segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

"Sabemos que unidos valemos mais" - discurso de posse de David Choquehuanca, vice-presidente da Bolívia

 

Prezados, peço licença para publicar no blog um texto que não é de autoria do blogger. É o discurso de posse do vice-presidente boliviano David Choquehuanca proferido em 08/11/2020 (o vídeo pode ser visto em https://caixadeferramentas.org/2020/11/15/discurso-de-posse-de-david-choquehuanca-novo-vice-presidente-da-bolivia/). Creio que o discurso é uma declaração inspiradora para um momento de reflexão e de esperança, como usualmente o é a passagem de ano. E o final deste ano de 2020 não poderia ser momento melhor para tal mensagem.

 

“Com a permissão de nossos deuses, de nossos irmãos mais velhos e de nossa Pachamama, de nossos ancestrais, de nossos achachilas, com a permissão de nosso Patujú, de nosso arco-íris, de nossa folha sagrada de coca.

Com a permissão de nossos povos, com a permissão de todos os presentes e não presentes nesta Câmara.

Hoje quero compartilhar nossos pensamentos em alguns minutos.

É uma obrigação de comunicar, uma obrigação de dialogar, é um princípio de viver bem.

Os povos de culturas milenares, da cultura da vida, mantêm as nossas origens desde os primórdios da antiguidade.

Nós, crianças, herdamos uma cultura milenar que entende que tudo está interligado, que nada está dividido e que nada está fora.

‘Vamos juntos’

Por isso nos dizem que vamos todos juntos, que ninguém fica para trás, que todos têm tudo e nada falta a ninguém.

E o bem-estar de todos é o bem-estar de si mesmo, que ajudar é razão de crescer e ser feliz, que desistir pelo bem do outro nos fortalece, que nos unir e reconhecer em tudo é o caminho de ontem, hoje amanhã e sempre de onde nunca nos desviamos

O ayni, o minka, o tumpa, nosso colka e outros códigos de culturas antigas são a essência de nossa vida, de nosso ayllu.

Ayllu não é apenas uma organização da sociedade de seres humanos, ayllu é um sistema de organização da vida de todos os seres, de tudo que existe, de tudo que flui em equilíbrio em nosso planeta ou Mãe Terra.

Durante séculos os cânones civilizadores de Abya Yala ficaram desestruturados e muitos deles exterminados, o pensamento original foi sistematicamente submetido ao pensamento colonial.

Mas não podiam nos desligar, nós estamos vivos, somos de Tiwanaku, somos fortes, somos como pedra, somos cholke, somos sinchi, somos Rumy, somos Jenecherú, fogo que nunca apagou, somos de Samaipata, somos jaguar, somos Katari, somos Comanches Somos maias, somos guaranis, somos mapuches, mojeños, somos aimaras, somos quechuas, somos jokis e somos todos os povos da cultura da vida que despertam larama, iguais, rebeldes com a sabedoria.

‘Uma transição a cada 2.000 anos’

Hoje a Bolívia e o mundo vivem uma transição que se repete a cada 2.000 anos, no marco da ciclicidade do tempo, vamos de nenhum tempo em tempo, começando um novo amanhecer, um novo Pachakuti em nossa história

Um novo sol e uma nova expressão na linguagem da vida onde a empatia pelo outro ou pelo bem coletivo substitui o individualismo egoísta.

Onde os bolivianos se olham todos iguais e sabemos que unidos valemos mais, estamos em um tempo de ser Jiwasa de novo, não sou eu, somos nós.

Jiwasa é a morte do egocentrismo, Jiwasa é a morte do antropocentrismo e é a morte do teolocentrismo.

Estamos a tempo de voltar a ser Iyambae, é um código que os nossos irmãos Guarani têm protegido, e Iyambae é o mesmo que quem não tem dono, ninguém neste mundo tem que se sentir dono de ninguém e de nada.

Desde 2006 na Bolívia iniciamos um trabalho árduo para conectar nossas raízes individuais e coletivas, para voltar a ser nós mesmos, para retornar ao nosso centro, a taypi, a pacha, ao equilíbrio do qual a sabedoria das civilizações mais importantes de nosso planeta.

Estamos em processo de resgate de nossos conhecimentos, dos códigos da cultura da vida, dos cânones civilizadores de uma sociedade que viveu em íntima conexão com o cosmos, com o mundo, com a natureza e com a vida individual e coletiva. construir o nosso suma kamaña, a partir do nosso suma akalle, que é garantir o bem individual e o bem coletivo ou comunitário.

Chacha-warmi

Estamos em tempos de resgate da nossa identidade, das nossas raízes culturais, do nosso bem, temos raízes culturais, temos filosofia, temos história, temos tudo, somos gente e temos direitos.

Um dos cânones inabaláveis ​​da nossa civilização é a sabedoria herdada em torno da Pacha, garantir equilíbrio em todo o tempo e espaço é saber administrar todas as energias complementares, a cósmica que vem do céu com a terra que emerge de debaixo da terra.

Essas duas forças cósmicas telúricas interagem criando o que chamamos de vida como uma totalidade visível (Pachamama) e espiritual (Pachakama).

Ao entender a vida em termos de energia, temos a possibilidade de modificar nossa história, matéria e vida como a convergência da força chacha-warmi, quando nos referimos à complementaridade dos opostos.

O novo tempo que iniciamos será sustentado pela energia do ayllu, da comunidade, do consenso, da horizontalidade, dos equilíbrios complementares e do bem comum.

Historicamente, a revolução é entendida como um ato político para mudar a estrutura social, a fim de transformar a vida do indivíduo, nenhuma das revoluções conseguiu modificar a conservação do poder, para manter o controle sobre o povo.

‘Nossa revolução é a revolução das idéias’

Não foi possível mudar a natureza do poder, mas o poder conseguiu distorcer as mentes dos políticos, o poder pode corromper e é muito difícil modificar a força do poder e de suas instituições, mas é um desafio que assumiremos com a nossa sabedoria. povos. Nossa revolução é a revolução das idéias, é a revolução dos equilíbrios, porque estamos convencidos de que para transformar a sociedade, o governo, a burocracia e as leis e o sistema político devemos mudar como indivíduos.

