quinta-feira, 26 de maio de 2022

Eros e Tânatos

Nós, humanos, somos movidos por duas forças opostas e complementares: amor (Eros) e ódio (Tânatos). Eros consubstancia-se em tudo aquilo que edifica, acrescenta, cria, faz evoluir. É a celebração da vida, da alegria de viver e de compartilhar, da esperança, da renovação. Tânatos é tudo que destrói. É a morte, o fim, a perda, o vazio, a descrença. Não quer dizer que Tânatos não tenha seu papel na evolução. O novo demanda a superação, o fim do velho. Mas Tânatos descontrolado pode levar à morte do velho antes do vislumbre do novo. Não seria, então, evolução; seria extinção.

Tânatos é herança dos antigos répteis. Ele tem guarida no chamado cérebro reptiliano, que ainda conservamos. Esse cérebro primitivo, agressivo, foi muito importante entre os répteis, que evoluíram dando origem aos mamíferos. A agressividade, a violência, era então questão de sobrevivência e evolução da espécie. Os répteis não tinham nem mesmo empatia para cuidar de suas crias. Era o sol que chocava os ovos. As ninhadas sobreviviam ao acaso, se escapassem de ser devoradas pelos próprios familiares, no caso dos predadores.

Os nossos ancestrais mamíferos já desenvolveram o cérebro límbico. Começava o cuidado com a prole e o bando, já não eram animais completamente egoístas. Embora o cérebro reptiliano continuasse com funções fundamentais, pois a luta pela sobrevivência ainda era feroz.

Depois, já mais humanizados, desenvolvemos o neocórtex, que nos faculta analisar, prever, inventar, refletir; enfim, pensar. O neocórtex é o responsável por conseguirmos balancear a ação dos cérebros reptiliano e límbico, diante das diversas situações da vida, em que ora precisamos ser combativos, ora carece sermos amorosos.

Há ainda quem diga que já estamos desenvolvendo um novo cérebro. Seu gérmen seria a pequena glândula hipófise, situada na base do crânio. Ali se realizaria a atividade cerebral que já nos afasta dos contraditórios seres humanos atuais, aproximando-nos dos seres celestiais evoluídos. Os quais, se ainda não os somos, já fazemos concebê-los e até cultuá-los. São os nossos iluminados mestres e profetas.

A História nos revela: a humanidade, e os indivíduos humanos que a constituem, ora vive momentos de extravasamento do cérebro reptiliano, ora o refreia, dando expressão àquela mescla entre reptiliano, límbico e neocórtex. Às vezes até com vislumbres da amorosidade irrestrita, concedida pelo cérebro mais evoluído, o cérebro materializado na hipófise. Os momentos do cérebro reptiliano são os momentos de ganância, desavença, totalitarismo, guerras de dominação e destruições. Os momentos em que o límbico, o neocórtex e o hipofisário conseguem expressão são épocas de paz, prosperidade, criatividade e evolução da espécie.

Todavia, parece mesmo que o cérebro reptiliano e a capacidade de luta pela sobrevivência que ele exerce são indispensáveis, num mundo em que há ainda muitos seres humanos que parecem só dar vazão ao seu cérebro primitivo. São seres que, ao longo de uma existência de conflitos, só souberam reprimir a manifestação dos outros cérebros. E nem sempre isto foi uma escolha, mas sim foi uma imposição de circunstâncias, de um ambiente adverso, onde a sobrevivência dependia da fria sagacidade do réptil.

Dizem também que, respeitando a cronologia evolutiva, diante de súbitas situações críticas, todos nós reagimos primeiro com nosso cérebro reptiliano. Se somos agredidos, de imediato tendemos a reagir com ainda mais agressividade; nos noticiários, as notícias de violências e tragédias atraem muito mais que aquelas que dão conta de pacíficos entendimentos; as mentiras conspiratórias têm muito mais repercussão que verdades edificantes. Por esse motivo recomenda-se que, antes de uma reação precipitada diante de uma situação extrema, contemos até dez: é o tempo para acionar o cérebro límbico, o neocórtex e a hipófise, antes que façamos uma reptiliana besteira.

