terça-feira, 13 de julho de 2021

Cuba resiste!

Texto de autoria de Frei Betto, extraído de https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Cuba-resiste-/6/51055, onde foi publicado em 13/07/2021. Ocasionalmente postamos no Perrengas Princesinas textos considerados fundamentais, por seu conteúdo e pela pertinência frente à conjuntura.

Poucos ignoram minha solidariedade à Revolução Cubana. Há 40 anos visito com frequência a Ilha, em função de compromissos de trabalho e convites a eventos. Por longo período intermediei a retomada do diálogo entre bispos católicos e o governo de Cuba, conforme descrito em meus livros "Fidel e a religião" (Fontanar/Companhia das Letras) e "Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista" (Rocco). Atualmente, contratado pela FAO, assessoro o governo cubano na implementação do Plano de Soberania Alimentar e Educação Nutricional.


Conheço em detalhes o cotidiano cubano, inclusive as dificuldades enfrentadas pela população, os questionamentos à Revolução, as críticas de intelectuais e artistas do país. Visitei cárceres, conversei com opositores da Revolução, convivi com sacerdotes e leigos cubanos avessos ao socialismo.


Quando dizem a mim, um brasileiro, que em Cuba não há democracia, desço da abstração das palavras à realidade. Quantas fotos ou notícias foram ou são vistos sobre cubanos na miséria, mendigos espalhados nas calçadas, crianças abandonadas nas ruas, famílias debaixo de viadutos? Algo semelhante à cracolândia, às milícias, às longas filas de enfermos aguardando anos para serem atendidos num hospital?


Advirto os amigos: se você é rico no Brasil e for viver em Cuba conhecerá o inferno. Ficará impossibilitado de trocar de carro todo ano, comprar roupas de grife, viajar com frequência para férias no exterior. E, sobretudo, não poderá explorar o trabalho alheio, manter seus empregados na ignorância, "orgulhar-se" da Maria, sua cozinheira há 20 anos, e a quem você nega acesso à casa própria, à escolaridade e ao plano de saúde.


Se você é classe média, prepare-se para conhecer o purgatório. Embora Cuba já não seja uma sociedade estatizada, a burocracia perdura, há que ter paciência nas filas dos mercados, muitos produtos disponíveis neste mês podem não ser encontrados no próximo devido às inconstâncias das importações.


Se você, porém, é assalariado, pobre, sem-teto ou sem-terra, prepare-se para conhecer o paraíso. A Revolução assegurará seus três direitos humanos fundamentais: alimentação, saúde e educação, além de moradia e trabalho. Pode ser que você tenha muito apetite por não comer o que gosta, mas jamais terá fome. Sua família terá escolaridade e assistência de saúde, incluindo cirurgias complexas, totalmente gratuitas, como dever do Estado e direito do cidadão.


Nada é mais prostituído do que a linguagem. A celebrada democracia nascida na Grécia tem seus méritos, mas é bom lembrar que, na época, Atenas tinha 20 mil habitantes que viviam do trabalho de 400 mil escravos... O que responderia um desses milhares de servos se indagado sobre as virtudes da democracia?


Não desejo ao futuro de Cuba o presente do Brasil, da Guatemala, de Honduras e ou mesmo de Porto Rico, colônia estadunidense, à qual é negada independência. Nem desejo que Cuba invada os EUA e ocupe uma área litorânea da Califórnia, como ocorre com Guantánamo, transformada em centro de torturas e cárcere ilegal de supostos terroristas.


Democracia, no meu conceito, significa o "Pai nosso" - a autoridade legitimada pela vontade popular -, e o "pão nosso" - a partilha dos frutos da natureza e do trabalho humano. A rotatividade eleitoral não faz, nem assegura uma democracia. O Brasil e a Índia, tidas como democracias, são exemplos gritantes de miséria, pobreza, exclusão, opressão e sofrimento.


Só quem conhece a realidade de Cuba anterior a 1959 sabe por que Fidel contou com tanto apoio popular para levar a Revolução à vitória. O país era conhecido pela alcunha de "prostíbulo do Caribe". A máfia dominava os bancos e o turismo (há vários filmes sobre isso). O principal bairro de Havana, ainda hoje chamado de Vedado, tem esse nome porque, ali, os negros não podiam circular...


Os EUA nunca se conformaram por ter perdido Cuba sujeita às suas ambições. Por isso, logo após a vitória dos guerrilheiros de Sierra Maestra, tentaram invadir a Ilha com tropas mercenárias. Foram derrotados em abril de 1961. No ano seguinte, o presidente Kennedy decretou o bloqueio a Cuba, que perdura até hoje.


