segunda-feira, 13 de abril de 2020

Lições da pandemia

Publicado no Jornal da Manhã em 29/04/2020.

Sonhos projetam a realidade. Que tal sonhar que extraímos as lições da crise que vivemos, acentuada nos últimos meses pela pandemia do coronavírus? Mas vale ressaltar que a pandemia parece ser só o clímax de uma crise da nossa civilização que vem se arrastando há décadas, com as tragédias ambientais e o aquecimento global (desde meados do Século XX), as guerras de recursos como petróleo, minérios e água (intensificadas nas últimas décadas), colapsos financeiros e econômicos (2008), sórdida manipulação e deturpação da informação (escancarada com o Brexit, Trump, Bolsonaro...), enfraquecimento de democracias, e, enfim, a pandemia do novo coronavírus.
Ainda é cedo, mas já é possível ensaiar algumas lições fundamentais:
- sistemas econômicos que visam a concentração de renda ao custo da exclusão social, colocando o mercado sobre a vida, não têm estabilidade, deflagram tensões sociais, ambientais, econômicas insustentáveis que desembocam em conflitos insolúveis;
- o Estado precisa ter força suficiente para conter a animalidade ainda remanescente na natureza humana; e precisa ter meios de garantir que seja democrático, e não venha a cair nas mãos de ditadores e de poderes ditatoriais;
- a educação, a cultura, as artes têm que ser prioridades; povo sem educação, sem discernimento e sem sensibilidade é vítima fácil de tiranos oportunistas, que são amiúde inescrupulosos e hábeis na manipulação das massas via mídias servis; um povo esclarecido não permitirá que lhe usurpem a democracia e a liberdade;
- povos e nações precisam comprometer-se com a paz; findas as guerras, a humanidade poderá dedicar-se a promover a inclusão social da imensidão de excluídos, popularizar a saúde, a educação, a cultura, as artes, a justiça, a moradia digna, o lazer saudável, a ciência, a espiritualidade;
- o ser humano precisa assumir a responsabilidade com o planeta Terra, a vida em todas as suas formas, os sistemas naturais, o uso consciente dos recursos que nos são vitais e mais que suficientes se soubermos utilizá-los com equidade e parcimônia; a Terra é um milagre único, que temos que aprender a respeitar e a zelar;
- há que se desenvolver a religiosidade, a espiritualidade, justamente para superar a animalidade remanescente na natureza humana e alimentar o que já nos germina de divino; a igreja tem de deixar de ser um instrumento de dominação, de segregação e de comércio; a verdadeira religião deve retomar a intenção de despertar, de emancipar, de iluminar, de religar a alma humana com o divino que a transcende;
- a religiosidade e a espiritualidade farão a humanidade mais fraterna, solidária, sabedora do significado da igualdade, da liberdade e do zelo com o planeta.
Estas prementes lições não são nenhuma novidade. Vêm nos sendo ensinadas há milênios. Talvez a única novidade seja a eloquência da pandemia, que parece querer nos fazer um ultimato:
─ Ou aprendem agora, ou a natureza e o planeta não se responsabilizam pelas consequências.

sábado, 11 de abril de 2020

A demência da subserviência à demência

Publicado no Jornal da Manhã em 14/04/2020.

A demência não nos assalta abrupta, como o tigre sobre sua presa. Ela vem devagar, insinuante, como o vírus da pandemia que se espalha invisível, lento e inexorável. E termina por nos contaminar, levando-nos aos hospitais ou aos cemitérios.
A demência não nos sangra, como o tigre ou as revoluções armadas. Ela domina sem que seja percebida; só a percebem aqueles eventuais incólumes que escapam ao contágio e que convivem com o demente. Este, possuído, vê-se como o único são. Todos os demais são dementes, a serem banidos, enclausurados, evitados, eliminados...
Há várias demências, e vários dementes. Quando forçados ao ajuntamento, os dementes estranham-se uns aos outros. Sobrevêm polêmicas, acusações recíprocas, disputas, defecções. O demente acredita na sua demência, todas as demais lhe parecem imperfeitas. Todos estão errados, só ele está certo.
Um tipo especial de demência vem se alastrando em todo o mundo. Primeiro o acometido mostra inconformismo com regras, mesmo aquelas essenciais para o convívio social. Supõe-se que esta rebeldia tenha origem na incapacidade deste demente de interagir e de aprender com a interação. Uma mostra da alienação imposta pela demência. Esta incapacidade de aprender vai acentuando a ignorância e um inconsciente ressentimento, um complexo de inferioridade, de incapacidade. Então manifesta-se outro atributo deste demente: a agressividade. O demente é alguém com soberba suficiente para fazê-lo reagir. Cego para sua ignorância, ele impõe sua demência àqueles que o cercam. Um terceiro atributo deste tipo de demente: ele é arguto, ou suficientemente inescrupuloso, para ser capaz de convencer milhões de que sua demência é a mais exaltada expressão da sanidade. A seu ver incompreendida, rejeitada por muitos.
Além de egocêntricos, os dementes deste tipo de demência são também narcisistas. Comprazem-se com as multidões de aficionados que os reverenciam como novos profetas que vêm salvar o mundo da loucura. Alcançando algum nível de poder e de liderança, alimentam o ódio contra tudo aquilo que ameaça desmascarar a sua debilidade: a ciência, a verdade dos fatos, o discernimento, a sanidade, a solidariedade. Para este demente, existem dois tipos de pessoas: os que estão com ele, e os que estão contra ele. Não há espaço para o diálogo, nem a convivência da diferença. O mundo deste demente é dos dementes como ele. Ou que o veneram. Contra os demais, o racismo, a xenofobia, a homofobia, a misoginia, a odiosa segregação social e ideológica. Até a tortura.
A vida destes dementes passa a ter padrões bem definidos: exaltação aos dementes históricos acometidos pelo mesmo quadro; perseguição àqueles que não compartilham de sua demência; priorização da sua demência em detrimento de quaisquer outros interesses sociais; e o pior, submissão incondicional a outros dementes considerados superiores, sejam eles chefes de estado de países imperialistas ou supostos pensadores alienados da realidade e do mundo.
Esta demência diz acreditar em Deus acima de tudo. Acima deste demente só restariam então Deus e outros dementes ainda mais dementes. Valha-nos Deus.