Nossa verdade é muito simples, o condor só alça vôo quando sua asa direita está em perfeito equilíbrio com a esquerda, a tarefa de nos formarmos como indivíduos equilibrados foi brutalmente interrompida há séculos, não a concluímos e o tempo da era ayllu, comunidade, já está conosco.

Requer que sejamos indivíduos livres e equilibrados para construir relacionamentos harmoniosos com os outros e com o nosso meio ambiente, é urgente que sejamos capazes de manter o equilíbrio para nós mesmos e para a comunidade.

Estamos no tempo dos irmãos dos Apanaka Pachakuti, irmãos da mudança, onde a nossa luta não era só por nós, mas também por eles e não contra eles. Buscamos o mandato, não buscamos o confronto, buscamos a paz, não somos da cultura da guerra ou da dominação, nossa luta é contra todas as formas de submissão e contra o pensamento colonial único patriarcal, venha de onde vier.

A ideia do encontro entre o espírito e a matéria, o céu e a terra de Pachamama e Pachakama nos permite pensar que uma nova mulher e um novo homem serão capazes de curar a humanidade, o planeta e a bela vida que nele há e devolver o beleza para nossa mãe terra.

Defenderemos os tesouros sagrados de nossa cultura de todas as interferências, defenderemos nossos povos, nossos recursos naturais, nossas liberdades e nossos direitos.

‘Voltaremos a Qhapak Ñan’

Voltaremos ao nosso Qhapak Ñan, o nobre caminho da integração, o caminho da verdade, o caminho da fraternidade, o caminho da unidade, o caminho do respeito por nossas autoridades, nossas irmãs, o caminho do respeito pelo fogo, o caminho do respeito pela chuva, o caminho do respeito pelas nossas montanhas, o caminho do respeito pelos nossos rios, o caminho do respeito pela nossa mãe terra, o caminho do respeito pela soberania dos nossos povos.

Irmãos, para concluir, os bolivianos devem superar a divisão, o ódio, o racismo, a discriminação entre os compatriotas, o fim da perseguição à liberdade de expressão, o fim da judicialização da política.

Chega de abuso de poder, o poder tem que ajudar, o poder tem que circular, o poder, assim como a economia, tem que ser redistribuído, tem que circular, tem que fluir, assim como o sangue corre em nosso corpo, chega de impunidade, irmãos de justiça.

Mas a justiça tem que ser verdadeiramente independente, vamos acabar com a intolerância à humilhação dos direitos humanos e de nossa mãe terra.

O novo tempo significa ouvir a mensagem dos nossos povos que vem do fundo do coração, significa curar feridas, olhar para nós com respeito, recuperar a pátria, sonhar juntos, construir fraternidade, harmonia, integração, esperança para garantir a paz e a felicidade dos novas gerações.

Só então podemos conseguir viver bem e governar a nós mesmos."

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

“Nunca deixe de lembrar” – há muito o que não esquecer!

  

“Nunca deixe de lembrar” é o nome do filme dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck (Alemanha, 2018) que vi casualmente na TV há cerca de dois meses, e revi estes dias com a família. Se tiverem como, não deixem de vê-lo, ainda está passando em vários canais fechados. Vale demais cada minuto das pouco mais de três horas de duração. Apesar de longo, é envolvente, riquíssimo de conteúdo, temas que se entrelaçam e nos prendem, nos arrebatam, nos comovem e nos fazem refletir sobre o momento atual que vivemos no Brasil e no mundo.

O tema central é a trajetória de um artista alemão em busca do sentido da arte, personagem inspirado na história real do pintor Gerhard Richter. A trama se inicia durante o clímax do nazismo, na segunda metade da década de 1930, e vai até a consagração do ainda jovem pintor, mais de trinta anos depois, a Alemanha então dividida, o Muro de Berlim materialização mor da divisão.

O tema central da busca do sentido da arte não é ofuscado pelo vigor das muitas tramas entremeadas que se desenrolam: o nazismo e suas vítimas, a hipocrisia dos tiranos, as razões pessoais que implicam decisões de alcance social, a “banalidade do mal” legalizado sob um regime desumano, a recuperação da Alemanha destruída e dividida, o poder de transformação e cura do amor verdadeiro de um jovem casal penalizado pelas atrocidades do nazismo e da guerra...

O que mais impressiona é que a trama mostrada no filme encontra nítido paralelo com os dias atuais. Um dos personagens principais é um médico responsável por enviar para os campos de extermínio nazistas as pessoas consideradas “defeituosas”, em nome da purificação da raça. Entre os “defeituosos”, os artistas que tinham tido a revelação da transcendente dimensão da arte, e por tal epifania foram considerados anomalias a serem exterminadas. O médico exterminador esconde suas atrocidades atrás de uma máscara de falsa respeitabilidade, a qual não conseguimos deixar de ver também em muitos dos líderes atuais no mundo, principalmente no Brasil.

Talvez os maiores méritos do filme sejam mesmo estes: o entremear de temas tão subjetivos quanto a arte e o amor e tão concretos quanto os regimes de governo atrozes e os monstros que os lideram; a essencialidade de lembrar, preservar a memória racional e a afetiva, elas têm um espantoso (e temido) poder de criação e de transformação.

É um filme que humaniza, algo que precisamos muito nestes tempos bicudos em que, como na Alemanha nazista de 1935, a loucura, a crueldade e a ignorância vêm disfarçadas de esperançosa novidade.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Geologia do petróleo e o efeito dominó

 

Corria o ano de 1992. As prioridades de exploração de petróleo no Brasil já eram as bacias da Plataforma Continental, mas o pré-sal ainda era desconhecido. O saudoso Professor Armando Márcio Coimbra, do curso de Geologia da USP, conduzia uma excursão com alunos de graduação e alguns orientandos pós-graduandos ao Recôncavo Baiano. Visitamos muitos afloramentos que mostravam rochas sedimentares e estruturas geológicas, poços de petróleo em perfuração ou em produção, laboratórios, gabinetes e depósitos da Petrobras.

