sábado, 23 de junho de 2018

Veneno remédio: o futebol e o Brasil


 Publicado no Diário dos Campos em 23/06/2018 e no Jornal da Manhã em 25/06/18.

A suada vitória nos acréscimos do Brasil sobre a Costa Rica nesta copa nos faz lembrar o excelente livro “Veneno remédio: o futebol e o Brasil” do interdisciplinar José Miguel Wisnik (professor de literatura, músico, ensaísta). No livro, o autor discute a importância do futebol para a construção da identidade e da autoestima do brasileiro, ajudando-nos a superar o complexo de vira-lata aprofundado com o “maracanazo” de 1950, quando o time do Uruguai calou um Maracanã lotado com perplexos cento e setenta mil torcedores, vencendo com uma heróica virada sobre a seleção canarinha.
O que pouco se sabe no Brasil, o que é explicado pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano em seu livro “Espelhos: uma história quase universal”, é que o time do Uruguai tinha motivos de sobra para superar-se e vencer o favorito Brasil. Antes da copa os jogadores uruguaios tinham travado uma batalha moral e judicial em seu país, em favor da profissionalização e de contratos mais justos para os atletas. Tiveram de fazer greve e enfrentar a ganância de dirigentes e empresários, e nessa luta urdiram a têmpera e a solidariedade para vencer o Brasil naquela memorável final.
Contra a Costa Rica reapareceram alguns ecos daquela final, ainda que bastante mudados. Enquanto o time do Brasil procurou, principalmente com sua estrela maior, levar vantagem com simulações de faltas, o resultado não apareceu. Quando, muito em função da pressão da proximidade do fim da partida, as simulações deram lugar à garra e à objetividade, os redentores gols enfim aconteceram. Simulações buscando vantagens ilegítimas tornam o conjunto frouxo e ineficaz. A garra e a entrega trazem resultados.
Podemos fazer um paralelo entre essa angustiante partida de futebol e a situação do país. Assim como o time brasileiro, cheio de craques e com domínio do jogo mas com muitas oportunidades perdidas, o Brasil também tem muito potencial, mas tem perdido as oportunidades para consolidar-se como uma grande nação. Nossos potenciais são a nossa dimensão continental, as imensas riquezas naturais, a mestiçagem de povos e culturas com relativamente discretos conflitos, um único idioma, uma religião predominante, uma índole inegavelmente pacífica e amistosa.
Nossos erros, que acabam por aniquilar os muitos potenciais que temos, são também numerosos. O maior talvez seja a cegueira de não saber jogar como equipe. O exagerado individualismo de muitos, que na busca de satisfazer um egoísmo insaciável comprometem o desempenho do todo. Ao invés de levarem adiante uma jogada de equipe que beneficiaria o coletivo, procuram a glória e o proveito pessoal, e para isso não hesitam em simulações, fraudes, farsas, e o pior, perdem a cabeça e começam a cometer violências e falcatruas escandalosas.
Pena que, no nosso caso, os juízes pareçam ser irremediavelmente parciais e coniventes, e não contem com o auxílio de um arbítrio supostamente menos tendencioso e suspeito, como o vídeo assistente dos juízes desta copa.

domingo, 3 de junho de 2018

Lições da crise

Publicado no Diário dos Campos em 09/06/2018 e no Jornal da Manhã em 14/06/2018.
Quais aprendizados devemos colher da crise de caminhoneiros que parou o Brasil e transtornou a vida de todos?
É bom que tiremos lições dessa crise, sob pena de que ela não seja só uma crise, mas signifique um colapso. Lembrando, crise é quando o velho já está morto, e o novo ainda não nasceu. Colapso é quando o velho já está morto, e o novo já não tem como nascer. Que saibamos reconhecer os erros e dar vida ao novo, antes que seja tarde.
Quais erros temos cometido? São vários. Primeiro o erro de depender exclusivamente do transporte rodoviário, uma escolha de meados do século passado, que visou implantar a indústria automotiva neste nosso país continente. Escolha que priorizou o interesse das multinacionais automotivas, ignorando as peculiaridades do Brasil.
Depois o erro de depender de um sistema de produção de alimentos e produtos básicos que demanda transporte por longas distâncias. A produção e comercialização locais, diretas entre produtor e consumidor, praticamente inexistem. Se o transporte rodoviário para, o país para. Que tremenda vulnerabilidade logística!
Depois o erro de submeter o preço e a comercialização de bens estratégicos, como o petróleo e seus derivados, ao interesse de corporações transnacionais e seus acionistas, e não ao interesse da população e da soberania do país. É o grosseiro erro de acreditar que o mercado é melhor do que o Estado na gestão dos recursos estratégicos do país. Quem defende este erro ou é um ambicioso beneficiário direto de seus equívocos, ou alguém que ainda não refletiu sobre o conceito de “espírito animal” de John Maynard Keynes, um consagrado economista do século XX respeitado nos meios acadêmicos mas propositalmente esquecido pelos atuais adoradores do deus mercado. O “espírito animal” de Keynes manifesta-se sobretudo nos empresários, que encontram no adágio da livre concorrência o subterfúgio para a prática do salve-se quem puder, onde o mais velhaco é o mais favorecido. Um Estado verdadeiramente democrático forte é essencial para balancear o espírito animal e evitar as enormes desigualdades sociais que temos visto.
Há ainda o erro de acreditar em políticas de coalizão, em que interesses e princípios muito díspares conluiam-se oportunisticamente para exercer o poder, afastando-se do interesse da população e da ideia de construção de uma nação republicana e soberana. Mais hora menos hora as deserções e traições acontecem, as crises políticas sobrevêm.
E há ainda erros crônicos, decorrentes dos erros anteriores. Um sistema educacional fracassado, que não consegue formar cidadãos críticos e lúcidos, capazes de refletir e de intervir construtivamente nos destinos do país. Uma mídia viciada, que atende aos interesses de quem visa perpetuar privilégios de uma classe dominante atrasada. Um povo ignaro e manipulável, que facilmente é condicionado a abraçar causas retrógradas, como apoiar candidatos autoritários e pedir pela intervenção militar. Quem clama pela intervenção militar hoje ou é alguém mal intencionado, que enxerga nesse retrocesso a oportunidade para benefícios próprios, ou é alguém que desconhece o significado de uma intervenção militar, não viveu a ditadura nem conhece história.
A crise deflagrada pela paralisação dos caminhoneiros deveria fazer-nos refletir, e agir, sobre estes tantos erros que temos cometido, e com certeza muitos outros a eles associados. Se soubermos deixar de lado o nosso “espírito animal”, nossas ambições e paixões pessoais, e colocarmos o bem comum acima de nossas inseguranças e ganâncias, poderemos aproveitar a crise para corrigir os erros.
Que saibamos aproveitar a crise, antes que ela se torne um colapso de consequências imprevisíveis. Que esta crise marque o crepúsculo de uma época de sucessivos equívocos. Que o Brasil acorde de seu longo sono.