sábado, 25 de novembro de 2023

Zona Verde – uma paródia do paraíso

 

Zona Verde é o título do filme de 2010 dirigido por Paul Greengrass, com Matt Damon no papel principal. Baseado no livro A Vida Imperial na Cidade Esmeralda, de Rajiv Chandrasekaran, não é um filme de guerra; é um filme sobre a guerra. Nele, não se sabe onde termina o delírio da realidade e começa a ordenação da ficção, necessária para construir a coesão de um roteiro cinematográfico. O autor Rajiv recorreu a muita pesquisa para escrever o livro, que é um premiado retrato da realidade.

O título remete à zona fortemente protegida pelas forças dos EUA no centro de Bagdá, a chamada “Cidade Esmeralda”, durante a invasão do Iraque em 2003. Ali os comandantes militares e agentes da burocracia e da diplomacia do Tio Sam vivem como num país dos sonhos, com festas, piscinas, jardins verdejantes, jogos, centros comerciais, bares e restaurantes, enquanto em volta é o caos e o terror da guerra. É como se ali fosse um pedaço do faz de conta estadunidense, encravado em meio à realidade de um mundo de horror e destruição, dali manobrado.

O filme tem dois personagens principais: de um lado, um suboficial estadunidense com dignidade, caráter e honestidade, e por isso considerado “ingênuo” por superiores; e, de outro lado, uma informação capital para a guerra − a existência de armas de destruição em massa produzidas pelo derrotado governo de Saddam Hussein, que justificariam a invasão e destruição do país.

O suboficial é justamente o líder de uma equipe de combate destinada a vasculhar os locais onde poderiam estar escondidas as armas de destruição em massa. A missão é encontrar tais armas. Quando ele percebe que todos os locais inspecionados são alvos inócuos e se dá conta que sua equipe recebe informações propositadamente mentirosas, começa a verdadeira guerra, em busca da verdade.

Nessa inesperada guerra pela informação verdadeira, o inimigo não é nítido, não veste uniforme, não é único. O filme-livro revela todas as artimanhas utilizadas para justificar as ações diabólicas do Tio Sam no encalço da desordem mundial e do espectro da total dominação. Os personagens envolvidos são então, dentro da Zona Verde, a mídia global, a diplomacia, as agências de informação e segurança; e, fora da Cidade Esmeralda, forças especiais assassinas, mentiras, corrupção, traição, chantagem, extorsão, sequestros, tortura...

O filme é uma daquelas preciosidades que ainda nos fazem ter esperança que Hollywood não seja só uma agência produtora de ilusões e doutrinação: a Sétima Arte ainda é capaz de produzir filmes que denunciam quem promove a barbárie no mundo.

De que maneira todos esses personagens interagem, só mesmo vendo o filme, ou lendo o livro. Um entretenimento revelador.

sábado, 18 de novembro de 2023

O homem é um animal que pensa, e pensa que não é um animal

 

Devo esta frase-título ao estimado amigo de infância Valenz, que já a utilizou para comentar alguns dos textos que escrevo. Que frase mais arguta! E tão oportuna para os tempos atuais que temos vivido, nesta adolescência da civilização em que a tecnologia tem evoluído mais rapidamente do que a capacidade humana de assimilá-la. Bem como o adolescente que já tem todos os atributos do adulto, mas que ainda não sabe que os tem, e muito menos sabe como utilizá-los.

O homem que acredita que já não é um animal remete a outros temas que são essenciais. O primeiro, é o “reflexo condicionado” do laureado Ivan Pavlov. No início do século XX seus estudos mostraram como cães podem ter seu comportamento condicionado por estímulos repetidos, ainda que estes estímulos sejam completamente falsos. Nos anos após a descoberta de Pavlov, ela vem sendo cada vez mais aperfeiçoada e utilizada nos humanos, tanto para o consumo de bens como de ideologias e de reacionários medos. O primeiro momento extraordinário em que isso aconteceu foi durante o fascismo e o nazismo, que tanto endeusaram quanto demonizaram ídolos, povos, raças e crenças.

Um segundo tema essencial é o reconhecimento que nosso cérebro é complexo. Ele guarda ainda toda a ancestralidade animal, desde os répteis e mamíferos primitivos, até a racionalidade do Homo sapiens e a ainda incipiente amorosidade do homem fraterno, no qual os instintos básicos da agressividade e da reprodução passam a ser superados por sentimentos de sociabilidade e solidariedade. Ainda reagimos primeiro como o réptil, cujo único impulso é sobreviver. É vital que a reflexão nos conceda tempo e compreensão para que nosso cérebro mais humanizado possa manifestar-se, e assim controlar o cérebro reptiliano. Caso contrário, não será necessária nenhuma catástrofe natural: a própria humanidade dará conta de extinguir-se, matando-se em guerras fratricidas ou contaminando e exaurindo o planeta.