Cuba é uma ilha com poucos recursos. É obrigada a importar mais de 60% dos produtos essenciais ao país. Com o arrocho do bloqueio promovido por Trump (243 novas medidas e, até agora, não removidas por Biden), e a pandemia, que zerou uma das principais fontes de recursos do país, o turismo, a situação interna se agravou. Os cubanos tiveram que apertar os cintos. Então, os insatisfeitos com a Revolução, que gravitam na órbita do "sonho americano", promoveram os protestos do domingo, 11 de julho – com a "solidária" ajuda da CIA, cujo chefe acaba de fazer um giro pelo Continente, preocupado com o resultado das eleições no Peru e no Chile.


Quem melhor pode explicar a atual conjuntura de Cuba é seu presidente, Diaz-Canel: "Começou a perseguição financeira, econômica, comercial e energética. Eles (a Casa Branca) querem que se provoque um surto social interno em Cuba para convocar "missões humanitárias" que se traduzem em invasões e interferências militares."


"Temos sido honestos, temos sido transparentes, temos sido claros e, a cada momento, explicamos ao nosso povo as complexidades dos dias atuais. Lembro que há mais de um ano e meio, quando começou o segundo semestre de 2019, tivemos que explicar que estávamos em situação difícil. Os EUA começaram a intensificar uma série de medidas restritivas, endurecimento do bloqueio, perseguições financeiras contra o setor energético, com o objetivo de sufocar nossa economia. Isso provocaria a desejada eclosão social massiva, para poder apelar à intervenção "humanitária", que terminaria em intervenções militares".


"Essa situação continuou, depois vieram as 243 medidas (de Trump, para arrochar o bloqueio) que todos conhecemos e, finalmente, decidiu-se incluir Cuba na lista de países patrocinadores do terrorismo. Todas essas restrições levaram o país a cortar imediatamente várias fontes de receita em divisas, como o turismo, as viagens de cubano-americanos ao nosso país e as remessas de dinheiro. Formou-se um plano para desacreditar as brigadas médicas cubanas e as colaborações solidárias de Cuba, que recebeu uma parte importante de divisas por essa colaboração."


"Toda essa situação gerou uma situação de escassez no país, principalmente de alimentos, medicamentos, matérias-primas e insumos para podermos desenvolver nossos processos econômicos e produtivos que, ao mesmo tempo, contribuam para as exportações. Dois elementos importantes são eliminados: a capacidade de exportar e a capacidade de investir recursos."


"Também temos limitações de combustíveis e peças sobressalentes, e tudo isso tem causado um nível de insatisfação, somado a problemas acumulados que temos sido capazes de resolver e que vieram do Período Especial (1990-1995, quando desabou a União Soviética, com grave reflexo na economia cubana). Juntamente com uma feroz campanha mediática de descrédito, como parte da guerra não convencional, que tenta fraturar a unidade entre o partido, o Estado e o povo; e pretende qualificar o governo como insuficiente e incapaz de proporcionar bem-estar ao povo cubano."


"O exemplo da Revolução Cubana incomodou muito os EUA durante 60 anos. Eles aplicaram um bloqueio injusto, criminoso e cruel, agora intensificado na pandemia. Bloqueio e ações restritivas que nunca realizaram contra nenhum outro país, nem contra aqueles que consideram seus principais inimigos. Portanto, tem sido uma política perversa contra uma pequena ilha que apenas aspira a defender sua independência, sua soberania e construir a sua sociedade com autodeterminação, segundo princípios que mais de 86% da população têm apoiado."


"Em meio a essas condições, surge a pandemia, uma pandemia que afetou não apenas Cuba, mas o mundo inteiro, inclusive os Estados Unidos. Afetou países ricos, e é preciso dizer que diante dessa pandemia nem os Estados Unidos, nem esses países ricos tiveram toda a capacidade de enfrentar seus efeitos. Os pobres foram prejudicados, porque não existem políticas públicas dirigidas ao povo, e há indicadores em relação ao enfrentamento da pandemia com resultados piores que os de Cuba em muitos casos. As taxas de infecção e mortalidade por milhão de habitantes são notavelmente mais altas nos EUA que em Cuba (os EUA registraram 1.724 mortes por milhão, enquanto Cuba está em 47 mortes por milhão). Enquanto os EUA se entrincheiravam no nacionalismo vacinal, a Brigada Henry Reeve, de médicos cubanos, continuou seu trabalho entre os povos mais pobres do mundo (por isso, é claro, merece o Prêmio Nobel da Paz)."


"Sem a possibilidade de invadir Cuba com êxito, os EUA persistem com um bloqueio rígido. Após a queda da URSS, que proporcionou à ilha meios de contornar o bloqueio, os EUA tentaram aumentar seu controle sobre o país caribenho. De 1992 em diante, a Assembleia Geral da ONU votou esmagadoramente pelo fim desse bloqueio. O governo cubano informou que entre abril de 2019 e março de 2020 Cuba perdeu 5 bilhões de dólares em comércio potencial devido ao bloqueio; nas últimas quase seis décadas, perdeu o equivalente a 144 bilhões de dólares. Agora, o governo estadunidense aprofundou as sanções contra as companhias de navegação que trazem petróleo para a ilha."


