Tarde de sábado de início de inverno. Faz
frio! O país mergulhado numa torrente de denúncias afrontosas, a pandemia ainda
nos confinando e nos assustando. Do balanço destas circunstâncias, a complicada
convocação: participar de uma manifestação pública, de repúdio a tudo que tem
sido apontado como causa de sermos os campeões mundiais de ignorância, de
humilhação e de premeditada negligência com a pandemia. Um calculado genocídio,
regado a assíduas bravatas.
Ponderados prós e contras, apesar de
Ponta Grossa ser sabidamente a cidade da oligarquia provinciana, conservadora,
herdeira das sesmarias e saudosa da escravatura e da monarquia, lá fui eu para
o ato público. Ciente da dificuldade de por aqui se conseguir reunir vozes
progressistas à altura do que o momento clama. Talvez mais desejoso de saber
que, embora poucos, ainda existem camaradas, do que de engrossar com minha
presença o protesto. Como se esperava, mal compareceu o número de inconformados
suficiente para conseguir preencher, com o devido distanciamento dos protocolos
de saúde, dois quarteirões da avenida que é o centro nervoso da cidade, a
Vicente Machado. Esses resistentes, após falas de incentivo e de desagravo dos
representantes de entidades e de alguns demagogos que sempre comparecem às
multidões, partiram em marcha, desde a Igreja dos Polacos e ao longo da Vicente
Machado, rumo ao Terminal Central. O inconformismo tinha que ser exibido, a
população da cidade tinha que saber que, embora minoria, em Ponta Grossa também
existe gente que pensa como os milhões que, no mesmo instante, manifestavam-se
em outras cidades do país.
A marcha pela Vicente Machado foi de uma
surpreendente organização. Ciclistas e militantes pedestres, estes sustentando
largas faixas contestadoras, interrompiam o tráfego das transversais enquanto a
pequena multidão, umas poucas centenas de abnegados, avançava lentamente, em
quatro filas indianas, espaçadas de dois metros. Em cada fila também se
mantinha o afastamento preconizado pelos protocolos de saúde. Todos, sem
exceção, com máscaras, as mãos higienizadas com o álcool que era oferecido por
voluntários e voluntárias que circulavam entre os caminhantes. Alto-falantes
instalados em dois veículos, um à frente e outro ao final da marcha, iam
entoando orientações e palavras de ordem que ecoavam nos gritos dos
entusiasmados manifestantes. Nas calçadas e nas janelas, funcionários das lojas
e moradores vinham curiosos observar aquele barulhento bando de rebeldes que
ousavam atrapalhar o trânsito e subverter o que era para ser uma distraída
tarde de sábado.
De repente percebi que caminhava pelo
asfalto da Vicente Machado! Um percurso usualmente interditado aos pedestres,
facultado somente aos veículos. Foi preciso um desgoverno para permitir-me
vivenciar uma experiência não autorizada a um ser humano, num território da
cidade destinado somente às máquinas. Debaixo de meus pés via o asfalto negro,
faixas de tinta da sinalização de tráfego e, ocasionalmente, grades metálicas,
lustrosas pelo atrito com os pneus, colocadas sobre trincheiras de acesso ao
labirinto de dutos e cabos, oculto nos subterrâneos da cidade que está ao
alcance de nossos olhos.
Numa dessas grades metálicas, uma
surpresa: entre as prateadas barras de ferro, brilhosas do atrito da borracha
galvanizada, enxerguei o verde das folhas de galhos de uma árvore. Sim, uma
árvore, viva! Que pude identificar a custo, crescida no fundo da trincheira
pelo milagre da perseverança de uma semente que engendrou onde germinar e
prosperar, num lugar supostamente destinado apenas ao concreto e ao asfalto. Uma
árvore lutadora. Sim, pois se ela não logrou alcançar seu lugar ao sol, batalha
sem cessar para isso, e contagia com seu exemplo de resiliência e perseverança os
privilegiados que chegam a percebê-la, como eu. Ela logrou crescer os dois
metros de altura da trincheira onde vingou. A grade no alto de sua sufocada
fronde e o rolar dos pneus amputam-lhe as tentativas de crescimento para acima
do subsolo. O dossel daquela prisioneira é diuturnamente aparado por uma
superfície plana, que é a superfície onde rolam os carros e ônibus. Ela vê o
sol e cresce alguns milímetros, para logo ser de novo esmagada e ceifada pelo
trânsito, que sequer sabe de sua confinada e reprimida existência.
Não pude deixar de enxergar no verde das
folhas daquela árvore o verde da bandeira do Brasil. Aquela marcha de protesto
que me revelava a existência daquela sobrevivente enclausurada sob a grade,
ofertava-me também a metáfora de nosso país: germinado na aridez do
colonialismo extrativista, do massacre dos nativos e da escravidão, e amputado
no seu sonho de liberdade, soberania e prosperidade pelo perverso jugo das
potências do norte, que se sucedem na voraz exploração do planeta.
Fiquei com a impressão que ali, fincada imóvel
abaixo da grade de ferro e da superfície do asfalto, no subterrâneo da Vicente
Machado, a marcha de contestação tinha uma adepta cativa, que nunca pudéramos
antes suspeitar.
Que essa árvore nos dê o exemplo de nunca desistir.
ResponderExcluirMuito legal essa metáfora. Adorei
ResponderExcluirMe emocionei. A natureza sempre dando exemplos ❤️
ResponderExcluirExcelente Mario, vou procurar a árvore entre as grades !!!
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