasileira. Sabemos do arraigado hábito de o brasileiro culpar o governo por tudo o que anda de errado e nos incomoda. Diriam os psicanalistas que este é um inescapável estratagema do indivíduo para autoproteger-se; se nos vemos impotentes perante uma situação indesejável, ou perante a necessidade de uma transformação imperativa da qual não somos capazes, ao invés de culparmos a nós mesmos por essa impotência, culpamos alguém fora de nós, projetamos a culpa, e assim nos livramos de nos destroçarmos em autocensuras e derrotismos.

          E quem culpamos fora de nós? Ora, o governo, claro. Tudo o que vai mal em nossa sociedade é culpa do governo e dos políticos. Pelo menos era assim até algum tempo atrás. O governo era então quase que um ente impessoal, como o “mercado” hoje, outro ente impessoal que parece ditar regras surrealistas a que temos que nos submeter.

          Mas o governo hoje já não soa mais impessoal. Ele ganhou personificação, na presidente em exercício e no seu partido político. Mas convém lembrar que esta personificação atual, que antes não existia, é fruto de um colossal trabalho de manipulação midiática. A grande mídia trabalha, ou melhor, manipula incessantemente para que, perante nossa insatisfação e impotência de superar os atavismos de nós mesmos e de nossa sociedade, culpemos a presidente e seu partido. E nos últimos anos estamos culpando também a Petrobras, a maior empresa do país, e uma das maiores ameaças ao cartel internacional que controla a principal fonte de energia do planeta.

          Mas por qual motivo a grande mídia estaria exercendo esse implacável trabalho de convencimento do cidadão de que as causas externas de seus males são a presidente, o seu partido, a Petrobras? Bem, para começar a tentar responder a esta pergunta seria necessário muito mais que o espaço disponível nesta coluna que o jornal franqueia ao leitor. Seria necessário que o cidadão concordasse em fazer sua psicanálise, e assumisse a postura de protagonista de sua vida, deixasse de ser um protagonizado, um manipulado. Isto implicaria dedicarmo-nos a observar e reconhecer nossos próprios atavismos, sem nos destruirmos pela culpa. E encetarmos a tarefa de nos transformarmos, e transformarmos a doentia sociedade que construímos, que vivemos.

          Alguns sociólogos e filósofos atuais têm afirmado que o cidadão médio não está disposto a esta tarefa. Prefere a alienação e a ilusão de culpar o governo, a presidenta, o seu partido, a Petrobras. A grande mídia, e os interesses oligárquicos que ela personifica, fica bem satisfeita com sua eficácia. O cidadão comum revolta-se, enraivece contra estes culpados exteriores. Eles poderão até mudar, mas o cidadão não muda, a sociedade não muda, as oligarquias não mudam.

“Nós, os répteis...”

Publicado no Diário dos Campos em 28/03/2015.