Nos afloramentos aprendíamos sedimentologia, faciologia, estratigrafia, geologia estrutural, tudo voltado às condições de acumulação do petróleo: as rochas produtoras, os reservatórios, as estruturas confinantes. O Armando Muzambinho, com seu inesquecível jeito de mineiro matreiro, já naquele tempo nos dava aulas que nos ensinavam os encadeamentos dos fatores responsáveis pela formação dos indícios que conseguíamos observar, e de como podíamos utilizá-los para interpretações e previsões. Ressaltava que tudo era um efeito dominó, uma circunstância influenciava outra, cada uma com seus respectivos produtos: as rochas, fósseis, estruturas que podíamos ver. Iniciava-nos no holismo da interdisciplinaridade.

Nos poços em perfuração ou em produção, pudemos conhecer, além da Geologia de poço, um pouco de algo que estava além: os equipamentos, a Engenharia, a logística, o pessoal técnico. Um encadeamento de operações e funções que o professor não cansava de lembrar: ─ É tudo um efeito dominó, uma etapa depende da outra. ─ E por lá vimos também o óleo cru, o ouro negro que movimenta a intrincada e insensata civilização atual.

Nos laboratórios e gabinetes da Petrobras mostravam-nos como a tecnologia, já naquele tempo, auxiliava na integração dos dados de superfície e dos poços com a finalidade de interpretar possíveis acumulações de hidrocarbonetos e orientar novas perfurações. Eram sofisticados programas computacionais onde os dados eram compilados em 3D e modelagens indicavam a localização de novos alvos a serem prospectados. Ali também o Muzambinho nos alertava que era tudo um efeito dominó: os dados compilados um a um produziam os resultados esperados.

Mas talvez a melhor demonstração da importância que o Armando tentava nos revelar do tal efeito dominó tenha acontecido mesmo é na última etapa daquela excursão. Fomos visitar um depósito da Petrobras na Cidade Baixa em Salvador, era como se fosse um museu com amostras de afloramento e de subsuperfície de rochas das unidades estratigráficas da Bacia do Recôncavo e de outras bacias continentais e costeiras do Brasil. Num amplo barracão-depósito encontravam-se muitas amostras, em bancadas acompanhando as laterais e numa grande bancada centralizada. Uma longa prateleira a meia altura ocupava três das paredes do barracão. Nela, estavam cuidadosamente colocadas em pé, lado a lado, diagonalmente para quem olhava para a parede, placas retangulares de amostras de rochas obtidas pelo cuidadoso e uniforme corte de testemunhos de sondagem. Uma belíssima coleção, impecavelmente arranjada.

Um dos orientandos do Armando, justamente o mais curioso, não se contentou de observar essas amostras perigosamente dispostas: teve de tocá-las. Não deu outra: uma das placas tombou, desencadeou um inesquecível efeito dominó, que rapidamente propagou-se pelas três prateleiras. Azar maior: a amostra tombada era justamente uma das primeiras de uma das pontas da prateleira. O orientando, quando se deu conta do desastre, chegou a sair correndo atrás das amostras que tombavam disparadas, tentando detê-las. Elas correram mais rápidas. Ele não as alcançou.

Concluída num instante a derrubada das amostras, o prejuízo não foi pouco. Muitas caíram no chão, partiram-se. O silêncio e o estarrecimento dominavam o ambiente, todos se entreolhavam, imóveis miravam o embasbacado orientando, o professor, a paralisada geóloga da Petrobras que estava a nos guiar. Ela, superado o estupor momentâneo, procurou abrandar a situação: ─ Não foi nada não, temos cópia das amostras; um estagiário vai recolocá-las no lugar.

O Muzambinho não perdeu a ocasião: ─ Tudo bem, mas viram agora a importância do efeito dominó?

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A enganosa inflação oficial e o preço real

 

O mercado e o governo preveem inflação de 3,2% para o ano de 2020. Mas o aumento de preços de alimentos apurado só até o mês de outubro/2020 é de 18%. Como pode ser isto?

Analistas dizem que é porque a previsão do mercado baseia-se num amplo leque de produtos e serviços, que vão desde ingressos no teatro, no futebol, até o arroz com feijão e o óleo de soja. Efeito da pandemia, muitos dos preços estão congelados, ou nem estão sendo praticados. No cálculo, pondera-se tudo sem distinção, resulta um número que agrada ao desgoverno, mas que não reflete o que a população está gastando para sobreviver.

Qual o motivo do preço dos alimentos ter disparado? Arroz, feijão, soja, café, suco de laranja, carne, o trigo para o pão, etc., são commodities, produtos cujos preços são fixados em dólar no mercado internacional. Em janeiro de 2019 o dólar valia R$3,66. Em outubro de 2020, R$5,77. Com a alta do dólar, na ausência de políticas públicas e leis que regulem exportações de forma a garantir primeiro o abastecimento do mercado interno, o agronegócio exporta tudo o que pode. O lucro é muito maior. Falta mercadoria no mercado interno, exportamos a soja a preço de dólar, falta óleo de soja no supermercado brasileiro. Ou então o preço sobe, tendendo a equiparar o preço doméstico com a alta do dólar. Os ricos ficam mais ricos, os pobres têm de pagar mais pelo arroz, o feijão e o óleo de soja. Ficam mais pobres.

Qual o motivo da alta do dólar? Não creio que seja fácil responder a essa pergunta, mesmo que fosse por um economista experimentado. Não é à toa que a expressão “deus mercado” seja tão difundida. Mas com certeza um motivo principal é o descrédito e a instabilidade do governo, quando ele não consegue inspirar confiança nos investidores e credores, que vão investir seu capital em países mais confiáveis. Deixamos de ser um país atraente, os dólares fogem, e ficam muito mais caros.

Um governo com responsabilidade tenderia a evitar estes dois eventos: a alta do dólar e a exportação descontrolada dos alimentos. A estabilidade do dólar é conquistada com governo legítimo, economia sólida, políticas governamentais consequentes, investimento em infraestrutura, criação de empregos, distribuição de renda. Entretanto, mesmo uma economia sólida com um governo responsável pode sofrer os efeitos de crises internacionais. É então necessário ter leis, políticas públicas, bem estruturadas redes de estocagem e distribuição, para garantir que existam produção e condições de comercialização dos produtos que constituem a alimentação da população. Programas de agricultura familiar, linhas de crédito, redes de silos e de distribuição, garantia de preços, são alguns dos muitos requisitos para estabilizar preços e garantir abastecimento. Com um governo responsável, o país não fica a mercê de preços internacionais, amiúde controlados por ataques especuladores.