É essa fragilidade que abre um flanco para as manifestações de descontentamento, sem que o governo tenha colocado tanques e tropas nas ruas. A resiliência do povo cubano, nutrida por exemplos como Martí, Che Guevara e Fidel, tem se demonstrado invencível. E a ela devemos, todos nós, que lutamos por um mundo mais justo, prestar solidariedade.


Frei Betto é escritor (freibetto.org). Assine e receba todos os artigos e livros do autor: mhgpal@gmail.com

quarta-feira, 7 de julho de 2021

A árvore insurgente

 

Tarde de sábado de início de inverno. Faz frio! O país mergulhado numa torrente de denúncias afrontosas, a pandemia ainda nos confinando e nos assustando. Do balanço destas circunstâncias, a complicada convocação: participar de uma manifestação pública, de repúdio a tudo que tem sido apontado como causa de sermos os campeões mundiais de ignorância, de humilhação e de premeditada negligência com a pandemia. Um calculado genocídio, regado a assíduas bravatas.

Ponderados prós e contras, apesar de Ponta Grossa ser sabidamente a cidade da oligarquia provinciana, conservadora, herdeira das sesmarias e saudosa da escravatura e da monarquia, lá fui eu para o ato público. Ciente da dificuldade de por aqui se conseguir reunir vozes progressistas à altura do que o momento clama. Talvez mais desejoso de saber que, embora poucos, ainda existem camaradas, do que de engrossar com minha presença o protesto. Como se esperava, mal compareceu o número de inconformados suficiente para conseguir preencher, com o devido distanciamento dos protocolos de saúde, dois quarteirões da avenida que é o centro nervoso da cidade, a Vicente Machado. Esses resistentes, após falas de incentivo e de desagravo dos representantes de entidades e de alguns demagogos que sempre comparecem às multidões, partiram em marcha, desde a Igreja dos Polacos e ao longo da Vicente Machado, rumo ao Terminal Central. O inconformismo tinha que ser exibido, a população da cidade tinha que saber que, embora minoria, em Ponta Grossa também existe gente que pensa como os milhões que, no mesmo instante, manifestavam-se em outras cidades do país.

A marcha pela Vicente Machado foi de uma surpreendente organização. Ciclistas e militantes pedestres, estes sustentando largas faixas contestadoras, interrompiam o tráfego das transversais enquanto a pequena multidão, umas poucas centenas de abnegados, avançava lentamente, em quatro filas indianas, espaçadas de dois metros. Em cada fila também se mantinha o afastamento preconizado pelos protocolos de saúde. Todos, sem exceção, com máscaras, as mãos higienizadas com o álcool que era oferecido por voluntários e voluntárias que circulavam entre os caminhantes. Alto-falantes instalados em dois veículos, um à frente e outro ao final da marcha, iam entoando orientações e palavras de ordem que ecoavam nos gritos dos entusiasmados manifestantes. Nas calçadas e nas janelas, funcionários das lojas e moradores vinham curiosos observar aquele barulhento bando de rebeldes que ousavam atrapalhar o trânsito e subverter o que era para ser uma distraída tarde de sábado.

De repente percebi que caminhava pelo asfalto da Vicente Machado! Um percurso usualmente interditado aos pedestres, facultado somente aos veículos. Foi preciso um desgoverno para permitir-me vivenciar uma experiência não autorizada a um ser humano, num território da cidade destinado somente às máquinas. Debaixo de meus pés via o asfalto negro, faixas de tinta da sinalização de tráfego e, ocasionalmente, grades metálicas, lustrosas pelo atrito com os pneus, colocadas sobre trincheiras de acesso ao labirinto de dutos e cabos, oculto nos subterrâneos da cidade que está ao alcance de nossos olhos.

Numa dessas grades metálicas, uma surpresa: entre as prateadas barras de ferro, brilhosas do atrito da borracha galvanizada, enxerguei o verde das folhas de galhos de uma árvore. Sim, uma árvore, viva! Que pude identificar a custo, crescida no fundo da trincheira pelo milagre da perseverança de uma semente que engendrou onde germinar e prosperar, num lugar supostamente destinado apenas ao concreto e ao asfalto. Uma árvore lutadora. Sim, pois se ela não logrou alcançar seu lugar ao sol, batalha sem cessar para isso, e contagia com seu exemplo de resiliência e perseverança os privilegiados que chegam a percebê-la, como eu. Ela logrou crescer os dois metros de altura da trincheira onde vingou. A grade no alto de sua sufocada fronde e o rolar dos pneus amputam-lhe as tentativas de crescimento para acima do subsolo. O dossel daquela prisioneira é diuturnamente aparado por uma superfície plana, que é a superfície onde rolam os carros e ônibus. Ela vê o sol e cresce alguns milímetros, para logo ser de novo esmagada e ceifada pelo trânsito, que sequer sabe de sua confinada e reprimida existência.