O terceiro tema, que é o resultado no século XXI dos dois anteriores, é a sofisticada manipulação midiática. Ela usa avançadas tecnologias de desinformação e condicionamento. Diante das aprimoradíssimas possibilidades atuais de comunicação, parecemos o adolescente cujo corpo cresceu rápido demais, e ele ainda se bate e se magoa pelos cantos da casa, por ainda não ter noção do próprio tamanho. Descobrimos que o réptil em nosso cérebro é muito mais receptivo a uma mentira exótica e insidiosa que a uma verdade evidente e emancipadora. Pode-se passar a acreditar que a Terra é plana, que um psicopata pode ser um bom líder, que um povo é o escolhido de Deus, que a solidariedade é uma quimera inalcançável...

Dizem que a humanidade constitui-se de três terços, mais ou menos equivalentes: um que reptilianamente usa a manipulação midiática para predominar e preservar privilégios; outro que acredita na solidariedade e na possibilidade de uma sociedade justa e fraterna, mas debate-se ainda com seus próprios instintos; um terceiro que está a procura de encontrar-se, e que é disputado pelos dois grupos precedentes. Alguns espiritualistas dizem que nós, habitantes da Terra, somos isto mesmo: uma mistura de índoles, na tentativa de que o convívio com o diferente nos faça evoluir.

De volta à frase-título, pensamos, presunçosamente, que não somos animais. Mas somos sim! Todos nós, os supostos três terços que constituem a humanidade. O desafio que temos é encontrar em nós o cérebro fraterno que nos conduzirá à sobrevivência. E logo! Pois o planeta já dá mostras de que não consegue nos suportar.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Para que serve o plano diretor?

 Publicado no Jornal da Manhã em 10/11/2023

O plano diretor de Ponta Grossa, uma cidade média de quase 400 mil habitantes, está sendo atacado por empreendedores locais e os vereadores seus defensores. Alega-se que, tal como estão o código de obras, o zoneamento e o uso do solo, investimentos estão sendo brecados, empregos são perdidos, a prefeitura deixa de arrecadar IPTU.

Para que serve, enfim, o plano diretor? As cidades são uma aglomeração anômala de gente, edificações e atividades. Quanto mais cresce o ajuntamento de gente, ou seja, a população, mais são imprescindíveis as regras que humanizem a convivência de tantas pessoas. Há ainda fatores naturais a serem respeitados. É o caso das cidades ribeirinhas, que têm que aprender a conviver com o mutável humor dos rios. É também o caso de Ponta Grossa, uma cidade que ocupa espigões entre arroios divergentes, com problemas ligados a encostas íngremes, abruptos contrastes de urbanização, abastecimento e saneamento, fundos de vale caóticos, perimetrais e sistema viário muito prejudicados; além de fatores históricos: uma cidade antiga, que cresceu demasiado nas últimas décadas, mas tem ruas muito estreitas. Há quem diga que a cidade é média, tem tráfego de cidade grande, motoristas e ruas de cidade pequena.

O plano diretor destina-se, em tese, a estabelecer normas que melhorem a qualidade de vida da população, tanto mais prejudicada quanto mais populosa for a cidade. Por esse motivo procuramos compensar o estresse provocado pela vida urbana com o lazer na zona rural, ou no contato com o mar, no litoral. O plano diretor não deve se destinar a atender os interesses de incorporadores ou da prefeitura na sua arrecadação de tributos. Se assim fosse, ele estaria sendo desvirtuado de sua função original. Os incorporadores é que devem adaptar-se ao que estabelece o plano diretor. Que projetem, por exemplo, edifícios menores, ou em locais onde não prejudiquem a vizinhança. Não façam dos projetos de enormes edifícios uma competição de egos dos projetistas, ou de lucros das empreiteiras. Grandes edifícios significam empilhar muitas famílias numa área de terreno onde deveriam caber poucas. Esse empilhamento traz problemas de saturação do tráfego, de aumento da poluição, de abastecimento de água e energia, de saneamento, obstrui o sol, interfere na circulação atmosférica, ecoa e aumenta os ruídos urbanos, implica custos de aparelhamento do Corpo de Bombeiros e outros serviços públicos. Por isso é preciso analisar com muito critério a incorporação de grandes edifícios. Não é impedi-la, mas discipliná-la, de modo que os lucros das empreiteiras não signifiquem prejuízo na vida dos moradores.