Falar em governo responsável implica falar também em distribuição de renda. O dinheiro que dinamiza a economia é o dinheiro do trabalhador que gasta tudo o que recebe para sua sobrevivência, não é um poupador. O dinheiro do rico poupador muitas vezes é aplicado em especulação que só traz lucro ao investidor, quando não é enviado para fora do país, justamente pelas desvantagens financeiras nacionais. Queda do poder aquisitivo das classes mais pobres da população é enfraquecimento do mercado interno, que agrava a alta do dólar, a evasão de divisas, a exportação descontrolada de alimentos. Um ciclo vicioso.

Arrumar toda essa desarrumação não seria tarefa tão difícil. Bastaria um governo responsável, preocupado em atender as necessidades da população, e não da voracidade do mercado.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Lulismo e bolsonarismo

 Publicado no Jornal da Manhã em 17/11/2020.

Dizem os cientistas políticos, o lulismo veio inaugurar a consciência de classe no Brasil. Classe no sentido daqueles que ganham a vida com o próprio trabalho, e que vivem constante risco de desemprego ou de aviltamento dos salários e perda das condições de ter uma vida digna. A grande maioria dos que pertencem a esta classe é de operários. O lulismo surgiu justamente da organização sindical de operários metalúrgicos das grandes fábricas paulistas.

Esta consciência de classe só prosperou graças à possibilidade de organização sindical nas grandes fábricas e a um líder carismático. Os sindicatos viraram partido político, o partido político cresceu, conquistou prefeituras, estados, a presidência da república. A consciência de classe e o lulismo espalharam-se pelo Brasil. O apoio popular, acrescido da parte progressista das classes privilegiadas, cresceu. O Partido dos Trabalhadores tornou-se o maior do país, Lula ensejou o lulismo. No governo, o PT escolheu um rumo ainda a ser bem analisado e compreendido: procurou uma reforma lenta, melhorou aos poucos as condições de vida dos mais pobres, mas sem ameaçar os privilégios dos mais ricos. Diminuiu a miséria, mas não logrou aprofundar o engajamento e a consciência política da classe trabalhadora.

Isto não impediu que o segregacionismo e o medo fizessem os privilegiados atacarem ferozmente o PT e Lula: sequestradores de Abílio Diniz com camisetas do partido enfiadas pela polícia, imputação de toda a corrupção do país ao PT, massacre midiático, sabotagem do governo Dilma e golpe, prisão de Lula, o insano que esfaqueou Bolsonaro também com camisa vermelha enfiada pela polícia, são só algumas das tramoias para destruir o lulismo. Se conseguiram de fato fazê-lo ou não, o tempo dirá. Lula e PT ainda têm muita força.

Sem o prever, as elites engendraram Bolsonaro e o bolsonarismo. A criatura surpreendeu, e assusta, seus criadores. Claro, eles não queriam bem um Bolsonaro, este se mostrou um oportunista sagaz, respaldado pelas mesmas forças já não ocultas que antes viabilizaram o Brexit e Trump: a disseminação de mentiras nas redes sociais. Bolsonaro, embora não fosse o preferido, ao mesmo tempo que distrai a atenção da população com patetadas diárias, vai avançando na pauta que vai destruindo o Estado, loteando o país e aprofundando o fosso entre a multidão de empobrecidos e os privilegiados cada vez mais ricos. Um fantoche, está cumprindo bem o papel que os privilegiados desejavam que um governo pós-lulismo cumprisse.

O fenômeno Bolsonaro trouxe o bolsonarismo. Os apoiadores e votantes do capitão reformado não estão só na direção das federações e grandes corporações, na classe média retrógrada que enche as ruas das grandes cidades com bizarras manifestações, na malta de lambe-botas que cerca o mito em suas aparições públicas, nos comandos militares acostumados às ordens sem questionamento, nos politiqueiros sanguessugas. O bolsonarismo fanático está também na família de agricultores e de operários despossuídos, nos desempregados e subempregados, nos profissionais do sucateado sistema de ensino, nos militares de baixa patente, nos fiéis evangélicos, nas mulheres assediadas, nas segregadas minorias étnicas, de gênero, etc.

Como explicar o bolsonarismo e sua virulenta e indiscriminada disseminação? Decerto em parte é resultado da poderosa campanha de demonização contra o PT e Lula, regiamente financiada pelos ricos que não querem compartilhar seus privilégios. Decerto é pela falta de um entendimento mais firme de consciência de classe e política da população explorada. Decerto é pela ilusão de um outro caminho capaz de trazer prosperidade e justiça social ao país. Mas só isso não explica tudo o que caracteriza o bolsonarismo, que inclui no sua prática a discriminação, a violência, o negacionismo, a boçalidade e a mentira vulgarizadas. Qual o algo mais que justificaria o bolsonarismo?

Há analistas que explicam que a capilaridade do bolsonarismo dentro das várias camadas econômicas e sociais está alicerçada em fatores psicológicos, e não sociais. Os bolsonaristas na verdade identificam-se com a truculência, o despotismo, a ignorância e a chulice do seu mito. São indivíduos assombrados por seus fantasmas pessoais que não conseguem estender sua compreensão para além de si mesmos, para a complicada dimensão dos problemas sociais. A identidade do bolsonarismo não estaria, então, numa classe social, mas num traço de personalidade.

Afinal, parece que voltamos ao velho dilema humano, que Buda, Cristo, Maomé e tantos outros tentaram elucidar: entre o egocentrismo e a solidariedade, só esta última salva.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Ogros ou elfos: a farsa da liberdade, democracia e verdade

Publicado no Jornal da Manhã em 07/11/2020


Todos nós somos um tanto ogros e um tanto elfos, em proporções variáveis. Dizem estudiosos da natureza humana que o ideal seria uma ponderação entre os dois, pois ambos têm prós e contras. Entretanto, ao longo do tempo, histórico ou pessoal, ora um ora outro se descontrola. Quem, num mesmo dia, já não foi ogro num momento e elfo noutro?

Os dias atuais da Humanidade estão dando o que pensar. São tempos de ogros ou de elfos? Como andam a liberdade, a democracia, a verdade, qualidades dos elfos?

