Em 2015, um texto com o título “Nós, os
répteis...” já foi publicado em jornal, livro e neste blog. Ele ironizava frase real, ato
falho pronunciado por um professor de Paleontologia durante aula no curso de
Geologia da USP, nos idos de 1980. O professor teria pretendido dizer “Nós, os
mamíferos...”, e se equivocara. Mas sua desastrada frase, pela sua picardia,
tornou-se mote do curso de Geologia à época: apareceu estampada em camisetas,
foi pichada nos muros da universidade, foi impressa no jornal do centro
acadêmico, era pronunciada amiúde e pintada em cartazes de manifestações.
Agora, outros motivos resgatam a agudeza do
escárnio contido naquela frase. Acabo de ler o surpreendente livro “O mal-estar na civilização!”, de Sigmund
Freud (Companhia das Letras, 2011), que me foi indicado por querida amiga
psicanalista. O livro, na verdade um ensaio do renomado psiquiatra austríaco
escrito em 1930, é uma reflexão sobre a infelicidade humana, diante da
impossibilidade de dar plena vazão a dois impulsos básicos: a sexualidade e a
agressividade. É impressionante constatar como, há quase cem anos, o sagaz
Freud já foi capaz de encarar com tamanha sinceridade e maestria estes que são
dois instintos onipresentes, até hoje insuperáveis tabus.
Os pensamentos de Freud sobre sexualidade
e agressividade parecem remeter aos répteis: para aqueles nossos longínquos
escamosos ancestrais, estes dois impulsos eram essenciais para a sobrevivência.
Há centenas de milhões de anos, a prioridade da irrefreável evolução das
espécies era sobreviver. Os répteis, então a forma de vida mais evoluída no
planeta, puderam dar origem a outras espécies graças à sua capacidade de
sobrevivência, frente aos competidores e às vicissitudes da natureza.
Depois de Freud, neurocientistas e
antropólogos têm afirmado que o Homo
sapiens ainda conserva o primitivo cérebro reptiliano, acrescido do
emocional cérebro límbico dos mamíferos e do racional neocórtex, que
caracteriza nossa espécie. Tornamo-nos assim, para além da aptidão de
sobreviver dos répteis, zelosos cuidadores das crias e dos grupos familiares, e
capazes de observar, aprender, discernir, planejar, criar...
Há quem diga que já começamos a
desenvolver um outro cérebro, representado pela hipófise, discreta glândula na
base da caixa craniana. Este cérebro hipofisário seria identificado com a
compaixão, solidariedade, fraternidade, empatia, ética, comunhão com o outro e
com o planeta... enfim, seria o cérebro da espiritualidade.
Ufa! Que alívio! Estamos a compreender que
somos mais que os répteis e os impulsos básicos que os comandaram ─ a
sexualidade e a agressividade ─, tão honestamente dissecados por Freud. Mas
afirma-se também que o cérebro reptiliano não só ainda está vivo em nós, como é
o primeiro a se manifestar nas situações mais críticas. Por isso é tão
importante não reagirmos intempestivamente, sem refletir. Seria nosso réptil ancestral
que estaria a nos comandar, e não o Homo
sapiens que o sucedeu.
Entretanto, atualmente parece que é o
cérebro reptiliano que tem guiado a civilização. O zelo do límbico, o racional
do neocórtex e o fraternal do hipofisário parecem estar sendo suplantados por
dominantes impulsos sexuais e agressivos, que não logramos mais reprimir. E,
nas palavras de Freud, daí nosso mal-estar, nossa infelicidade.
Estaremos regredindo ao ancestral cérebro
reptiliano? O professor de Paleontologia da USP dos anos 1980 teria dito uma
profecia? Ou estamos vivendo um lapso em que nosso cérebro reptiliano está
sendo vilmente estimulado, a ponto de superar, nas reações que produz, os
outros mais evoluídos?
O surto de hiperconsumismo, depredação ambiental,
guerras, intolerâncias, segregacionismos, egoísmo, desigualdades, negacionismo, irracionalidade, cegueira ética e religiosa, incapacidade de
discernir entre verdades e mentiras, nos faz supor que a frase possa estar
acertada: sim, “Nós, os répteis...”.
Bom dia!
ResponderExcluirEu diria que seu professor não se enganou , profetizou infelizmente.
Pena que de todos os alunos , poucos , hoje terão essa sua percepção.
O homem é um animal que pensa. E pensa que não é um animal.
ResponderExcluirMirian Cruxen: eu acredito no ser humano, na sua capacidade de sentir empatia e compaixão. Acho que estamos evoluindo, embora seja uma evolução lenta.
ResponderExcluirAmei! Texto tão "limpo", tão claro, tão fluente! Que venha rápido o novo cérebro e que saibamos EDUCAR.
ResponderExcluirComo sempre, um texto muito proveitoso e reflexivo, sempre uma "pulga atrás da orelha" de quem ainda usa o neocórtex. Tenho lido obras de ficção que trazem um réptil entre seus personagens instigantes, muito bem "humanizados", mas um desenho das humanas manifestações reptilianas não são tão comuns.
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