          O bizarro início de frase acima foi proferido no ano de 1973, por um professor de Paleontologia durante uma aula do curso de Geologia da USP. Obviamente, tratou-se de um ato falho do já falecido professor, que teria pretendido dizer “nós, os mamíferos...”. Pela sua naturalidade e picardia, a frase tornou-se um mote do curso de Geologia à época: apareceu estampada em camisetas, foi pichada em muros da universidade, foi impressa no jornal do centro acadêmico e era pronunciada amiúde, sempre que se pretendia ressaltar incoerências e contradições praticadas por qualquer um de nós, humanos. Mamíferos ou répteis?
          Mas quanto presságio poderia estar contido naquela aparentemente desastrada e risível frase! Pois após ela ter sido proferida alguns fatos nos levam a refletir sobre o quanto ainda somos répteis.
          Os antropólogos e neurocientistas enfatizam que o Homo sapiens tem três cérebros: o mais antigo e primitivo, o cérebro reptiliano, é herdado dos répteis, e é responsável por nossos comportamentos instintivos, sobretudo o instinto de sobrevivência, que nos faz desconfiados, intolerantes, agressivos, competitivos, individualistas, ambiciosos; depois, há cerca de 230 milhões de anos, apareceu com os mamíferos o cérebro límbico, responsável por emoções que facultavam às mães a capacidade de cuidarem de suas crias até que elas pudessem enfrentar por si mesmas as agruras da vida; por último, há cerca de cinco milhões de anos, apareceu o cérebro neocortical, responsável pela capacidade de discernir, de estabelecer relações e previsões, enfim, de raciocinar.
          Apesar dos inegáveis avanços da civilização atual, a par do conhecimento e da tecnologia talvez nunca tenhamos sido tão consumistas, tão competitivos, tão individualistas e tão condicionados por reflexos instintivos e agressivos. Alguns exemplos? As maiores indústrias do mundo hoje são a da guerra e a do petróleo, esta para mover as máquinas de guerra. Outro exemplo? A corrida aos postos de combustível do Brasil no mês de fevereiro passado, quando a mídia alardeou um desabastecimento que nunca ocorreu. Ou seja, parece que estamos numa época de conduta reptiliana, ocasionalmente associada com o cérebro neocortical. E abandonamos temporariamente o cérebro límbico, que nos permitiu o zelo, a solidariedade, a compreensão, a tolerância, o discernimento.
          Então, estaríamos nós, atualmente, nos comportando mais como os répteis, e fazendo jus à despretensiosa frase do desatento professor de Paleontologia? As intolerâncias e irracionalidades dos dias atuais parecem nos dizer que sim. Pois vivemos ao mesmo tempo a civilização da informação, do consumismo, da manipulação e da farsa. O colossal volume de informação que está a nosso alcance parece visar, sobretudo, fazer-nos consumir. A mídia cumpre seu papel nesse arranjo, empenhando-se em convencer-nos da felicidade contida no consumo, seja de produtos, de comportamentos e ideologias clichês. E nunca antes fomos tão hipócritas, fazendo de conta que somos felizes e tudo vai bem, enquanto cresce a criminalidade, a violência, a corrupção, a intolerância, a ignorância, a incivilidade, a arrogância, a omissão, a conivência. Não respeitamos, não discernimos, preferimos seguir um consenso artificial que nos é sutil, mas implacavelmente imputado.
          E o que é pior, como poderíamos diminuir os arroubos de nosso cérebro reptiliano em nome de mais expressão dos nossos cérebros límbico e neocortical? E cuidando para que estes estejam em harmonia, pois a sensatez depende do equilíbrio da emoção com a razão? Talvez isso fosse possível por meio da educação, da cultura, das artes, da ética inspirada na espiritualidade. Então, e como andam estes temas no mundo atual?
          Afinal, nós, os répteis, ou os mamíferos Homo sapiens? Prefiro crer que estejamos só num lapso de animalidade, talvez um lampejo de nossos distantes ancestrais escamosos. Mas a afetuosidade e a racionalidade hão de preponderar sobre o egoísmo reptiliano. Lembrem-se, no tempo dos répteis, as fêmeas deixavam os ovos a serem chocados pelo sol, enquanto elas mesmas iam alimentar-se dos ovos de suas vizinhas. E as vizinhas, onde andavam?

O alerta de Ruanda: progresso ou genocídio?


Publicado no Diário dos Campos em 30/07/2013         

Durante cerca de três meses ao longo do ano de 1994, perpetrou-se um dos maiores genocídios da história em Ruanda, país independente desde 1962, antes dominado pela Bélgica por mais de 50 anos. Estima-se que o genocídio conte cerca de 800 mil vítimas. Ele resultou do ódio entre duas etnias, a maioria hutu e a minoria tutsi. Esta última antes ocupava os cargos de liderança do país, e foi a maior vítima do hediondo massacre.

          Em seu livro E se Obama fosse africano? o escritor e biólogo moçambicano Mia Couto nos alerta que aquele foi o massacre da história em que se matou mais gente em menos tempo, e que antes de 1994 um hutu ou um tutsi, se perguntado, declararia que um tal massacre seria inimaginável. O autor africano conclui que “a capacidade de produzir demónios é ainda muito grande em nossos países.”

          Refletindo sobre a pessoa humana e comparando o genocídio de Ruanda com outros recentes, no Vietnã, no Iraque, no Zimbábue, Mia Couto assevera que elites criminosas foram capazes de manipular comunidades que antes conviviam em harmonia, lançando-as no ódio.

          Será que estes alertas são aplicáveis ao Brasil e à América do Sul, que guardam amargas diferenças e semelhanças com África e Ásia? Talvez tenhamos que pensar mais sobre estas coisas. O Brasil, por exemplo, já foi exaltado por ser um país pacífico, cheio de recursos naturais, com uma harmonia religiosa e linguística que o elevam à suposta condição de uma nação de futuro muito promissor. Então, qual a razão de nos desesperarmos de ver este futuro tantas vezes anunciado sempre ser adiado?

          Devemos nos perguntar se por aqui não andamos a sofrer dos mesmos males cultivados pelos colonizadores alhures, que há séculos praticam o aforismo “dividir para governar”. Pois não é isto que estamos constatando quando vemos os rumos que estão tomando as manifestações dos brasileiros que têm ido às ruas clamando por mais democracia e mais ética? Se no início essas manifestações pareciam espontâneas e legítimas, os vandalismos tão enfatizados pela grande mídia estão a tirar-lhes a autenticidade. Foi com muita apreensão que li o significativo relato de uma grande manifestação em São Paulo, iniciada no bairro de Pinheiros, e que, manipulada, originou marchas para três destinos distintos. E este foi só um entre muitos exemplos de manipulação.