A eleição nos EUA é carregada de simbolismos. Trump personifica a truculência, o autoritarismo, a opressão, a mentira. Há quatro anos, quando foi eleito pela primeira vez, há quem pudesse alegar que não tivesse certeza disso. Mas hoje já se sabe quem é o topetudo. E Trump chega a ameaçar ganhar de novo. Não é só ele que soltou o lado ogro. Todos os seus eleitores, e os incontáveis apoiadores mundo afora, também soltaram os seus.

Aliás, as nações são feitas de seus habitantes. Se os estadunidenses têm se inclinado para o lado ogro, que dizer de seu país? Ora, diriam, os EUA são a pátria da liberdade, da democracia, da verdade. São!? Liberdade de quem, e para quê? Da Ku Klux Klan para aterrorizar e matar? Liberdade de sufocar a imensa população negra e imigrante? Liberdade de invadir e arruinar países pelo mundo que não rezem sua cartilha econômica e ideológica? E a democracia? Nem internamente são democratas; massacram minorias, têm um bizarro sistema eleitoral em que o mais votado pelo povo pode não levar, o que tem acontecido com frequência. O que existe de democracia nos EUA depende de exportar ditaduras impostas a países mundo afora pelos seus serviços de arapongagem e equipadíssimo exército.

E a verdade? Tio Sam especializou-se em oferecer ao mundo o veneno fazendo-o passar por remédio. As bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, os dois maiores atos terroristas da História, são ditos atos de guerra necessários, para abreviar o conflito e salvar vidas. A verdade é que as duas explosões aterrorizaram o mundo, que desde então se curva de medo e rende-se à tirania capaz de tal atrocidade. Ademais, os EUA fabricam tiranos líderes fantoches mundo afora, depois têm de promover guerras arrasadoras para depô-los quando eles se insurgem contra seus criadores.

E se as armas de destruição vêm sendo incrivelmente aperfeiçoadas, graças a gordos orçamentos de guerra, primorosas estão também as artimanhas de manipulação da informação. A verdade nunca esteve tão distorcida. E os EUA parecem ser a pátria da honestidade. O restante do mundo é mentiroso e corrupto. Mas os corruptores são os agentes a serviço da hegemonia estadunidense. E, claro, a abafada corrupção interna de Tio Sam é negociada em secretos acordos internos, o restante do mundo não precisa sabê-la.

Vivemos um momento de farsa da liberdade, da democracia, da verdade. Soltamos os ogros, eles calaram os elfos. O apoio a Trump nos EUA e no mundo é uma prova disso. Urge nos reequilibrarmos.  

terça-feira, 27 de outubro de 2020

A execução do líder do MST Ênio Pasqualin

 Publicado no Jornal da Manhã em 28/10/2020.

Foi noticiada na noite deste domingo (25 de outubro) a execução do dirigente estadual do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – Ênio Pasqualin, assassinado em Rio Bonito do Iguaçu, sudoeste do Paraná. Ele foi sequestrado em casa, diante da família, e executado a tiros numa estrada rural. O crime teria tido motivação política.

Esta notícia está em veículos alternativos (Brasil 247, Revista Fórum, etc.). Como ela será tratada nos jornalões do Brasil? Vale ver o documentário “Nossa bandeira jamais será vermelha” (direção de Pablo López Guelli, 2019). Ele mostra como meia dúzia de grandes grupos de mídia carteliza a informação no país, manipulando as notícias de modo que a população reaja como um rebanho que acaba negando seus próprios direitos e apoia os privilégios da elite econômica.

Ênio Pasqualin era dirigente do MST, cuja bandeira principal é a reforma agrária. O documentário mostra como isto é traduzido pelos jornalões, que transformam tudo o que tem a ver com o MST em perigo à suposta ordem instituída. Mas, numa visão realista, o MST é um movimento legítimo, popular, que busca resistir ao sequestro dos direitos, da identidade e da liberdade do camponês. A bandeira pela reforma agrária não é pela desordem no campo, mas sim pela distribuição da terra de latifúndios improdutivos ou ilegais para camponeses que nelas desejam trabalhar.

Sendo um movimento popular, contrário ao interesse do latifundiário, o MST tem sido demonizado, junto com todos os movimentos, partidos, políticos, mídias, pessoas, etc., que se colocam ao lado dos explorados contra os exploradores. Quem vê o MST como uma ameaça à economia e à sociedade deveria procurar conhecê-lo melhor. Ele na verdade luta por uma sociedade mais justa, uma produção agrícola voltada para as necessidades das populações locais, a defesa das sementes crioulas livres dos grilhões corporativos e da obrigação do uso de agrotóxicos, o cooperativismo e campanhas solidárias, a educação sem medo de abordar temas sobre soberania, consciência de classe e militância política. Por isso o MST é temido: ele é um risco à perpetuação dos privilégios da elite econômica que ainda trata o Brasil como uma monarquia escravocrata.

A execução de Ênio Pasqualin às vésperas das eleições municipais é um recado da truculência do poder econômico. Se as manipulações não bastarem para calar seus opositores, não hesitarão em chegar às vias de fato. E não temem as consequências de seus crimes. Têm a confiança de que exercem suficiente influência sobre os órgãos policiais e judiciais para que os crimes resultem impunes.

A truculência dos assassinos de Ênio Pasqualin não se limita ao extermínio de líderes rurais. É a mesma que domina a grande mídia, mente nas redes sociais e elege prepostos que mandam na política. No quadro atual, há um modo de barrar tal truculência: é eleger políticos que representem de fato a classe trabalhadora.

Estamos próximos das eleições municipais. Que a população tome consciência de sua condição social, e enfim saiba eleger quem vai representá-la.

sábado, 24 de outubro de 2020

Pandemias e o cemitério de elefantes

 

Seu Vitorino matutava sobre as pandemias. Já era a terceira a assolar a humanidade num intervalo de cinco anos. A primeira, diziam ter começado num inextricável mercado popular do interior da China, graças a hábitos alimentares bizarros, incluindo o consumo de morcegos. Espalhou-se pelo planeta em poucos meses, graças às viagens aéreas. Ceifou alguns poucos milhões de vidas, desde o primeiro até o terceiro mundo. Mas em qualquer dos mundos, tinha suas vítimas preferidas: os mais vulneráveis, aqueles com a saúde mais debilitada, os mais pobres, os que dependiam do trabalho diário para o sustento.

