quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Ponta Grossa no divã II

Publicado no Jornal da Manhã em 22/11/18 e no Diário dos Campos em 23/11/18.

Em março passado foi publicado o texto Ponta Grossa no divã, que lembrava bizarrias que marcam a cidade: o mito da maldição do beato João Maria; a única cidade brasileira que deu vitória a Guilherme Afif Domingos; a associação de empresários punida pelo Ministério Público por pregar que beneficiários de programas sociais não pudessem votar; a mesma associação que apoia o general que defende a intervenção militar; a vereadora que simulou o próprio sequestro; o time de futebol de altos e baixos...
Outras bizarrias que levaram o nome da cidade aos jornais nacionais poderiam ser lembradas: a biblioteca com as paredes todas de vidro, inclusive as dos banheiros; os bordéis de menores ao longo da rodovia que atravessa a cidade; a criminosa explosão da loja de fogos de artifício pelos inconformados concorrentes...
Mas Ponta Grossa não é feita só de bizarrias: é uma cidade polo de uma região singular; congrega importante parque industrial e agronegócio com notável patrimônio natural; abriga universidades públicas consolidadas com marcante influência regional; é cidade média conectada à capital e tem atraído empreendimentos industriais, imobiliários, da área de saúde e comércio de monta; tem boa infraestrutura e oferece qualidade de vida muito superior às grandes cidades; é pródiga no recurso natural mais estratégico do Século XXI – a água de qualidade.
Justamente por coexistirem na cidade atributos e interesses tão diversos, Ponta Grossa tem potencial para tornar-se um exemplo, para o Brasil e o mundo, de convivência frutífera. A sabedoria do ser humano há de ser capaz de compreender que o convívio harmonioso dos diferentes enriquece. Ainda aprenderemos isto, superando os instintos primários que nos movem à ambição desmesurada, à competitividade e à violência.
Mas uma parcela da população ponta-grossense parece teimar em reproduzir bizarrias na cidade. Reitera a necessidade de uma segunda sessão no divã. A última foi o manifesto-censura ao Reitor da UEPG, publicado em jornais no dia 20 de novembro. O Reitor é censurado por enaltecer a cultura no momento em que, segundo suas palavras, tenta-se amordaçar a arte, o pensamento, a liberdade de cátedra. Ainda segundo ele, o tradicional Festival Nacional de Teatro promovido pela Universidade continua a ser uma bandeira democrática hasteada em céu turvo.
Surpreendente como estas palavras puderam alvoroçar essa parcela da população da cidade. No meu entender, deve ser aquela parcela que ainda não atinou que já não estamos mais no tempo das sesmarias nem da monarquia. E que, sem conseguir identificar-se com o espírito republicano, almeja que se instale um mando militarista, que sempre traz consigo o autoritarismo, a truculência, a iniquidade.
A Universidade não se destina somente ao ensino e à pesquisa. Nem a formar técnicos e professores sem discernimento. A Universidade destina-se a formar antes de tudo cidadãos responsáveis, com qualificação técnico-científica, para assumir posições profissionais na vida respeitando princípios civilizatórios. Se não formamos cidadãos, arriscamos formar um especialista em práticas nefastas, sejam elas os golpes financeiros, a propagação de mentiras, a manipulação das massas, as máquinas de matar e destruir. O cidadão é formado com valores éticos, reflexão e discussão do diferente, exercício no contato com a sociedade através dos projetos de extensão, dos projetos culturais como o Fenata e tantos outros.
A Universidade deve ser capaz de inspirar a sociedade a progredir. Não deve ser uma reprodutora das limitações da sociedade. Por isso a sociedade investe nela. Na esperança de que ela seja o farol a mostrar caminhos para o progresso social. E por isso há tantos protocolos regulando o ingresso e a permanência nos quadros da Universidade.
E o Reitor, mais que ninguém na Universidade, deve sim defender a liberdade de expressão, inclusive a sua própria. É o saudável embate de opiniões que conduz às alternativas mais adequadas para cada situação. Do contrário estaríamos ignorando a ideia de “banalidade do mal” de Hannah Arendt, que esclarece que dirigentes sem a coragem de contrapor-se a barbáries institucionalizadas são os responsáveis pela ascensão de regimes de terror, como o foi o nazismo na Alemanha.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

A vida e as armas

Publicado no Jornal da Manhã em 08/11/18 e no Diário dos Campos em 10/11/2018.