          Também espanta o ambíguo poder das redes sociais. Por um lado, elas conseguem organizar grandes manifestações à revelia dos meios formais de comunicação. Por outro lado, por elas transitam grotescos materiais apócrifos e caluniosos incitando à emotividade, à irracionalidade, à segregação, à intolerância. Enfim, incitando à divisão e ao sectarismo, ao ódio ao diverso, seja ele a classe social ou econômica, o partido político, a ideologia, o gênero, a cor da pele, o estado ou região de origem, a crença ou até o time de futebol!

          Será que o Brasil, e toda a América do Sul, estão sendo também vítimas de deliberados esforços de “dividir para governar”, perpetrados não mais pelos colonizadores dos séculos passados, mas pelos novos colonizadores menos identificáveis deste século XXI?

          É muito recomendável que nos façamos esta pergunta. Ao menos para que procuremos ser mais sensatos e menos virulentamente irracionais. E sejamos mais respeitosos com aquilo que há a respeitar na nossa jovem e incipiente democracia. Ou será que já nos tornamos incapazes de reconhecer que, independente dos erros de líderes e seus partidos políticos, temos conquistado importantes avanços em nosso país? Há que saber discernir entre os erros a corrigir e os acertos a preservar e aprofundar.

          O próprio Mia Couto dá-nos alguns conselhos: primeiro, passar por nossas mentes alguns “antivírus” de bom-senso, para livrar-nos dos maliciosos hóspedes da intolerância que têm sido implantados via insidiosa propaganda; segundo, é preciso “pensar”, no sentido original da palavra, que quer dizer “curar” ou “tratar” um ferimento, de modo que escapemos das prisões do pensamento viciado e sejamos capazes de praticar a saudável “inquietação crítica”.

Antissemitismo e antipetismo

Publicado no Diário dos Campos em 29/10/2015

         Surpreendo-me de ver na Universidade, entre professores, alunos, funcionários, uma situação que me parece paradoxal. Por um lado, tornou-se politicamente correto, ou politicamente obrigatório, manifestar-se contra todo tipo de discriminação: os afrodescendentes, os indígenas, os oriundos de escolas públicas, os LGBTs, os imigrantes... Por outro lado, nunca vi tanta discriminação contra um partido político, o PT, e seus expoentes, o ex-presidente Lula, a atual Dilma, e outros. Não que o partido e seus líderes não cometam erros que precisam ser apurados e responsabilizados. Mas a discriminação atual é fundamentada? Preocupo-me quando, por brincadeira ou por costume, perante qualquer problema alguém pronuncia: “É culpa da Dilma”, ou quando vejo adesivos nos veículos da elite “FORA PT, E LEVE A DILMA JUNTO”.

          Esta situação faz-me lembrar do antissemitismo e seu apogeu, o holocausto durante a segunda guerra mundial. Hitler tinha lá seus motivos, objetivos e subjetivos, para promover aquela barbárie. O principal motivo objetivo era apoderar-se das imensas riquezas acumuladas pelos judeus, e assim alimentar sua insaciável máquina de guerra. Os motivos subjetivos, esses talvez seja necessário perguntar a Freud. Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, utilizou um princípio simples para convencer a nação alemã da ameaça semita: o condicionamento reflexo. O mesmo que Pavlov já havia demonstrado quando fez cães salivarem ao toque de uma sineta, mesmo sem apresentar-lhes o bife. O suposto perigo semita foi tantas e tantas vezes afirmado pela mídia controlada pela tirania nazista que a população começou a reagir instintivamente e aceitá-la como verdade. Uma tática muito repetida ao longo da história, a insistente repetição de um factoide transformando-o numa falsa realidade, que é percebida como uma inquestionável verdade.

         Estaríamos atualmente vivendo algo parecido no Brasil? Não vivemos num regime nazista, isto é certo. Mas a mídia hoje é muito diferente da mídia do Terceiro Reich? Quem a controla? Com quais interesses? E, se a mídia tem o interesse de estigmatizar o PT, Lula, Dilma, quais seriam seus motivos, objetivos e subjetivos, para tanto? Por certo o PT não é detentor de riquezas materiais que interessem aos controladores da mídia atual. Seriam então detentores do quê? Talvez um partido que tenha surgido de movimentos sindicalistas, que tem como princípios a participação popular, a valorização da força de trabalho e das oportunidades para todos, a superação da fome, da ignorância e da pobreza, a inclusão social e, sobretudo, a soberania e libertação do cidadão e da nação, tenha, sim, muitas riquezas que interessam a outros. Ou incomodam e atrapalham a outros. Grosso modo, pode-se dividir a humanidade em dois grupos: os que acreditam em cooperação e solidariedade, e os que acreditam em castas privilegiadas e competitividade. Em qual destes grupos alinha-se o PT, a mídia, cada um de nós? E repito, não que o PT não tenha seus erros, que precisam ser apurados.

          Já as razões subjetivas para a estigmatização do PT e de seus quadros, este talvez seja um assunto para Freud e Pavlov.