Vivemos um momento histórico em que, em todo o mundo, o cérebro reptiliano está sendo exaltado, por indivíduos, nações, agremiações religiosas, políticas, econômicas, ideológicas. Isso parece resultar de uma intrincada e inusitada conjunção de fatores, que inclui desde a enormidade da população da Terra até o voraz sistema econômico vigente e as sofisticadíssimas tecnologias de informação e desinformação. Premidos por estas forçantes, os seres humanos são seduzidos por crenças e comportamentos que caberiam bem para bandos de predadores, sejam extintos velociraptors ou atualíssimos lobos-cinzentos.

A capacidade de destruir que a engenhosidade humana alcançou não nos permite mais negligenciar a manifestação do cérebro reptiliano. Ele precisa ser humanizado. É isso que a educação, a cultura, as leis, os órgãos de segurança e o sistema penal tentam fazer: conter, civilizar ou penalizar aqueles que ainda não conseguem controlar a fera introjetada. Na atualidade, agir sob o comando do cérebro reptiliano não é mais lutar pela sobrevivência; é arriscar a extinção da espécie humana e da vida no planeta.

O apoio explícito à tortura e a exaltação de torturadores, o confesso totalitarismo, a sistemática agressão àqueles que têm opinião diversa, o descaso com pandemias mortais, suas vítimas e familiares, a apologia do armamentismo, da violência, da mentira e da intolerância, o linguajar escatológico, chulo e colérico, a completa incapacidade de empatia com outros seres humanos, o negacionismo e a ignorância, são todos sinais da desvairada manifestação do cérebro reptiliano. Uma insanidade, que precisa ser contida. Principalmente se acometer pessoas que ocupam cargo de mando, e assim são capazes de incitar o réptil que ainda espreita dentro de todos nós.

Há quem defenda que seu antídoto, mais eficaz que o embate, é o amor de Eros. Sóbrio, sereno, doce, sapiente, firme. Por certo é o desamor que engendrou, talvez inadvertidamente, os infelizes seres humanos que não conseguem escapar do comando do cérebro reptiliano. Neles dormem o cérebro límbico, o neocórtex e a hipófise. É preciso encontrar o caminho para despertá-los.

 

quinta-feira, 19 de maio de 2022

O golpe da bênção

 Publicado no Jornal da Manhã em 25/05/2022.

O jornal da cidade média interiorana onde vivo traz uma notícia de fato acontecido numa estrada rural de uma pequena cidade vizinha, ainda mais interiorana. O carro de um casal de gente simples da roça teve uma pane, e logo apareceu um outro casal, disposto a ajudá-los. Não consertaram o carro, mas fizeram orações e bênçãos para afastar o azar do veículo, dos bens e do devir do ingênuo e desafortunado casal de lavradores. Abençoaram inclusive a bolsa da mulher, onde estavam bens pessoais, incluindo a carteira com o cartão de banco e a senha anotada num papel. Sim, porque a memória de uma trabalhadora da roça não é feita para lembrar números que são usados uma vez por mês na cidade.

A notícia não diz como foi, o desaventurado casal conseguiu chegar à cidade, e logo constatou que a bolsa da esposa fora aliviada de tudo que tinha valor. Depois, descobriram que a conta bancária também fora aliviada, de tudo o que tinham, e mais o que não tinham. O dadivoso casal distribuidor de bênçãos fora rápido e minucioso, depenou o crédulo par de vítimas até o último centavo. Talvez até estivessem confiantes ser um preço justo a ser pago para aprender uma lição capital: a fé cega é desastrosa.

Essa notícia de jornal de interior é uma metáfora de sentido generalizado para toda a sociedade: o golpe da bênção é uma atualização do antigo golpe do pagamento de indulgências, que existiu desde sempre, e que teve seu apogeu durante a Santa Inquisição, quando a Igreja Católica aterrorizou e perseguiu alegados hereges pecaminosos, amiúde condenando-os à fogueira e outras penas bárbaras. Para escapar dos pecados e da condenação, os fiéis pagavam pesados tributos, compravam o perdão.

Hoje, além do perdão compram-se outras bênçãos. O casal da estrada rural foi induzido a aceitar as bênçãos para afastar o azar e alcançar a ventura. Distraído, o preço pago foram suas economias, acrescidas de dívidas. Os muitos fiéis incautos das igrejas adeptas da nova teologia da prosperidade, fragilizados e ludibriados pelo momento de incertezas que vive a humanidade, compram a salvação, a paz de espírito e a promessa de abastança, pagando tributos que muitas vezes significam, na verdade, a redução do alimento na mesa de famílias penalizadas pela injustiça social e a pobreza.