sábado, 4 de abril de 2020

Pandemia: Deus escreve certo por linhas tortas



O Mestre contemplava a imensidão e as maravilhas do universo quando, de novo, aquele pontinho azul de brilho especial atraiu-lhe a atenção. Ao mesmo tempo que se destacava pela beleza, ele emitia uma vibração desarmônica, que a sensibilidade do Mestre logo fez captar. Ele, como sempre fazia, dirigiu-se ao seu obsequioso assistente:
─ Pedro, aquele pontinho azul, é mesmo aquele planeta maravilhoso que estou pensando?
─ É sim, Mestre, é a Terra! Aquele milagre único no universo que projetamos nos mínimos detalhes pra que pudesse ter um tipo muito especial de vida. E mais, pra que a vida pudesse evoluir de uma forma fantástica ao longo do tempo, desenvolvendo inteligência, sonhando com alcançar um nível de sabedoria que os igualasse a seus criadores. A Terra tem maravilhas únicas, pra encantar o espírito dos seres vivos que por lá vivem. Os oceanos, as matas, os rios e suas cachoeiras, as montanhas nevadas, as nevascas que cobrem tudo de branco, o outono que avermelha os bosques, os arrebóis que pintam os céus de rubro, as noites sem lua que escancaram a galáxia luminosa, as noites de lua cheia que cobrem a Terra de um brilho práteo, as chuvas que tudo lavam e tudo dessedentam, as primaveras que pintam de colorido as campinas e as matas, as árvores generosas que se carregam de frutos apetitosos, os pássaros canoros que encantam e surpreendem com seus gorjeios... São incontáveis benesses colocadas lá naquele planeta que é uma joia única.
─ Mas me parece que as coisas não andam muito bem por lá? Sinto uma vibração destoante.
─ Pois é, Mestre, a evolução das espécies é sempre aquele processo um tanto imprevisível, com avanços e retrocessos. E às vezes é necessária uma extinção pra desviar de um caminho errado e viabilizar outros mais promissores. Lá na Terra isso já aconteceu várias vezes, mas nunca antes com a inteligência, o gênio inventivo, tão evoluído quanto agora.
─ Lembro-me bem. Já tivemos que cobrir todo o planeta com gelo, várias vezes. E também fizemos cair lá aquele meteorito.
─ Pois é. Mas a espécie que domina a Terra atualmente, que alcançou a inteligência e a engenhosidade, ainda não alcançou a sabedoria e o discernimento. Não conseguem enxergar os milagres do planeta, estão ameaçando-os gravemente. Não conseguem evoluir do egoísmo pra solidariedade. Muitas vezes até mesmo em família há desavenças sangrentas. Guerras de conquista, mortandades, escravidão, miséria, fome, doenças são crueldades comuns, em nome do domínio de uns sobre os outros, em nome de um acúmulo desigual, desnecessário, dos bens que o generoso planeta e o dom da inteligência lhes ofertam. Há muitos que não atinam que há mais que o necessário pro bem estar de todos. Estão comprometendo o planeta, e se destruindo.
─ Nossa, quanta cegueira! É isso a vibração nervosa que sinto vinda de lá!
─ A vibração é a ganância compulsiva, que ainda comanda a espécie atualmente dominante, a humanidade. Que é inteligente, mas prepotente e ignorante.
─ Mas outras vezes já interferimos pra tentar reconduzi-los ao caminho do despertar da sabedoria e da solidariedade, não foi Pedro?
─ Sim, ao longo da História temos interferido, dentro do que nos permite o princípio do livre arbítrio. Foram inúmeras pragas, desastres naturais. O planeta funciona como um grande e complexo organismo vivo, quando uma única espécie ultrapassa os limites de tolerância, o todo responde. Agora estão às voltas com uma nova praga que se espalhou por toda a população humana do planeta.
─ Vai exterminá-los?
─ Ainda não. Só vai alertá-los. É uma tentativa de fazê-los enxergar que a ganância não pode estar à frente do respeito à vida e ao planeta. Se não aprenderem desta vez, da próxima o planeta pode descartá-los definitivamente, e investir na evolução de outra espécie, que se mostre mais sensata.
─ Então é isso, Pedro. De fato, a humanidade está vivendo sua adolescência. Lembro que os fizemos à nossa semelhança, não foi? Está confusa, insegura. Também já fomos assim, há uns treze bilhões de anos atrás. Mas é ela que tem que escolher seu caminho. Torço pra que faça uma boa escolha. São filhos ainda desatinados, mas promissores.