Não pude deixar de enxergar no verde das folhas daquela árvore o verde da bandeira do Brasil. Aquela marcha de protesto que me revelava a existência daquela sobrevivente enclausurada sob a grade, ofertava-me também a metáfora de nosso país: germinado na aridez do colonialismo extrativista, do massacre dos nativos e da escravidão, e amputado no seu sonho de liberdade, soberania e prosperidade pelo perverso jugo das potências do norte, que se sucedem na voraz exploração do planeta.

Fiquei com a impressão que ali, fincada imóvel abaixo da grade de ferro e da superfície do asfalto, no subterrâneo da Vicente Machado, a marcha de contestação tinha uma adepta cativa, que nunca pudéramos antes suspeitar.

sábado, 3 de julho de 2021

Negacionismo e negacionistas

 

Negacionismo seria a negação daquilo que já é aceito como verdade pela maioria das pessoas, sejam cientistas ou não. Exemplos: a Terra é plana, o aquecimento global não existe ou é natural e não causado pelos humanos, as vacinas não servem para nada, o coronavírus não existe, o “kit-Covid” é eficaz contra o vírus. Há outros negacionismos menos evidentes. Um exemplo: a escandalosa acumulação desigual de riqueza e exploração do ser humano pelo ser humano não traz sequelas igualmente escandalosas, para o planeta e para toda a humanidade, inclusive os que aparentemente são os beneficiados primeiros deste escândalo.

O negacionismo muitas vezes tem uma razão bem objetiva: uma estratégia para confundir oponentes, para negar a própria irresponsabilidade ou incapacidade de lidar com crises, desastres climáticos e sanitários, para ter privilégios num conflito de interesses, são alguns exemplos. Nestes casos, a suposta vantagem individual concreta ─ a projeção política, o ganho monetário, a isenção de culpa ─, move o negacionismo. Mas talvez a maioria dos negacionistas abrace negacionismos sem uma razão objetiva.

Quantas pessoas tiram proveito real da obstinada crença do terraplanismo? Algumas tiram sim! O documentário A Terra é plana (direção de Daniel J. Clark, 2019) mostra quem são os líderes do movimento Terra Plana nos EUA (Flat Earth Society). São egocêntricos narcisistas que encontraram no tema um mote que os mantém em histriônica evidência perante um exército de seguidores, justifica concorridos eventos e a comercialização de muitos produtos pelos embevecidos aficionados. Esta é a banda venal dos grupos de negacionistas: são os oportunistas que tiram proveito financeiro e midiático das negações e de seus deslumbrados admiradores, os quais parecem procurar preencher existências vazias com o enganador propósito da militância a favor de crenças que contam com aguerridos defensores e opositores.

O negacionista só escuta a si mesmo. Suas conversas não são diálogos: são grotescos e agressivos monólogos. São pessoas tão herméticas que se tornam incapazes de aprender algo novo. E assim revoltam-se com o conhecimento, a ciência, a educação, as artes, os cientistas, os educadores, os artistas.

O mais lamentável do negacionismo e do negacionista é que talvez todos nós sejamos pelo menos um pouco negacionistas, praticantes em algum nível de algum tipo de negacionismo. Como tantos distúrbios que afetam o comportamento do ser humano, ser considerado negacionista ou não é uma questão de grau; e separar graus para dizer quem é ou não de fato um negacionista é de uma artificialidade que não se pode disfarçar. Mas, como em toda patologia, há os casos recuperáveis e os incuráveis.

O negacionismo e o negacionista representam bem certos atributos marcantes sempre presentes no ser humano: dominado pelo ego, vaidoso, teimoso, acomodado, desconhecedor da realidade, ambicioso, truculento. Todos temos estas qualidades em nós, em intensidades variáveis. Se quisermos fazer jus à autodenominação de animais racionais, temos que, em alguma medida, confrontar estas qualidades primitivas com outras mais evoluídas. Conhecer nossa própria natureza e imperfeições, compreender o mundo que nos cerca, ter humildade e honestidade para reconhecer erros e desconhecimentos, ter desprendimento para aprender e mudar, interagir com o outro e com a natureza, trocando aprendizados. Enfim, prosperar em humanidade.

O negacionista não passa de um egocêntrico doentio. Será que conseguiremos transformar tal egocêntrico num indivíduo capaz de aceitar, e eventualmente de mudar?