Os pastores da teologia da prosperidade não surrupiam às escondidas a bolsa e o cartão bancário de seus fiéis. A fé cega faz com que os crentes entreguem confiantes e de bom grado suas economias, tal como faziam os pecadores da época da inquisição para redimir seus pecados. Agora com a diferença que os tributos não só livram das culpas, mas são a promessa da conquista da prosperidade e da riqueza.

A fé na prosperidade é reforçada pelos suntuosos templos edificados para acolher os aflitos fiéis, e pelos convincentes discursos de missionários que ostentam inquestionável riqueza. Diante de tanto fausto, não parece possível que tal fé não traga, de fato, fortuna e felicidade.

Na verdade, a astúcia do casal abençoador na estrada rural da pequena cidade do interior não é diferente da lábia dos pastores que convencem o desesperado fiel a entregar para a igreja o dinheiro que seria para pagar o aluguel. Ambos abusam da fé e da ingenuidade do povo simples, para espoliá-lo.

 

quinta-feira, 12 de maio de 2022

QUE BRASIL VOCÊ QUER?

A - um país com o preço dos alimentos e produtos básicos aumentando descontrolado, com base no aumento do preço internacional influenciado por crises e guerras, ou

B - um país com os preços controlados e apoio do governo à produção para alimentar a população, e não só para a exportação?

A - um país com a saúde feita pelos planos privados, caríssimos, e que mesmo assim vivem alegando dificuldades e falência, e deixando os pacientes na mão, ou

B - um país com sistema público de saúde funcionando bem, gratuito, atendendo toda a população?

A - um país com ensino básico e superior de qualidade pago, caro e para poucos, e as escolas públicas sem recursos, priorizando a formação de mão de obra e não de profissionais qualificados, ou

B - um país com ensino básico e superior gratuito e de qualidade, com estímulo aos mais pobres para estudar e tornarem-se profissionais qualificados e cidadãos participativos?

A - um país que faz leis que favorecem o patrão enquanto enfraquecem o trabalhador, o emprego, a carteira assinada, a aposentadoria e as organizações de trabalhadores, ou

B - um país que faz leis em favor do trabalhador, cria frentes de trabalho, gera o pleno emprego e dá segurança ao trabalhador empregado e com carteira assinada?

A - um país com salário mínimo com correção miserável que não repõe a inflação descontrolada, ou

B - um país com a correção do salário mínimo sempre acima da inflação, procurando aproximá-lo do que seria justo para viver com dignidade?

A - um país que, apesar da descoberta de imensos campos petrolíferos, paga pelos combustíveis preços escorchantes impostos por cartéis internacionais que só visam aumentar lucros, ou

B - um país que controla a produção e refino de petróleo, com preços justos e acessíveis?

A - um país que estimula a devastação de matas, a alteração do clima, o empobrecimento dos solos e o consequente prejuízo aos plantios e ao abastecimento, ou

B - um país que cuida do meio ambiente pois sabe que dele depende a água, a agricultura, a energia, a vida?

A - um país capacho dos países poderosos, que só são ricos graças à exploração imposta aos países mais pobres, ou

B - um país que respeita, zela e valoriza suas riquezas naturais, e que as aproveita em benefício de seu povo?

A – um país sem diálogo, violento e armado, dividido por ideias segregacionistas e preconceitos, ou

B – um país com povo alegre, tolerante, solidário, esperançoso de poder construir uma nação livre e próspera?

A – um país que entrega suas empresas estatais estratégicas – energia, petróleo, comunicações, bancos, saneamento – ao insaciável apetite de transnacionais que só visam o lucro de seus acionistas, ou

B – um país que protege suas empresas estatais, pratica preços justos e direciona eventuais lucros para o benefício de toda a população?

A – um país que exerce uma diplomacia vazia e contraditória, de inação, subserviência e ao mesmo tempo truculência, e que é motivo de piada no mundo, ou

B – um país engajado no estabelecimento de relações internacionais responsáveis e equitativas, respeitando a soberania, a liberdade e a paz dos povos, sendo por isso respeitado?

