quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Nós, os répteis

 

Em 2015, um texto com o título “Nós, os répteis...” já foi publicado em jornal, livro e neste blog. Ele ironizava frase real, ato falho pronunciado por um professor de Paleontologia durante aula no curso de Geologia da USP, nos idos de 1980. O professor teria pretendido dizer “Nós, os mamíferos...”, e se equivocara. Mas sua desastrada frase, pela sua picardia, tornou-se mote do curso de Geologia à época: apareceu estampada em camisetas, foi pichada nos muros da universidade, foi impressa no jornal do centro acadêmico, era pronunciada amiúde e pintada em cartazes de manifestações.

Agora, outros motivos resgatam a agudeza do escárnio contido naquela frase. Acabo de ler o surpreendente livro “O mal-estar na civilização!”, de Sigmund Freud (Companhia das Letras, 2011), que me foi indicado por querida amiga psicanalista. O livro, na verdade um ensaio do renomado psiquiatra austríaco escrito em 1930, é uma reflexão sobre a infelicidade humana, diante da impossibilidade de dar plena vazão a dois impulsos básicos: a sexualidade e a agressividade. É impressionante constatar como, há quase cem anos, o sagaz Freud já foi capaz de encarar com tamanha sinceridade e maestria estes que são dois instintos onipresentes, até hoje insuperáveis tabus.

Os pensamentos de Freud sobre sexualidade e agressividade parecem remeter aos répteis: para aqueles nossos longínquos escamosos ancestrais, estes dois impulsos eram essenciais para a sobrevivência. Há centenas de milhões de anos, a prioridade da irrefreável evolução das espécies era sobreviver. Os répteis, então a forma de vida mais evoluída no planeta, puderam dar origem a outras espécies graças à sua capacidade de sobrevivência, frente aos competidores e às vicissitudes da natureza.

Depois de Freud, neurocientistas e antropólogos têm afirmado que o Homo sapiens ainda conserva o primitivo cérebro reptiliano, acrescido do emocional cérebro límbico dos mamíferos e do racional neocórtex, que caracteriza nossa espécie. Tornamo-nos assim, para além da aptidão de sobreviver dos répteis, zelosos cuidadores das crias e dos grupos familiares, e capazes de observar, aprender, discernir, planejar, criar...

Há quem diga que já começamos a desenvolver um outro cérebro, representado pela hipófise, discreta glândula na base da caixa craniana. Este cérebro hipofisário seria identificado com a compaixão, solidariedade, fraternidade, empatia, ética, comunhão com o outro e com o planeta... enfim, seria o cérebro da espiritualidade.

Ufa! Que alívio! Estamos a compreender que somos mais que os répteis e os impulsos básicos que os comandaram ─ a sexualidade e a agressividade ─, tão honestamente dissecados por Freud. Mas afirma-se também que o cérebro reptiliano não só ainda está vivo em nós, como é o primeiro a se manifestar nas situações mais críticas. Por isso é tão importante não reagirmos intempestivamente, sem refletir. Seria nosso réptil ancestral que estaria a nos comandar, e não o Homo sapiens que o sucedeu.

Entretanto, atualmente parece que é o cérebro reptiliano que tem guiado a civilização. O zelo do límbico, o racional do neocórtex e o fraternal do hipofisário parecem estar sendo suplantados por dominantes impulsos sexuais e agressivos, que não logramos mais reprimir. E, nas palavras de Freud, daí nosso mal-estar, nossa infelicidade.

Estaremos regredindo ao ancestral cérebro reptiliano? O professor de Paleontologia da USP dos anos 1980 teria dito uma profecia? Ou estamos vivendo um lapso em que nosso cérebro reptiliano está sendo vilmente estimulado, a ponto de superar, nas reações que produz, os outros mais evoluídos?

O surto de hiperconsumismo, depredação ambiental, guerras, intolerâncias, segregacionismos, egoísmo, desigualdades, negacionismo, irracionalidade, cegueira ética e religiosa, incapacidade de discernir entre verdades e mentiras, nos faz supor que a frase possa estar acertada: sim, “Nós, os répteis...”.