Querer adaptar o plano diretor aos interesses dos incorporadores e à arrecadação da prefeitura é uma aberração, um atentado ao discernimento. O certo é que os empreendedores e a administração pública respeitem características naturais e históricas da cidade, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população. Se não for assim, será dar prioridade ao lucro, ao dinheiro, e não ao ser humano que habita a cidade. E quanto à geração de empregos, se o plano diretor for cumprido, empreendimentos que o obedeçam continuarão a ser gerados, trabalhadores continuarão a ser necessários.

Que Ponta Grossa, uma cidade em franco crescimento, saiba progredir valorizando o ser humano e a qualidade de vida.


sábado, 4 de novembro de 2023

A Amazônia, as chuvas e o Aterro Botuquara

 Publicado no Jornal da Manhã e no Diário dos Campos em 04/11/2023.

As notícias são paradoxais: verão com temperaturas recordes e incêndios no Hemisfério Norte, inverno sem frio no Hemisfério Sul, seca na Amazônia, chuvas recordes com grandes inundações no sul do Brasil. E há ainda quem teime refutar que estejamos já vivendo as consequências do aquecimento global, provocado pela atividade humana.

Hoje presenciamos o contrassenso da seca na Amazônia e chuvas recordes no Sul. Mas este quadro é só um sintoma passageiro de um desarranjo climático cujas manifestações futuras são imprevisíveis. Amanhã é bem possível que tenhamos seca também no Sul, sobretudo se se agravar a seca na Amazônia. Graças a um arranjo singular na América do Sul, que combina a ação das correntes atmosféricas com a localização da Bacia Amazônica e da Cordilheira dos Andes, temos os “rios voadores”, que trazem a umidade para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Se não fosse esse singular arranjo, seríamos aqui uma área desértica, como são todas as outras regiões do planeta nas mesmas latitudes, seja no Hemisfério Norte ou no Sul.

Muitos pesquisadores têm alertado que os eventos climáticos extremos que temos presenciado, incluindo entre eles os antes desconhecidos e agora comuns ciclones extratropicais que têm afetado o sul do Brasil, são já consequências do aquecimento global. E têm alertado também que a distribuição das chuvas e da água no planeta está sendo drasticamente afetada. E já não é possível evitar estes eventos climáticos extremos. É obrigatório que saibamos nos adaptar a eles. Já passamos da hora da prevenção, chegou a hora da adaptação.

Diante desse quadro, é necessário repensar, ainda com mais prudência que antes, o papel dos reservatórios subterrâneos de água potável, os chamados “aquíferos”. É neles que se situa a maior parte da água doce: no planeta, só 3% da água é doce, 69% da água doce está congelada nos polos, 97% da água doce não congelada está contida nos aquíferos, só 3% é água superficial, de rios e lagos, o que corresponde a 0,009% da água existente na Terra. A conclusão é que, com o desvario do clima induzido pelo aquecimento global, vamos depender cada vez mais da água dos aquíferos.

O que o Aterro Botuquara tem a ver com isso? O Botuquara funcionou como lixão a céu aberto de Ponta Grossa desde a década de 1970 até o início dos anos 2000. O local foi escolhido por ser um terreno da prefeitura, o lixão não cumpria nenhuma norma técnica, nem mesmo a impermeabilização do substrato. E o Botuquara está sobre o Aquífero Furnas, que já abastece, através dos chamados poços artesianos, muitas indústrias, postos de combustíveis, hospitais, escolas, granjas, supermercados, abastecimento público e privado em Ponta Grossa. Estudos realizados com dados de 2010 revelaram que, naquela época, os poços artesianos já podiam atender a mais de 50% da demanda de água da cidade.

Os aquíferos são um enorme reservatório de água de boa qualidade, mas têm um problema: não podem sofrer poluição. Se forem poluídos, a recuperação é inviável. Ou seja, há que zelar pela preservação dos aquíferos, se queremos preservar estratégicas reservas de água potável para o incerto futuro hídrico que se nos apresenta.

Em conclusão, é necessário retirar a montanha de lixo do Aterro Botuquara do local onde se situa hoje, sobre o Aquífero Furnas. Lá, o lixo representa risco enorme de contaminação do aquífero, pela infiltração do chorume. Ameaça agravada com as fortes chuvas que têm caído atualmente.

Há outros locais no município, com rochas e solos impermeáveis, que poderiam servir de depósito mais adequado para o lixo do Botuquara, sem ameaças para o aquífero. Se os administradores não providenciarem esta mudança com urgência, estarão comprometendo a principal reserva de água potável para o futuro da região.