quarta-feira, 7 de julho de 2021

A árvore insurgente

 

Tarde de sábado de início de inverno. Faz frio! O país mergulhado numa torrente de denúncias afrontosas, a pandemia ainda nos confinando e nos assustando. Do balanço destas circunstâncias, a complicada convocação: participar de uma manifestação pública, de repúdio a tudo que tem sido apontado como causa de sermos os campeões mundiais de ignorância, de humilhação e de premeditada negligência com a pandemia. Um calculado genocídio, regado a assíduas bravatas.

Ponderados prós e contras, apesar de Ponta Grossa ser sabidamente a cidade da oligarquia provinciana, conservadora, herdeira das sesmarias e saudosa da escravatura e da monarquia, lá fui eu para o ato público. Ciente da dificuldade de por aqui se conseguir reunir vozes progressistas à altura do que o momento clama. Talvez mais desejoso de saber que, embora poucos, ainda existem camaradas, do que de engrossar com minha presença o protesto. Como se esperava, mal compareceu o número de inconformados suficiente para conseguir preencher, com o devido distanciamento dos protocolos de saúde, dois quarteirões da avenida que é o centro nervoso da cidade, a Vicente Machado. Esses resistentes, após falas de incentivo e de desagravo dos representantes de entidades e de alguns demagogos que sempre comparecem às multidões, partiram em marcha, desde a Igreja dos Polacos e ao longo da Vicente Machado, rumo ao Terminal Central. O inconformismo tinha que ser exibido, a população da cidade tinha que saber que, embora minoria, em Ponta Grossa também existe gente que pensa como os milhões que, no mesmo instante, manifestavam-se em outras cidades do país.

A marcha pela Vicente Machado foi de uma surpreendente organização. Ciclistas e militantes pedestres, estes sustentando largas faixas contestadoras, interrompiam o tráfego das transversais enquanto a pequena multidão, umas poucas centenas de abnegados, avançava lentamente, em quatro filas indianas, espaçadas de dois metros. Em cada fila também se mantinha o afastamento preconizado pelos protocolos de saúde. Todos, sem exceção, com máscaras, as mãos higienizadas com o álcool que era oferecido por voluntários e voluntárias que circulavam entre os caminhantes. Alto-falantes instalados em dois veículos, um à frente e outro ao final da marcha, iam entoando orientações e palavras de ordem que ecoavam nos gritos dos entusiasmados manifestantes. Nas calçadas e nas janelas, funcionários das lojas e moradores vinham curiosos observar aquele barulhento bando de rebeldes que ousavam atrapalhar o trânsito e subverter o que era para ser uma distraída tarde de sábado.

De repente percebi que caminhava pelo asfalto da Vicente Machado! Um percurso usualmente interditado aos pedestres, facultado somente aos veículos. Foi preciso um desgoverno para permitir-me vivenciar uma experiência não autorizada a um ser humano, num território da cidade destinado somente às máquinas. Debaixo de meus pés via o asfalto negro, faixas de tinta da sinalização de tráfego e, ocasionalmente, grades metálicas, lustrosas pelo atrito com os pneus, colocadas sobre trincheiras de acesso ao labirinto de dutos e cabos, oculto nos subterrâneos da cidade que está ao alcance de nossos olhos.

Numa dessas grades metálicas, uma surpresa: entre as prateadas barras de ferro, brilhosas do atrito da borracha galvanizada, enxerguei o verde das folhas de galhos de uma árvore. Sim, uma árvore, viva! Que pude identificar a custo, crescida no fundo da trincheira pelo milagre da perseverança de uma semente que engendrou onde germinar e prosperar, num lugar supostamente destinado apenas ao concreto e ao asfalto. Uma árvore lutadora. Sim, pois se ela não logrou alcançar seu lugar ao sol, batalha sem cessar para isso, e contagia com seu exemplo de resiliência e perseverança os privilegiados que chegam a percebê-la, como eu. Ela logrou crescer os dois metros de altura da trincheira onde vingou. A grade no alto de sua sufocada fronde e o rolar dos pneus amputam-lhe as tentativas de crescimento para acima do subsolo. O dossel daquela prisioneira é diuturnamente aparado por uma superfície plana, que é a superfície onde rolam os carros e ônibus. Ela vê o sol e cresce alguns milímetros, para logo ser de novo esmagada e ceifada pelo trânsito, que sequer sabe de sua confinada e reprimida existência.

Não pude deixar de enxergar no verde das folhas daquela árvore o verde da bandeira do Brasil. Aquela marcha de protesto que me revelava a existência daquela sobrevivente enclausurada sob a grade, ofertava-me também a metáfora de nosso país: germinado na aridez do colonialismo extrativista, do massacre dos nativos e da escravidão, e amputado no seu sonho de liberdade, soberania e prosperidade pelo perverso jugo das potências do norte, que se sucedem na voraz exploração do planeta.

Fiquei com a impressão que ali, fincada imóvel abaixo da grade de ferro e da superfície do asfalto, no subterrâneo da Vicente Machado, a marcha de contestação tinha uma adepta cativa, que nunca pudéramos antes suspeitar.

4 comentários:

  1. Que essa árvore nos dê o exemplo de nunca desistir.

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  2. Muito legal essa metáfora. Adorei

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  3. Me emocionei. A natureza sempre dando exemplos ❤️

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  4. Excelente Mario, vou procurar a árvore entre as grades !!!

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