sábado, 2 de julho de 2016

Táticas de manipulação para o consumo e a intolerância

Publicado no Diário dos Campos em 7 de julho de 2016.

          Vimos neste blog (ver texto "O novo surto de intolerância" postado em 30 de junho) que o planeta dá mostras de que nos encontramos num momento de crescente intolerância. Haveria alguma motivação para isso, visto que, em tese, deveríamos estar evoluindo para uma civilização mais solidária na alteridade?

No início do Século XX o cientista russo Ivan Pavlov realizou um experimento simples, mas de incomensurável importância: ao longo de vários dias, tocava-se repetidamente uma sineta ao mesmo tempo em que se alimentava um cão; passado um tempo, a sineta passou a ser tocada mas agora sem o alimento, e então o cão, já condicionado, apresentava todas as evidências de que estava pronto para receber o alimento, como ensalivar e outras reações orgânicas e comportamentais. O cão sujeito da experiência passa a considerar que a sineta quer dizer alimento, embora tal associação já tenha passado a ser falsa.

A isto denominou-se “reflexo condicionado”, isto é, a repetição de uma associação (alimento+sineta) induz uma resposta comportamental aprendida (salivação), que passa a ocorrer mesmo na ausência do fator real desencadeador da reação (sineta sem o alimento). Logo atinou-se com as enormes possibilidades de aplicação da descoberta, não só em tratamentos psicológicos, mas também na propaganda, de produtos, ideologias e comportamentos.

Examinemos algumas aplicações da experiência de Pavlov. Até há pouco tempo éramos bombardeados com mensagens cigarro=aventura, cigarro=masculinidade, cigarro=força, cigarro=glamour, cigarro=prazer... E a verdade é que o cigarro é um veneno que mata aos poucos. Todos os dias, por todos os meios, chega-nos insinuantemente que carro novo=sucesso, carro novo=conforto, carro novo=beleza, carro novo=desempenho, carro novo=status, carro novo=segurança, carro novo=conquistas, carro novo=felicidade... E mesmo que não precisemos e nem tenhamos condições de comprar o carro novo, ele passa a nos parecer imprescindível, irresistível.

Talvez o consumo de produtos e bens seja um imenso campo de aplicação do reflexo condicionado de Pavlov, pois nós, seres humanos, costumamos ter o mesmo nível de reação inconsciente dos cães utilizados na experiência. Mas certamente existem os outros campos de aplicação do reflexo, muito mais vastos e nefastos. O que impediria que o condicionamento fosse utilizado para estigmatizar pessoas, raças, credos, instituições, ideologias e até nações? Não tem sido assim ao longo do tempo?

O reflexo condicionado tem sido empregado para cristalizar associações como latino=indolente, muçulmano=terrorista, MST=baderneiros, comunista=comedor de crianças, Irã=mal, etc. Tomemos como exemplo um sujeito hipotético denominado Darci. O que aconteceria conosco se fôssemos bombardeados incessantemente com estímulos do tipo Darci=corrupção, Darci=recessão, Darci=ingovernabilidade, Darci=crise, Darci=antipatia, Darci=erros, Darci=mentira...? Supondo que estas associações pudessem não ser verdadeiras, mas fruto da intenção dos inimigos de Darci, depois do bombardeio, o que pensaríamos de Darci?

Seria muito desejável que, ao invés da reação irracional do cão que associa, mesmo que falsamente, sineta=alimento, utilizássemos a razão e o discernimento que nos diferencia do cão para refletir se estas associações são verdadeiras, ou se são falsas e visam condicionar nosso julgamento. E se assim for, quem está nos manipulando? Com qual propósito? Trata-se de uma experiência como a de Pavlov ou os interesses são outros? Quais?

No mundo atual, em nossas vidas, além do consumo de produtos, muitas vezes supérfluos, quais outros tipos de condicionamentos temos sofrido? Quem sabe até para manipular nosso julgamento sobre quem é corrupto e ladrão, e quem é honesto? Ou sobre quem fala a verdade, quem fala mentira? Ou quem é nacionalista, quem é entreguista? Ou quem é estadista, quem é oportunista?

Pavlov nos demonstrou que somos manipuláveis, como os cães. Mas não somos cães, somos seres humanos, a quem foi dada a capacidade de refletir, de discernir, e também os sentidos de justiça e solidariedade, que nos fazem assumir compromissos com o respeito aos direitos e deveres não só de nós mesmos, mas também de nossos semelhantes, e de toda a vida no planeta. Mas parece que temos tendência de abrir mão destas nossas capacidades. Comportamo-nos condicionada e irrefletidamente, como os cães. A força, a astúcia e a mesquinhez dos interesses que controlam a manipulação são muito grandes. Se vacilarmos, sucumbimos a seu poder.

É urgente que deixemos de reagir como condicionados cães, e passemos a agir como seres humanos, com discernimento, autonomia e sensibilidade. Disto depende nosso futuro, o futuro do país, do planeta.