Depois de dois anos de seu início, já existiam vacinas, os hábitos já adaptados a uma convivência mais responsável, veio o segundo vírus. Este surgiu na Europa, veio dos consagrados escargots. Ainda mais rápido que a primeira praga, espalhou-se pelo mundo, valendo-se da mesma forma de contágio: as viagens aéreas dos abastados. Disseminação acelerada, fez algumas dezenas de milhões de vítimas antes de ser controlada. Mas ainda era relativamente mansa, acometia os mais vulneráveis ou os mais negacionistas e negligentes. Tal como na primeira, desenvolveu-se uma vacina, aprendeu-se a viver com o novo infortúnio.

Então veio a terceira. Surgiu em inúmeros locais do planeta quase ao mesmo tempo, logo pareceu ser a praga apocalíptica definitiva. Não se sabia se provinha dos camarões, lagostas, ostras, mariscos, lulas, peixes, ou de todos eles ao mesmo tempo. Ou de um mero banho de mar. Uma coisa era certa: viu-se que os focos iniciais sempre coincidiam com promíscuas aglomerações humanas à beira-mar, fossem na Ásia, na África, na Europa, nas Américas ou mesmo na insulada Oceania. Os mares pareciam insurgir-se contra a desfaçatez humana. Das cidades costeiras espalhou-se continentes adentro com a rapidez do vento. Sua mortalidade, muito maior que nas anteriores, parecia ter uma seletividade diferente. Não eram só os mais vulneráveis ou incrédulos que sucumbiam. Parecia estar ligada a uma certa imunidade natural, ou à falta dela, distribuída imparcialmente entre os seres humanos, independente de raça, idade, local de moradia, hábitos alimentares, estado de saúde, classe socioeconômica e mesmo religião, partido político, time de futebol, sexo ou opção sexual. As vítimas fatais distribuíam-se equitativamente. Após o primeiro ano os óbitos já ultrapassavam em muito os números das duas pragas anteriores.

Seu Vitorino, setenta e cinco anos, morador de uma cidade pequena a média no interior do Brasil, já tinha vencido as duas primeiras batalhas. Aposentado, não era forçado a ir à rua com frequência para as obrigações da sobrevivência. Conseguira manter protocolos de isolamento dentro e fora da família, até que as vacinas fossem disponibilizadas. Idoso, ele fora considerado grupo de risco, um dos primeiros a ser vacinado. Mas agora as coisas pareciam estar mudando. Um implacável e desumano pragmatismo estava prevalecendo sobre a precedente solidariedade. Embora as vacinas fossem eficazes, sua produção estava muito mais onerosa e reduzida. Cada vez tinham-se menos doses. E as vítimas não eram mais principalmente os vulneráveis, espalhavam-se por toda a população. Outros critérios teriam de ser adotados para estabelecer quem seria vacinado primeiro. Não demorou, constatou-se que aqueles que não eram prioridade restariam à própria sorte ou azar, fossem ou não imunes ao novo fatídico vírus.

Seu Vitorino permanecia conectado ao mundo, via as notícias pelo celular e o velho mas fiel laptop. Julgava que os repetidos flagelos não eram fortuitos: tinham motivos óbvios, tinhosamente negaceados ao longo de décadas. Acompanhava os números diários de novas infecções, óbitos, casos recuperados, vacinados e quantidade de vacinas disponíveis. Todo dia eram informados os locais de vacinação, e os grupos que estavam sendo imunizados. Ele estava no grupo dos septuagenários aposentados. Esse grupo nunca era chamado, parecia até ter sido esquecido. As chamadas tinham ido até os sexagenários ativos, mas não alcançaram nem os sessentões aposentados. Que dirá os setentões?

O velho Vitorino procurava adaptar-se àquela sombria realidade. Esperava. E cismava. Parecia-lhe que a natureza estava a dar um jeito de igualar a espécie humana aos demais viventes do planeta. Em qual outra espécie um incapaz e improdutivo é tolerado e sobrevive? Afinal, qual a diferença entre um idoso e um elefante que já não é capaz de acompanhar a manada nas obrigatórias migrações?

Seu Vitorino chegava a pensar que esse era o dilema a ser resolvido pela humanidade: qual a diferença entre o homem e o elefante? A saída de tal dilema selaria o devir.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

O rio que subiu para o alto da colina

 

O compadre Lurdinha e eu fazíamos o mapeamento geológico do baixo Ribeira de Iguape, proximidades de Registro, o sul florestal do Estado de São Paulo. Uma região rebaixada colinosa, cercada por montanhas da Serra de Paranapiacaba. Fruto do trabalho erosivo do grande rio ao longo do tempo geológico. Tempo que é impensável para o homem comum. Este causo que o diga.

Estávamos justamente mapeando os remanescentes de depósitos fluviais, principalmente cascalhos, encontradiços em diversos níveis da paisagem regional. Os níveis testemunham fases de evolução do rio, há muito tempo, milhões de anos. Naquelas épocas o rio ainda não tinha escavado seu leito de hoje, corria num fundo de vale à altura do alto das colinas atuais, onde são encontrados os cascalhos que evidenciam que um dia o rio andou por ali.

Certa manhã estávamos analisando um barranco cavoucado bem no alto de uma dessas colinas, situada algumas poucas dezenas de metros acima do leito atual do rio e a uns dois quilômetros de distância do belo caudal, que tem suas nascentes nos distantes planaltos paranaenses e paulistas. No barranco apareciam os típicos cascalhos fluviais: os seixos arredondados, alongados e imbricados, indicando o sentido da corrente d’água que os depositara.

Concentrados nas observações e anotações, nem percebemos a aproximação do morador local, um roceiro já entrado pela velhice, pele acobreada, magro, baixo, barbas brancas por fazer, roupas, botina e chapéu muito surrados, palheiro de fumo picado no canto da boca. Vinha com semblante que denotava contrariedade e descrença, o mesmo de muitos moradores quando nos viam naquelas inexplicáveis bisbilhotices. Obviamente dois estranhos vindos da cidade, remexendo os barrancos perto de sua propriedade. Cumprimentou-nos:

─ Diiiaaa...

