Seu Vitorino matutava sobre as pandemias. Já
era a terceira a assolar a humanidade num intervalo de cinco anos. A primeira,
diziam ter começado num inextricável mercado popular do interior da China,
graças a hábitos alimentares bizarros, incluindo o consumo de morcegos.
Espalhou-se pelo planeta em poucos meses, graças às viagens aéreas. Ceifou
alguns poucos milhões de vidas, desde o primeiro até o terceiro mundo. Mas em
qualquer dos mundos, tinha suas vítimas preferidas: os mais vulneráveis,
aqueles com a saúde mais debilitada, os mais pobres, os que dependiam do
trabalho diário para o sustento.
Depois de dois anos de seu início, já
existiam vacinas, os hábitos já adaptados a uma convivência mais responsável,
veio o segundo vírus. Este surgiu na Europa, veio dos consagrados escargots.
Ainda mais rápido que a primeira praga, espalhou-se pelo mundo, valendo-se da
mesma forma de contágio: as viagens aéreas dos abastados. Disseminação
acelerada, fez algumas dezenas de milhões de vítimas antes de ser controlada.
Mas ainda era relativamente mansa, acometia os mais vulneráveis ou os mais negacionistas
e negligentes. Tal como na primeira, desenvolveu-se uma vacina, aprendeu-se a
viver com o novo infortúnio.
Então veio a terceira. Surgiu em inúmeros
locais do planeta quase ao mesmo tempo, logo pareceu ser a praga apocalíptica definitiva.
Não se sabia se provinha dos camarões, lagostas, ostras, mariscos, lulas,
peixes, ou de todos eles ao mesmo tempo. Ou de um mero banho de mar. Uma coisa
era certa: viu-se que os focos iniciais sempre coincidiam com promíscuas
aglomerações humanas à beira-mar, fossem na Ásia, na África, na Europa, nas
Américas ou mesmo na insulada Oceania. Os mares pareciam insurgir-se contra a desfaçatez
humana. Das cidades costeiras espalhou-se continentes adentro com a rapidez do
vento. Sua mortalidade, muito maior que nas anteriores, parecia ter uma
seletividade diferente. Não eram só os mais vulneráveis ou incrédulos que
sucumbiam. Parecia estar ligada a uma certa imunidade natural, ou à falta dela,
distribuída imparcialmente entre os seres humanos, independente de raça, idade,
local de moradia, hábitos alimentares, estado de saúde, classe socioeconômica e
mesmo religião, partido político, time de futebol, sexo ou opção sexual. As
vítimas fatais distribuíam-se equitativamente. Após o primeiro ano os óbitos já
ultrapassavam em muito os números das duas pragas anteriores.
Seu Vitorino, setenta e cinco anos, morador
de uma cidade pequena a média no interior do Brasil, já tinha vencido as duas
primeiras batalhas. Aposentado, não era forçado a ir à rua com frequência para
as obrigações da sobrevivência. Conseguira manter protocolos de isolamento dentro
e fora da família, até que as vacinas fossem disponibilizadas. Idoso, ele fora
considerado grupo de risco, um dos primeiros a ser vacinado. Mas agora as coisas
pareciam estar mudando. Um implacável e desumano pragmatismo estava
prevalecendo sobre a precedente solidariedade. Embora as vacinas fossem eficazes,
sua produção estava muito mais onerosa e reduzida. Cada vez tinham-se menos doses.
E as vítimas não eram mais principalmente os vulneráveis, espalhavam-se por toda
a população. Outros critérios teriam de ser adotados para estabelecer quem
seria vacinado primeiro. Não demorou, constatou-se que aqueles que não eram
prioridade restariam à própria sorte ou azar, fossem ou não imunes ao novo
fatídico vírus.
Seu Vitorino permanecia conectado ao mundo,
via as notícias pelo celular e o velho mas fiel laptop. Julgava que os
repetidos flagelos não eram fortuitos: tinham motivos óbvios, tinhosamente negaceados
ao longo de décadas. Acompanhava os números diários de novas infecções, óbitos,
casos recuperados, vacinados e quantidade de vacinas disponíveis. Todo dia eram
informados os locais de vacinação, e os grupos que estavam sendo imunizados.
Ele estava no grupo dos septuagenários aposentados. Esse grupo nunca era
chamado, parecia até ter sido esquecido. As chamadas tinham ido até os
sexagenários ativos, mas não alcançaram nem os sessentões aposentados. Que dirá
os setentões?
O velho Vitorino procurava adaptar-se àquela
sombria realidade. Esperava. E cismava. Parecia-lhe que a natureza estava a dar
um jeito de igualar a espécie humana aos demais viventes do planeta. Em qual
outra espécie um incapaz e improdutivo é tolerado e sobrevive? Afinal, qual a
diferença entre um idoso e um elefante que já não é capaz de acompanhar a
manada nas obrigatórias migrações?
Seu Vitorino chegava a pensar que esse era o
dilema a ser resolvido pela humanidade: qual a diferença entre o homem e o
elefante? A saída de tal dilema selaria o devir.
Mário, no início pensei no ‘cemitério de elefantes’ de Dalton Trevisan, mas esse
ResponderExcluirdilema é mais sério.
Gerôncio
Marlene Castanho
ResponderExcluirDiante a todo esse arsenal pandemico ao qual fomos expostos, não seria "normal" que ficassemos indiferentes... Seu Vitorino, independente da idade, estamos no mesmo barco...
O tema é da hora, o texto é leve: uma incursão muito bem esquematizada sobre o assunto... Parabéns, Prof Mário!
Tomara que não a gente depois de velho, não tenha que se recolher para morrer sozinho.
ResponderExcluirMario, um texto que flerta com a ficção cientifica e com a profundidade de um filosofo, um sociólogo, um humanista enfim. Vivemos momentos decisivos na vida do planeta, Mas se estamos aqui, existe um propósito. Eu acredito nisso.
ResponderExcluirabs.