Assustei-me de perceber uma possível conexão entre temas que podem parecer tão desconexos: o livro/filme “Contato”, de Carl Sagan, a série “Cosmos” do mesmo astrofísico, o documentário “Vida Extraterrestre” da série “Explicando” da Netflix, o filme “Vida” de Daniel Espinosa (2017) e, por fim, o fenômeno de ascensão da extrema direita no mundo, incluindo Bolsonaro no Brasil.
Em “Contato”, “Cosmos” e “Vida Extraterrestre” aparecem questões cruciais: por que não temos notícias de outras civilizações, visto que, dada a vastidão e idade do universo conhecido, é de se supor que não tenhamos sido a única espécie inteligente a surgir no mundo? Se existem outras civilizações, como elas teriam ultrapassado sua adolescência tecnológica? Se não existem, teriam elas todas se extinguido durante essa tal adolescência tecnológica?
Em “Vida”, uma ficção científica quase terror, os humanos, supostamente seguros na estação orbital internacional, cultivam um organismo unicelular dormente, encontrado a baixíssimas temperaturas no solo de Marte. Para deslumbre dos pesquisadores, assim que estimulado o organismo desperta e desenvolve-se. Mas o que no início parecia um ser gracioso e amistoso, ao desenvolver-se foge do controle, passa a ser uma ameaça, os cientistas tentam exterminá-lo. Então o organismo alienígena revela uma qualidade implacável: a luta pela sobrevivência. Surpreende a todos, quebra todos os protocolos de isolamento e segurança vigentes na estação orbital laboratório.
Se pensarmos um pouco, o mesmo instinto implacável pela sobrevivência é o que tem guiado a evolução das espécies no planeta Terra. O nosso desígnio primordial é sobreviver, nossos instintos básicos são de competição para superação dos competidores, reais ou imaginários. No passado do planeta, fenômenos naturais tais como mudanças na composição da atmosfera, congelamentos planetários, queda de meteoritos, promoveram extinções em massa que propiciaram o desenvolvimento de novas espécies melhor adaptadas. Foi assim que os mamíferos prosperaram após o declínio dos répteis decretado pela queda do grande meteorito há sessenta e cinco milhões de anos.
Agora talvez estejamos vivendo a adolescência tecnológica da humanidade. Nossa engenhosidade já nos permite construir artefatos para destruir o planeta, já somos capazes de desencadear o aquecimento global ou de degradar a atmosfera a ponto dela não mais nos proteger da radiação solar, somos capazes de poluir os mares, as águas doces, os solos, o ar, somos capazes de ameaçar a biodiversidade e o equilíbrio ecológico, somos capazes de manipular a informação divulgada globalmente e induzir populações inteiras ao consumo, ao desentendimento, à intolerância, à guerra... Não são mais os fenômenos naturais que estão no limiar de promover mudanças globais.
A engenhosidade humana desenvolveu-se aparentemente sem que tenha sido acompanhada pela evolução ética e espiritual. Somos capazes de comprometer todos os sistemas naturais que são os responsáveis pela manutenção da vida na Terra, inclusive a nossa vida. Passamos a ser a espécie dominante no planeta, superpovoando-o, mas não logramos aprender regras básicas de convivência de modo a preservar direitos equitativos, a garantir o respeito à diversidade e a coexistência pacífica.
A ascensão da extrema direita no mundo, marcada pela intolerância e violência, parece resultar destes dois fatores: primeiro, nossos implacáveis instintos de sobrevivência, que nos fazem competitivos e agressivos; segundo, a nossa adolescência tecnológica, já somos capazes de destruir o planeta e a humanidade, mas ainda não somos capazes de controlar nossos atos e avaliar suas consequências.
Será a humanidade capaz de guiar-se não só pelos instintos básicos de sobrevivência? Será capaz de ultrapassar o crítico momento da adolescência tecnológica para alcançar um estágio de temperança, tolerância e paz?