Subitamente arrancados de nosso aparente deslumbramento com aqueles ordinários cascalhos, respondemos de modo que o homem deve ter ficado ainda mais desconfiado:

─ Bom diiaaa...

Tentamos dar prosseguimento ao que fazíamos. Ficamos um tanto constrangidos com ele, acocorado enquanto tragava o palheiro, fixamente a observar nosso indiscutível interesse naqueles cascalhos, que para ele serviam para remediar os barreiros dos caminhos mais usados. Depois de alguma mudez, resolvi puxar conversa, o que fiz com muita presunção:

─ O senhor sabe de onde vêm estes cascalhos?

Ele ainda pensou por uns instantes, olhou para os lados como se a confirmar que tudo estava como ele sempre vira até a véspera:

─ Ói moço, tô aqui tem mais de cinquenta anos com minha família, e meu pai e avô mais que isso antes de mim. Essas pedra sempre tiveram aí. Não vieram de lugar nenhum, não.

─ Mas são pedras de rio. Um dia o rio passou por aqui onde estamos.

O semblante do roceiro encheu-se de confiança, sabedoria, certeza, galhofa e malícia. Ele riu para dentro, em respeito, creio, ao fato de sermos desconhecidos e de estarmos fazendo anotações escritas em cadernetas, tirando fotos e colhendo amostras. Tudo aquilo deve ter-lhe parecido que se tratava de um trabalho sério, e não de um desatino qualquer. Após refletir por algum tempo, respondeu:

─ Um dia um rio passou por aqui! ─ Cuspiu de lado. ─ Lhe digo, moço, nunca ninguém viu isso. E se tivesse visto, nem diria, avexado. Decerto iam dizer que tava maluco. Aí vem ôceis da cidade, escrevem isso, ôtros vão lê, nunca vieram aqui. Vão pensá que é verdade. Num é mais fácil dizê que tão percurando oro? Ói, já passaram por aqui os homi da companhia, carregaram amostra, analisaram. Mas não acharam nada não, viu?

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A vaca olhando a lua

 

Já viram uma vaca olhando a lua? Não? Acho que também não vi! Ou, se vi, não percebi. Melhor assim. Podemos então divagar com mais liberdade idealizando esta bela imagem. Mas imagino a cena: durante a noite, a vaca com as patas dobradas e o peso do corpanzil placidamente apoiado no relvado macio, o pescoção elegantemente contorcido para trás, ela encantada com o enorme disco de prata alteando-se no horizonte, pulverizando a paisagem campestre com aquele luminoso polvilho argento.

Uma cena cheia de significados. O início de noite enluarado no campo já é algo a inspirar armistício e devaneio. A vaca, um bicho pacífico, herbívoro, sereno, símbolo sagrado de paz e fertilidade no Oriente. Um dia, num futuro imprevisível, ainda nos penitenciaremos por incluirmos em nossa dieta alimentos que não sejam os vegetais e grãos que a natureza tão generosamente nos oferece. Ainda haveremos de compreender que a mesma superfície de terreno que usamos para apascentar umas poucas reses poderia nos conceder uma quantidade imensamente maior de alimento vegetal, mais saudável e com menor corrosão do solo e da alma.

A vaca repousada sobre o terreno, mansa na sua animalidade, com o pescoção sem nenhum excesso vigorosamente contorcido e o olhar embevecido observando nosso indecifrável satélite, deve inspirar-nos poesia e desafetação. Mesmo a rês, tida por nós como ignara, enleva-se fitando a grandeza e a beleza do firmamento. A lua está além de nosso planeta, de nossa realidade terrena, de nossa tacanha avareza mundana. A lua é parte do céu, o início do infindável. Como fica a natureza bovina perante tal grandeza? E quem somos nós, pretensiosos seres humanos, perante a grandeza da lua, do universo, o despojamento da vaca?

Um dos exercícios da prática chinesa do Tai-Chi Chuan tem justamente o nome de “a vaca olhando a lua”. Outro nome para o mesmo exercício é “olhando para trás e deixando para trás”. Deixando o quê para trás? Dizem que as preocupações, as angústias, os rancores, a tristeza, os arrependimentos, a ansiedade, a inveja, a raiva... Tudo aquilo que não nos ajuda em nossa caminhada, ao contrário, só faz sobrecarregar-nos de pesos, totalmente inúteis, desnecessários.

A vaca olhando a lua parece estar encarnando bem isso: a leveza da despreocupação, da confiança, a temperança da humildade e da bondade, o firme pé no chão que para os chineses é representado pelo elemento terra, aliás, o mesmo que, no horóscopo ocidental, corresponde ao signo de Touro. Alguém já viu uma vaca disputando com outra uma touceira de capim? Nunca vi. Mas já vi muitos homens brigando por alguma inutilidade, ou por algo cujo valor só existe nas fantasias e ilusões das artificiais convenções que nos deleitamos em inventar.

Tão humano que sou, invejo a vaca olhando a lua. Ela se basta, e, no entanto, sonha com o universo.


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Livros na fogueira

  Publicado no Jornal da Manhã em 03/10/2020.

Não faz muito que uso celular. Não gosto do exagero com que se abusa das ditas mídias sociais, procuro usá-las o menos possível. Ainda assim, recebo muita coisa que me faz pensar que estamos regredindo na capacidade de nos comunicarmos, de forma inversa ao prodigioso avanço na tecnologia de comunicação. Ou seria tecnologia de doutrinação?

Recebi um vídeo no qual uma encanecida senhorinha, com ares de uma bondosa avozinha, junto com o senhorinho queimavam livros de Paulo Coelho na churrasqueira. Ela não estava para as ternuras das vovós. Estava enraivecida. Com palavrões indizíveis diante de netos ofendia o autor dos livros, acusando-o de canalha, comunista, petista que fala mal do Brasil e pede para boicotarem os produtos do país. A furiosa avozinha dizia ter lido já dez livros do Bruxo, enquanto, arrancando as páginas de um deles, ia jogando-as sobre as labaredas e desfiando seu rosário de imprecações. E finaliza esconjurando o autor para o inferno.