A – um país dirigido por governantes totalitários, oportunistas e clientelistas, cúmplices de arranjos que beneficiam uns poucos privilegiados e prejudicam toda a nação, ou

B – um país com governantes democráticos, verdadeiros estadistas, com espírito público mais forte que suas ambições pessoais, empenhados no fortalecimento da nação e seu povo?

 

Se você respondeu B de BRASIL às perguntas acima, então você é um verdadeiro nacionalista, quer um país que zela por seu povo e sonha ser soberano, livre e próspero.

Então, nas eleições deste ano, você deve votar naqueles que são comprometidos com este novo BRASIL.

E deve apoiar as iniciativas para neutralizar o massacre midiático que demoniza as instituições democráticas e os verdadeiros estadistas.

Porque a grande mídia está a serviço do desmanche do BRASIL e da entrega de suas riquezas para interesses transnacionais e seus conluiados nacionais.

 

domingo, 8 de maio de 2022

A traição de Judas e a mensagem de paz

 

Há interpretações dos textos sagrados que afirmam que Judas não traiu Cristo por trinta dinheiros. A “traição” teria sido uma tentativa do inconformado apóstolo de obrigar Cristo a confrontar pela força a dominação do Império Romano. Pela força! E não com a mensagem de paz e compreensão que o Messias trazia à humanidade.

Judas não teria compreendido, pelo menos naquele momento, que a mensagem de Cristo destinava-se a toda a humanidade, não somente aos povos subjugados por Roma. Há quem diga que Cristo foi um enviado de mundos muito mais evoluídos que a Terra, com a missão de plantar entre nós a semente da paz e do amor. E que ele já sabia os suplícios a que seria submetido, assim como sabia que a semente que vinha plantar demoraria milênios para vicejar.

Que sacrifício o de Cristo! Ser preterido em favor de um assaltante, Barrabás, pela população açulada. Ser martirizado, crucificado e negado até pelos ameaçados e assustados seguidores mais próximos. Após milênios continuar incompreendido, ou mesmo deturpado por supostos seguidores, cobiçosos de poder e riquezas. Que usam seu nome para manipular fiéis cegos, transformados num rebanho submisso e explorado. A mensagem de paz e compreensão amiúde tornou-se um logro para ludibriar pessoas carentes de amparo, a fim de explorá-las, de conduzi-las à segregação e à intolerância, muitas vezes com armas nas mãos para enfrentar os verdadeiros cristãos.

Talvez o tempo da inquisição, quando a igreja confundiu-se com o poder tirânico, guerreiro e assassino, e atualmente, quando a teologia da prosperidade vem substituir o Deus celestial pelo deus dinheiro, sejam os dois momentos da história da humanidade em que o cristianismo foi e esteja sendo mais corrompido. O nome de Cristo vem dissimulando o apelo à violência pelas armas e o cultivo à cupidez. A verdadeira mensagem de paz, compreensão e amor parece ter sido esquecida pela maioria dos que se dizem cristãos. Os seguidores dos legítimos ideais cristãos são uma ameaça à consciência destes atrofiados novos “cristãos”. São caluniados, acusados de serem adeptos de doutrinas demoníacas, ou de serem obstáculos à liberdade e à prosperidade.

Ainda assim, há os resistentes. No Brasil, Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo) ousou cunhar a frase “... todo verdadeiro comunista é um cristão, embora não o saiba, e todo verdadeiro cristão é um comunista, embora não o queira.” Com tais pensamentos, o frei dominicano foi encarcerado e viu seus confrades torturados nas prisões da ditadura militar. A frase, no entanto, é reveladora: o ideal de justiça e igualdade não é uma doutrina demoníaca; pelo contrário, é uma doutrina libertadora. Almeja a justiça social, a distribuição das riquezas, a valorização do trabalho. Tais anelos, que representam um desdobramento da mensagem de compreensão e solidariedade do Cristo, são distorcidos até serem travestidos de subversivos, ameaçadores da ordem e do progresso.

A incompreensão de Judas, ao trair seu Mestre com a intenção de conduzi-lo à guerra, foi substituída pela insanidade dos que transformam a mensagem de paz e compreensão em beligerante segregação. Com armas nas mãos.