sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Estória da criação

Fala realizada no I Seminário de Pesquisas do Parque Nacional dos Campos Gerais e da Reserva Biológica das Araucárias, Fundação Boticário e ICMBio, Ponta Grossa, 19/11/2015

          Conta-se que quando da criação do mundo, o Criador, secundado por seu fiel ajudante principal (os Católicos diriam que era São Pedro), estava finalizando a distribuição das riquezas e privilégios sobre o planeta Terra. O ajudante perguntava:

          ¾  Mestre, onde devo colocar as maiores acumulações de minérios estratégicos e minérios essenciais para o futuro desenvolvimento tecnológico da Humanidade?

          O Criador refletiu um pouco, coçou o queixo, a cabeça, e disse:

          ¾  Coloque lá naquele grande país da América do Sul, que vai se chamar Brasil.

          ¾  E onde coloco os maiores mananciais de água doce do planeta?

          Depois de uma hesitação mais rápida, o Criador respondeu:

          ¾  No Brasil!

          E Pedro (vamos aqui assumir o ponto de vista católico, que fosse Pedro o ajudante) ia anotando em sua prancheta luminosa.

          ¾  E as maiores florestas do planeta?

          Agora já quase sem hesitação, o Criador responde firme e prontamente:

          ¾  No Brasil!

          ¾  E as maiores extensões de solos férteis adequados para o plantio e a criação?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E a mais rica biodiversidade do planeta?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E as plantas nativas mais generosas, dóceis e resistentes, capazes de produzir grãos e raízes para o fabrico de farinhas, pães, bolos, amidos, polvilhos e tudo que seja necessário para alimentar os humanos e suas criações?

          ¾  Põe lá no Brasil!

          ¾  E árvores frutíferas nativas invulgares e deliciosas, que dão geléias, compotas, doces, bebidas inigualáveis?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E a maior incidência da luz do sol, que um dia poderá ser transformada em fonte de energia limpa e renovável?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E milhares de quilômetros de praias maravilhosas, que além de satisfazer a necessidade de deleite e fantasia das pessoas, é uma fonte inesgotável de recursos pesqueiros?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E grandes campos petrolíferos estratégicos, que só poderão vir a ser explorados quando a energia começar a escassear no mundo?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E onde deixaremos grandes extensões de terra livres de terremotos, tsunamis, vulcões, furacões, desertos e pragas naturais?

          ¾  No Brasil!

          A esta altura Pedro já se inquietava de tantas vezes que a palavra Brasil aparecia em sua prancheta luminosa. Mas ainda continuou as perguntas:

          ¾  E onde colocaremos paisagens maravilhosas, além das praias, montanhas, pantanais, chapadas, escarpados, grandes rios, cachoeiras, cavernas, para o regalo e reverência do povo?

          ¾  No Brasil!

          Pedro, então, tomado de um impulso de justiça para com a humanidade, exclamou revoltado:

          ¾  Mas Mestre, não são benesses demais para uma única região, um único país do mundo?

          O Criador, com muita calma, e um brilho de astúcia no olhar, responde:

          ¾  Calma, Pedro, calma. Ainda não terminamos a criação. A Terra vai ser um planeta de aprendizado pelo erro. Você vai ver as pessoas que vamos pôr lá!

***

         Três observações sobre esta estória:

         - o que vale para o planeta Terra parece valer também para a região dos Campos Gerais;

         - escutei-a pela primeira  vez (uma versão antiga) faz uns cinquenta anos, portanto naquela época já se tinha a percepção que as pessoas, com seus erros colossais, eram capazes de compensar tantas benesses naturais do Brasil; não são as pessoas dos tempos atuais que iniciaram os nossos muitos erros;

         - dizem que esta estória é uma desforra, inventada pelos portugueses ou pelos argentinos.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A vida: essa escola implacável

Publicado no Diário dos Campos em 17 de novembro de 2015.

          Com o passar dos anos, cada vez mais me convenço de que a vida é mesmo uma escola implacável, que nos cobra exemplarmente os nossos erros, e sobre eles persiste até que demos mostra de algum aprendizado. Para usar exemplos bem próximos, vamos falar do humilhante 7X1 para a seleção da Alemanha na copa de 2014, do atentado ao Charlie Hebdo na França no começo deste ano e dos bárbaros atentados dos últimos dias naquele mesmo país.

          O futebol é a paixão nacional, e um forte elemento na construção da identidade do povo brasileiro. Através dele o brasileiro mostrou ser capaz de vencer, e foi deixando para trás o complexo de vira-lata que o assolava. Foi um grande empenho de muita gente trazer para o país a copa de 2014. Uma chance de redimir-se da tragédia histórica do “maracanazo”, a derrota de 1950 para o Uruguai de Ghiggia. E então, às vésperas da copa de 2014, orquestrou-se um incompreensível coro “fora copa”. E na abertura do mais global dos eventos esportivos, o único que literalmente para o planeta, até suas guerras e acirradas disputas ideológicas, perpetrou-se o ato de supremo desrespeito, a presidenta foi vaiada e ofendida. A vida logo tratou de admoestar os rebeldes: foi imputado ao país um vergonhoso e histórico 7X1 perante a Alemanha, reforçado ainda pelo 3X0 frente à Holanda. Passamos a ser uma vergonha naquilo em que já fomos um orgulho.

          No início deste ano, o bárbaro atentado à revista Charlie Hebdo. Bárbaro e injustificável, sem dúvida, mas alegaram os seus autores que faziam justiça às ofensas publicadas pela revista aos ícones do islamismo. Será que teriam sido os ofendidos que teriam perdido a medida das retaliações justificáveis, ou teria sido a ofensora, a revista, que teria perdido a medida das ofensas? E agora os ainda mais bárbaros atentados, supostamente em retaliação às posições da França perante o Estado Islâmico e à acossada população árabe residente no país de Le Pen. Nestes dois casos, parece-nos também que a vida anda a procurar mostrar sua lógica implacável: o fanatismo de uns faz com que se tornem perseguidos e combatidos por boa parte do mundo ocidental, a incompreensão, a intolerância e a ofensa de outros fazem com que sejam alvo do ódio dos primeiros.

          Mas estes exemplos nos conduzem ao Brasil de hoje. O país ainda pode ser considerado, perante estas tragédias que vão pelo mundo, uma terra de tolerância e convivência pacífica. Talvez herança de um povo que resulta da miscigenação de raças. Mas é bom ficar alerta, pois parece que também por aqui a incompreensão e a intolerância têm sido fomentadas, até os extremos do ódio explosivo. Se não existem entre nós os ódios raciais, culturais, religiosos que existem em outras partes do mundo, parece estar sendo cultivado entre nós o ódio ideológico.


          Aqueles que estão fomentando tal ódio ideológico entre nós teriam para tanto muitas razões. Receio principalmente a que talvez seja a principal e mais escondida delas, e que não é doméstica: se o país não estiver dividido por algum tipo de ódio e intolerância interna, ameaça ascender à grande nação que tem potencial de ser. E isso assusta o arranjo mundial de poder, que não deseja novos concorrentes. Mas os fomentadores do ódio e os que se deixam por ele levar não perdem por esperar: logo a vida exercerá seu implacável poder de correção. A menos que aprendamos antes.