Nunca curti Paulo Coelho. Li o primeiro livro, para não encompridar motivos, digo que não gostei do estilo, não gosto do gênero. Como diria uma estimada e saudosa amiga ─ Gosto não se discute; se lamenta! ─ Não vi o que ele andou falando para enfurecer tanto a senhorinha, mas suspeito que se o Capiroto tiver que escolher entre o autor e o casal de incendiários avós para ter a seu lado lá nas profundezas, não vai ter dúvida. Pobres avós, parece que chegaram à velhice sem que a vida tenha-lhes acrescentado sabedoria e bondade. E suspeito que na verdade o Bruxo não falou mal do Brasil, nem dos brasileiros. Deve, sim, ter dito diabruras do irresponsável desgoverno que anda arruinando o país.

Mas que vídeo intrigante, incita à reflexão! O que teria feito o casal de velhinhos passar a odiar tanto o antes apreciado escritor? Paulo Coelho não é a primeira celebridade brasileira fustigada pela ira de antes supostos pacíficos cidadãos. Junto com ele estão Chico Buarque, Paulo Freire, Marilena Chauí e tantos outros. O que anda acontecendo? A senhorinha do vídeo incendiário diz ter lido dez livros do Bruxo. Por certo viu algo de proveitoso. O que a teria feito mudar de opinião tão radicalmente?

É possível que nossa opinião nunca antes tenha estado tão à mercê da tecnologia de informação que sabidamente nos manipula, nos doutrina. Se alguém ainda duvida disso, veja o documentário “O dilema das redes” (2020, direção de Jeff Orlowski), que revela como nossas escolhas têm sido governadas pelos onipresentes sistemas de controle da informação. Deixamos de ser usuários ou consumidores, passamos a ser o produto que é oferecido aos verdadeiros consumidores: os fazedores de opinião.

O casal incendiário gostava do Paulo Coelho, leu dez livros dele. Mas o autor passou a receber deles os qualificativos de canalha, f.d.p. e outras baixarias. E, no dizer dos idosos, é um comunista, petista, que deveria mudar-se para Cuba, Venezuela ou a China, e não viver no bem-bom da Suíça.

Trata-se de uma revisão de entendimentos, que vem com a acrescentada sabedoria da velhice? Não me parece. O que tem mudado nas últimas décadas é o poder de manipulação das tecnologias midiáticas. Até idosos com gostos consolidados mudam suas convicções, e queimam na fogueira as referências anteriores. Talvez não tenham aprendido nada com elas? Queimar livros é um histórico símbolo de incompreensão e retrocesso obscurantista.

O que mais preocupa é constatar como somos vulneráveis à manipulação. Não soubemos controlar as tecnologias de informação. Então estamos sendo controlados por elas.

sábado, 19 de setembro de 2020

Ideologia ou hegemonia?

  

Há mais de dois séculos a humanidade vem se polarizando, dizem alguns que a polarização é ideológica: direita x esquerda, marxismo x liberalismo, socialismo x capitalismo, individualismo x comunismo e outros muitos rótulos. Esses rótulos têm sido enfaticamente repetidos e distorcidos, até que a população em geral ou não conheça mais seu verdadeiro significado, ou desenvolva em relação a eles um amor ou um ódio irracional.

A polarização supostamente ideológica encontrou sempre seu correspondente nos blocos econômicos: durante a guerra fria eram os “aliados” contra o bloco da Cortina de Ferro, atualmente é o Ocidente contra a emergente China e seus satélites. E nós, no Ocidente, sempre aprendemos que estamos sob ameaça da expansão do comunismo, identificado tanto com a União Soviética e a Cortina de Ferro quanto com a China e seus satélites.

Convém refletir sobre o real significado da polarização, já que ela muitas vezes leva países inteiros a guerras civis fratricidas por divergências de convicção. Talvez estas guerras fratricidas sejam já um objetivo conquistado por aqueles que manipulam e exacerbam a polarização: a concretização do princípio “dividir para conquistar”.

Terminada a Segunda Guerra Mundial os EUA difundiram pelas Américas o medo que no Brasil denominou-se a Doutrina de Segurança Nacional. O perigo iminente a ser combatido: o pensamento identificado com o outro grande vencedor (a um custo incomparavelmente mais caro) da guerra mundial: a União Soviética. Comunismo, marxismo, leninismo, socialismo passaram, para muitos brasileiros, a serem sinônimos de tirania, de crueldade, do mal maior, a ser evitado a qualquer custo, ainda que este custo seja a liberdade, a legalidade, a independência. A Doutrina de Segurança Nacional foi o pretexto para as ditaduras militares na América Latina, incluindo o Brasil.

Os dados históricos, entretanto, parecem revelar outros motivos para as radicalizações semeadas mundo afora. Nelas sempre se confundem as razões ideológicas, manifestas, e as econômicas, acobertadas. Não é isso que nos diz a aliança EUA e Iraque contra o Irã, depois a invasão do Iraque por causa das supostas, e inexistentes, armas de destruição em massa? A verdadeira razão dos conflitos sempre foi o petróleo, o Iraque tornou-se inimigo quando ameaçou exigir autonomia na comercialização de sua produção da maior fonte de energia do mundo atual. É essa fonte de energia, da qual os EUA carecem, que move os principais conflitos mundiais das últimas décadas, junto com os minérios estratégicos. Afeganistão, Irã-Iraque, Ucrânia, Líbia, Síria, Venezuela, Brasil e muitos outros, são guerras, crises e golpes cuja real razão é o controle das matérias-primas estratégicas.

As sofisticadas tecnologias midiáticas conseguem fazer o povo simples acreditar que assume posições ideológicas, na verdade está sendo manipulado para assumir posturas a favor da hegemonia econômica do grande ganhador da Segunda Guerra Mundial que pouco sofreu com ela, saiu-se como o grande credor da reconstrução da Europa, e temido após a demonstração de força dos maiores atos terroristas da História, o extermínio da população civil de Hiroshima e Nagasaki.

A suposta polarização ideológica serve a vários propósitos. Os dois principais talvez sejam a difusão do ódio fratricida, o “dividir para conquistar”, e a ocultação de que os conflitos visam, na verdade, a hegemonia econômica dos EUA sobre o planeta.

Às custas da submissão incondicional de seus vassalos.